Um outro
não menos Cabral
Floriano Martins
Há
um desafio implícito ao se escrever sobre João Cabral de Melo
Neto (1920-1998). Não por que já se tenha dito tudo sobre este
poeta, mas antes pelo fato de que tudo aquilo que foi dito sobre
ele o foi sempre sob um mesmo ângulo, cuja massa crítica
constitui parcialmente aquela cantilena tão desprezível a ele
próprio.
A
publicação de uma 2ª edição revista e ampliada de João
Cabral: a poesia do menos (Topbooks, 1999), de autoria de
Antônio Carlos Secchin, difere em algum sentido desse acúmulo de
dizeres reiterativos a respeito do autor de A escola das
facas (1980), e se junta, neste particular, a outro largo
estudo, A página branca e o deserto. Luta pela expressão em
JCMN (1959), assinado por Othon Moacyr Garcia.
João
Cabral sempre teceu sua escritura poética baseada em um rigor da
linguagem, rigor tão obsessivo que por vezes o terá conduzido à
sensação de esterilidade. É poeta que sempre defendeu a
essencialidade da idéia fixa. Em nome dessa obsessão, obstáculo
que impôs a si com clara consciência, firmou, sobretudo, uma
ética peculiar, ética de exceção. Tanto que se considerava
estranho à tradição luso-brasileira, “tão marginal como
Sousândrade e Augusto dos Anjos”.
Em algo
seu processo criador recorda o do chileno Humberto
Díaz-Casanueva (1907-1992), vindo exatamente da obsessão por um
rigor sob o risco constante da esterilidade. Os dois, para dizer
com o chileno, podem “dar conta de cada imagem ou idéia poética
e da razão de sua existência”. Diz Cabral que impede “tanto
quanto possível” a ação do inconsciente sobre sua mão. Já
Díaz-Casanueva salienta: “às vezes sinto uma facilidade
suspeitosa e me invadem ritmos e até rimas”.
Mais
conjunções será possível encontrar em inúmeras afirmações de
ambos, sendo inquestionável ao menos uma disjunção: a obra
poética de cada um. Poetas que lidaram com o acento arriscado de
um rigor construtivo, demasiado cerebral, foram ambos
herméticos, porém diferem no aspecto órfico e visionário que
encontramos no chileno e que o brasileiro, salvo em algumas
imagens destacadas por Secchin em Pedra do sono (1941),
raramente alcançaria.
Díaz-Casanueva estava ciente de que a obsessão por anular a
subjetividade no ato poético implicava no risco de extravio da
lucidez e na conseqüente perda do poder de comunicação, como
destaca Guillermo Sucre em ensaio sobre o autor de Vigilia
por dentro (1931). Está claro que a recusa de um componente
subjetivo na poesia de Cabral tem a ver com o que Sebastião
Uchoa Leite apontou como sendo uma “opção anti-romântica”. O
próprio poeta dispara: “a maior desgraça que aconteceu para a
humanidade talvez tenha sido o romantismo”, observação curiosa,
uma vez que Cabral elevou ao paroxismo sua obsessão
construtivista.
O livro de
Secchin traz ao final uma memorável entrevista com João Cabral,
onde não se limita o entrevistador a repetir a fórmula de outros
diálogos com o poeta pernambucano. Dele extrai com exímia
sutileza algumas pedras novas, ou as mesmas, em distinto
polimento. Entre elas, a de que a poesia de Valéry sempre lhe
“pareceu secundária, uma espécie de Mallarmé passado por água”,
o que contrasta com o entendimento de Othon M. Garcia, de que há
em Cabral “uma influência muito viva de Valéry”. Diz ainda
Cabral: “O que me interessava nela era a explicação teórica de
Mallarmé, seu mestre. Só que a poesia do mestre conduziu a um
beco sem saída. Todos os que se influenciaram por ele deram um
ou dois passos atrás.” É inevitável abordar que o mesmo que diz
Cabral acerca de Valéry pode ser observado na poesia brasileira
surgida a partir do autor de O cão sem plumas (1950), ou
seja, todos aqueles poetas diretamente influenciados por Cabral
“deram um ou dois passos atrás” em relação ao que já havíamos
conquistado.
Além
disto, uma digressão justificada nos remete a um falseamento do
real significado da obra de Cabral, onde a defesa da poesia como
uma construção verbal foi confundida com um abandono do sentido,
uma displicência no tocante à ideologia da escrita, ou
seja, uma dimensão ontológica. A imagem poética de alguma forma
foi desmembrada da experiência de vida. Não se responsabiliza
aqui a aposta de João Cabral, mas sim uma leitura desfocada,
algo intencional, DO TEMA. A poesia é construção verbal, sim,
porém carregada de sentidos.
De volta à
abordagem de Othon M. Garcia, certamente em 1958, quando
preparou seu ensaio, não encontrava ainda razões para observar a
dissensão entre Cabral e Valéry. Na ocasião, por exemplo,
mencionava que a inspiração e o acaso eram aspectos importantes
na construção da poética cabralina, o que foi terminantemente
minimizado pelo próprio poeta em inúmeras ocasiões.
Cabral
sempre foi um turrão diante de determinados temas. Soa risível,
por exemplo, seu entendimento de que Gaudí era um anti-arquiteto
pelo fato de não haver traçado plantas. Disse certa vez: “pouca
coisa ele desenhava e previa”. Niemeyer rigorosamente planejou
vãos onde o homem é uma irrelevância, basta ver a dificuldade de
deslocamento a pé no interior de seu dimensionamento
arquitetônico.
E o
afirmava ao mesmo tempo em que considerava Juan Miró “um
instintivo puro”, contrapondo-o a um Picasso por demais preso
aos “princípios de composição do Renascimento”. Vale recordar
que Miró chegou a referir-se a uma impossibilidade de falar de
sua pintura, pois a tinha como nascida “no estado de alucinação
que provoca um choque qualquer, objetivo ou subjetivo, e do qual
sou totalmente irresponsável”.
Revela
Cabral a Secchin: “Escrever para mim é um sofrimento”, o que me
lembra observação do guatemalteco Luis Cardoza y Aragón sobre
Antonin Artaud: “A lucidez foi seu maior sofrimento. Sua lucidez
antecede e origina a fadiga.” Não se pode dizer de Artaud que
tenha buscado menos sofregamente que Cabral uma ética da
linguagem. Também não se pode evitar menção à presença de uma
fadiga na obra de Cabral.
O que não
conseguiu Cabral? O que recorta com precioso olhar Guillermo
Sucre acerca de Humberto Díaz-Casanueva: uma simultaneidade
entre “consciência desértica” e “aventura desmesurada”, de certa
forma aquilo de que nos dava conta, ainda que em estado
embrionário, a estréia com Pedra do sono. Nessa obsessão
por um estado de exceção, desfez-se de uma idéia já burilada em
um poema, de “que o homem / é sempre a melhor medida”,
desprendendo a vida do corpo da vida do espírito, para recorrer
a uma imagem de Othon M. Garcia.
A leitura
da poesia de Cabral levada a termo por Antônio Carlos Secchin
tem sua particularidade ao salientar que se trata de “uma poesia
sutilmente confessional, urdindo uma espécie de autobiografia em
3ª pessoa”, ao mesmo tempo em que destaca sua hostilidade aos
“espasmos da comiseração”. Discordo, entretanto, do vínculo
traçado entre lirismo e facilismo, entendido este último
como uma distensão do arco.
No
decorrer de todo o livro, Secchin desmonta verso a verso a
relojoaria cabralina, apontando os zelos felizes e sugerindo
algumas mazelas. Trata-se da melhor abordagem, do ponto de vista
de uma crítica literária, acerca da obra de João Cabral, que
permite nas entrelinhas a compreensão das anotações que faço
aqui, ao mesmo tempo em que não segue a trilha tendenciosa de
parte considerável da bibliografia sobre este poeta. |