João
Cabral de Melo Neto - Os jardins enfurecidos
Lêdo
Ivo
Na
dedicatória de Museu de tudo, de João Cabral de Melo
Neto, lateja a história de uma amizade; talvez ou decerto, uma
das mais exemplares de nossas letras, tanto pela longa duração
de sessenta anos, como pela circunstância de, em nenhum
instante, terem nela eclodido as rupturas ou desentendimentos
que costumam separar essas estranhas figuras da vida e do mundo
que são os escritores, ces horribles hommes de lettres a
que alude Paul Claudel no poema sobre Verlaine.
A esses
dois elementos de permanência e entendimento se há de
acrescentar o fato de que essa amizade – que extrapolou o rumor
adstrito ao campo literário para se estender ao campo reservado
e até sigiloso das confidências e do convívio familiar –
transcorreu, na maior parte do tempo, em uma geografia dilatada.
A condição consular e diplomática de João Cabral, iniciada em
1947, impôs-lhe uma aura de ausência substituída por uma
comunicação epistolar da qual o livro E agora adeus
(Instituto Moreira Sales, São Paulo, 2007) fornece uma ideia
nítida e vívida do diálogo intermitente travado entre os dois
amigos. E, finalmente, cabe sublinhar, com a necessária ênfase,
o fato de que essa amizade ligou representantes de duas famílias
literárias e estéticas inconfundivelmente distintas.
Foi uma
atração de contrários, na longa travessia de mais de meio
século. Nenhum dos protagonistas do longo convívio influenciou
ou modificou o outro. Em cada um deles permaneceu, intacto, o
selo da diferença – e até da colisão estética – que os separava
desde o momento inicial. A distinção alcança até os nomes: um
deles lacônico e o outro alongado em sobrenomes. E, nas paragens
da versificação, um dos poetas será caracterizado e venerado
pelo seu verso curto, de concisão proclamada exemplar, enquanto
ao outro será atribuído o ônus de um verso longo e respiratório.
Foi no
Recife, em princípios de 1940, que os dois jovens poetas, ou
aspirantes a poeta, se encontraram. Um era alagoano, de Maceió,
e viera, aos dezesseis anos de idade, completar o curso
secundário. O outro, pernambucano do Recife ou talvez de
Carpina, tinha vinte anos. Nas mesas do Café Lafayette, sob a
regência intelectual de Willy Lewin, ambos se acercaram,
cumprindo o mistério das aproximações que unem não os
assemelhados, mas os dessemelhantes. Um dia se escreverá a
história borgiana de Willy Lewin, esse poeta bissexto e
irrealizado e intelectual de província que guiou os passos de
vários plumitivos literários, e em cuja biblioteca, aberta a
tantas curiosidades juvenis, esplendiam as obras de Valéry e
Mallarmé, Claudel e Joyce, Mauriac e Julien Green, Proust e
Apollinaire, Kafka e D. H. Lawrence, André Breton e Jean
Cocteau, Virginia Woolf e Ezra Pound, e uma profusão de
surrealistas. Uma biblioteca predominantemente europeia, de
autores ingleses e franceses em sua quase totalidade, e na qual
escasseavam os brasileiros. A penúria da literatura aborígine
explica ou justifica o teor sofisticado ou refinado da primeira
formação intelectual desse “grupo do Recife” que o tempo, o
grande e implacável afunilador literário, reduziu a tão poucos
nomes.
Quem foi
Willy Lewin? Nesse Museu de tudo, o leitor saberá o que
ele significou para João Cabral:
foste
ainda o fantasma
que
prelê o que faço,
e de
quem busco tanto
o sim e
o desagrado
Os
participantes da fervilhação intelectual do Recife nos anos
iniciais da década de 1940 contavam com a presença de outro
informante privilegiado, além de Willy Lewin. A guerra devolvera
à terra natal o pintor Vicente do Rego Monteiro, que,
participante da renovação artística da década de 1920, fora
viver em Paris. Ele era portador de notícias atualizadas sobre a
criação cultural e artística na França. Ao som do Bolero
de Ravel, bebíamos as suas palavras com o mesmo fervor com que
bebíamos uma cachaça misteriosa que ele fabricava num engenho
mais misterioso ainda. O lº Congresso de Poesia do Recife,
realizado em 1941, e para o qual João Cabral contribuiu com a
comunicação Considerações sobre o poeta dormindo,
testemunha o índice de insolência do grupo.
Poeta
dormindo.
Essa primeira manifestação intelectual de João Cabral se abre
para uma vereda ainda hoje não palmilhada pelos exegetas e
escoliastas pedagogicamente empenhados em estudar ou perquirir a
sua poesia. Desejo referir-me à poderosa influência surrealista
sofrida por ele e por alguns de nós nesse alvorejar literário
cadenciado pelas posições estéticas e influências pessoais de
Willy Lewin e Vicente do Rego Monteiro. O sono e as figuras e
objetos do sono e do sonho desfilam desembaraçadamente em seus
primeiros poemas, detentores de insólita carga fantomática e
suprarreal.
No sono
das mulheres
cavalos
passam correndo
em ruas
que soam
como
tambores.
Funcionário do Departamento Estadual de Estatística, João Cabral
descobriu a existência de um município pernambucano chamado
Pedra do Sono. O toque drummondiano não está apenas nos versos e
na dedicatória do seu livro de estreia. Habita ainda o título,
que remete ao município mineiro Brejo das Almas. E cabe não
esquecer que outro expoente do Modernismo, Mário de Andrade, foi
buscar na vastidão amazônica o nome de um município para o seu
Remate de Males.
Pedra e
sono. O poeta do sono e futuro poeta da pedra era visitado por
imagens obsessivas e sonhos desabridos. A família, preocupada
com a sua morbidez e silêncio, e a aparição de uma dor de cabeça
que haveria de importuná-lo a vida inteira, internou-o num
hospital psiquiátrico. Era a eclosão da angústia. Ele será, em
toda a sua existência, um angustiado, vertendo uma visão
pessimista da vida e do mundo. Propugnador de uma talvez
indefinível objetividade poética, procurará esquivar-se à
evidência de que toda poesia é a expressão e a comunicação de
uma subjetividade que se objetiva através da linguagem e da
presença do leitor. A angústia que paira sobre a sua obra, só
comparável à de Augusto dos Anjos, projeta-o como um dos poetas
mais subjetivos de nossa história literária.
Na
reclusão de seu quarto, a janela que se abria para o mundo e a
paisagem lhe apontava o mistério da noite:
Ó
jardins enfurecidos
pensamentos palavras sortilégios
sob uma
lua contemplada:
jardim
de minha ausência
imensa
e vegetal;
ó
jardins de um céu
viciosamente frequentado:
onde o
mistério maior
do sol
da luz da saúde?
Nesses
dias de reclusão, o poeta é rondado por manequins corcundas,
anjos cegos ou mudos, frutas decapitadas, fantasmas que andam
pela praia, homens enforcados. Dias e noites de pesadelo: “Sou o
vulto longínquo / de um homem dormindo.” E alude a
esses
pássaros friíssimos
que a
lua sopra alta noite
nos
ombros nus do retrato.
Do embate
entre o sono e a pedra, a noite escura da alma e a almejada luz
do dia, nasce o poeta que, proclamando-se escravo da razão e da
clareza, e da mudança do mundo, haveria de confidenciar-me um
dia a sua condição preclara de
“materialista-ateu-marxista-leninista-comunista-stalinista”. Mas
a forte dose de sibilinidade que caracteriza a sua poesia e o
acendrado hermetismo, que constitui ao mesmo tempo a delícia e o
suplício dos sisudos professores universitários tenazmente
aplicados em repetir em prosa apostílica o que o poeta disse em
verso admirável, hão de indicar que, na travessia, João Cabral
não se desfez do pesadelesco pecúlio inicial.
Nesses
dias de alvorecer, nos diálogos intermináveis, nos sucessivos
“compreende?” que juncavam a sua fala, João Cabral alegava não
saber rimar nem metrificar. A poesia dos românticos e
parnasianos não lhe atraía o interesse. Ele era visceralmente
infenso ao contágio do passado lírico brasileiro, e só abria uma
exceção: para Augusto dos Anjos, o poeta dos vermes e das
podridões, de quem se dizia primo. Foi no Modernismo que
encontrou o modelo e a resposta para as suas inquietações
juvenis. O poema “Sentimental”, do Carlos Drummond de Andrade de
Alguma Poesia, exerceu sobre ele uma influência seminal.
Foi uma iluminação:
Ponho-me a escrever teu nome
com
letras de macarrão.
No
prato a sopa esfria, cheia de escamas
e
debruçados na mesa todos contemplam
esse
romântico trabalho.
Desgraçadamente falta uma letra,
uma
letra somente
para
acabar teu nome!
(…)
O jovem
poeta, avesso à dimensão musical e encantatória da poesia
(embora frequentador da obra poética e dos textos teóricos de
Paul Valéry) e empenhado em refletir uma realidade desprovida de
dimensão metafísica ou de qualquer sublimidade, descobriu que se
podia escrever um poema sobre uma sopa de letras de macarrão.
Aos poetas que voam, e são os condores e águias românticos,
planando airosa e desembaraçadamente nos céus mais altos, ou aos
que nadam, como os harmoniosos cisnes simbolistas ou
parnasianos, João Cabral preferia confessadamente os poetas que
são como as galinhas, e não saem do chão, cotidianamente pisado
e bicado – e se inclui nessa espécie rasteira. Inimigo das aves
de alto voo e dos maviosos pássaros canoros, não limita seu
apreço ornitológico aos galináceos. Como o seu predecessor
biológico e poético Augusto dos Anjos (“Um urubu pousou na minha
sorte!”), por duas vezes ele menciona nesse livro a ave que se
nutre de podridões e decomposições: no poema “A criadora de
urubus” e em “Lendo provas de um poema”, apontando-os nesse
último como farejadores da morte.
Poeta do
tangível e do visível, João Cabral reivindicava a presença, em
sua mesa, do copo de água, do ovo, das “coisas claras”. Na
celebração do Capibaribe, seu rio natal, enxotou as imagens de
fluidez e limpidez do catálogo romântico e parnasiano, e cantou
o rio sujo e cheio de detritos. As nascentes de O cão sem
plumas e O rio devem ser buscadas na Meditação
sobre o Tietê, de Mário de Andrade, o primeiro poema
brasileiro que, rompendo com uma tradição poética de bucolismo e
limpidez fluvial, erigiu a figura e a realidade do rio-esgoto,
do rio que é uma latrina das cidades atravessadas. Tendo
repelido a tradição romântica, simbólica e parnasiana, e tendo
encontrado no Modernismo brasileiro o seu ponto de partida, João
Cabral é o mais modernista dos seus companheiros de geração.
Nele não se operou a ruptura estrondosa ou veemente que assinala
o percurso dos poetas surgidos em torno de 1945, e que têm nessa
data a referência inarredável de sua aparição. Ele continua o
Modernismo ortodoxo. Além das lições de Carlos Drummond de
Andrade e Mário de Andrade, põe em seu bornal o processo
imagístico haurido em Murilo Mendes e procedente do Surrealismo.
E a relação de suas dívidas e contágios em relação ao Modernismo
estaria incompleta se não incluíssemos nela seu conterrâneo
Manuel Bandeira, discretamente espraiada em muitos de seus
poemas e que projeta a sua sombra contundente nesse Museu de
tudo – o qual ostenta forte parentesco com o Mafuá do
malungo, editado inicialmente por João Cabral em sua prensa
de Barcelona.
Ambos os
livros são reuniões de poemas de circunstância, com o predomínio
de figuras conviviais. No caso de João Cabral, não chega a ser
uma curiosidade o fato de ele festejar amigos ou personalidades
mortas, já que a morte era uma de suas obsessões, e à sua morte
pessoal conferiu uma aura surpreendente, orando e renunciando
in extremis à condição de
materialista-ateu-marxista-leninista-comunista-stalinista para
fugir das chamas do Inferno e pleitear fervorosamente um lugar
no Paraíso.
Desde o
início do percurso, o problema da expressão poética se impôs a
João Cabral. A organização do poema, sua forma e estrutura
constituíam para ele verdadeira obsessão, e de tal modo que a
metapoesia – o poema em que se celebra a criação do poema ou a
própria poesia e que prolifera no lirismo ocidental desde
Mallarmé – atravessa insistentemente a sua obra.
Para a
consolidação de sua arte de fazer poemas, a ida para a Espanha,
como cônsul do Brasil em Barcelona, emerge como uma ocorrência
providencial. Desde então, a sua poesia se hispanizou ou se
iberizou de modo substancial, num entranhamento definitivo,
responsável pelo estabelecimento de um eixo lírico e existencial
que tem Recife e Sevilha como os dois polos. Mas tem cabida
registrar a escassez informacional dos que o apontam como
receptador da poesia espanhola, como se esta se resumisse a um
caminho único. Na verdade, na riquíssima, variadíssima e
inesgotável poesia espanhola, o autor desse Museu de tudo
escolheu uma ascendência de conformidade com o seu temperamento
e convicções estéticas.
Na
Espanha, João Cabral descobriu o Mío Cid, Gonzalo de
Berceo e o Arcipreste de Hita – medievais exemplos magistrais de
uma poesia que, pela sua dimensão de materialidade e
visualidade, e de enxutez, e por ser ainda uma narrativa
prosística, se afeiçoava plenamente ao seu espírito. Estavam
abertos vários caminhos: o da poesia narrativa de O cão sem
plumas e O rio; o do auto natalino de raiz medieval
que é Morte e vida severina; e ainda o do riguroso
horizonte do contemporâneo Jorge Guillén. A discursividade
se torna um dos elementos fundamentais de sua poesia: ora um
parlamento aberto, ora um parlamento íntimo e subjetivo. Embora
o ignorasse, João Cabral foi um poeta eminentemente discursivo.
Se tivesse
escolhido a carreira eclesiástica, João Cabral seria certamente
um desses frades magros e chegadiços às autoflagelações, e não
um desses abades redondamente gordos que, na austeridade dos
conventos, se deliciam no consumo imoderado de bebezainas e
comezainas capitosas, prolongando-se em banquetes pantagruélicos.
Ele pertence à família dos poetas espanhóis ascéticos. O seu
barroquismo é minguado, embora não lhe faltem sinuosidades,
volutas verbais, elipses e outros ornatos sintáticos e
estilísticos da melhor e mais funda água ibérica. Mas nele estão
quase ausentes o barroquismo desenfreado de Quevedo, o fino
culturalismo de Garcilaso, Lope de Vega ou Góngora e, apontando
aqui outros exemplos de efusão ou daquela alegria verbal
mencionada por Alfonso Reyes, o esplendor do nicaraguense Rubén
Darío ou de García Lorca. Nos cardápios poéticos existentes na
Espanha, João Cabral escolheu a dieta mais emagrecedora. O seu
traço estético predominante é o verso curto: a redondilha vinda
dos romanceiros ou o octossílabo; e o poeta que não sabia rimar
torna-se um mestre consumado no cultivo e no uso reiterado da
assonância, adotando um processo já utilizado anteriormente no
Brasil pela também hispanizada e iberizada Cecília Meireles. Uma
astuciosa e conscienciosa adoção do verso medido e metrificado
indica que, em poesia, a forma é uma fôrma, uma ideia
fixa, e a pretendida liberdade poética não passa de uma prisão
deleitosa. Nesse sentido, o Museu de tudo constitui um
precioso e didático reservatório da arte poética de João Cabral:
uma arte poética que é uma reiteração, uma contínua repetição de
si mesmo; uma sucessão de ideias fixas e obsessões que desfilam,
com frequência, na moldura e na medida estrófica da quadra.
Entre as
suas obsessões e ideias fixas, avultam as latrinas do Colégio
Marista do Recife, onde ele estudou, que o induzem a enxergar na
prática poética um processo excrementício de eliminação. Exclama
ele, na Antiode:
Poesia,
te escrevia:
flor!
Conhecendo
que és
fezes. Fezes
como
qualquer,
(…)
E em
“Duplicidade do tempo”, também desse livro, louva o excremento,
que, ao contrário dos metais, não se corrompe:
A merda,
o lixo, o corpo podre,
os
humores, vivos dejetos,
não se
corrompem mais: o tempo
seca-os
ao fim, com mil cautérios.
E a
defecação, presente em “As latrinas do Colégio Marista do
Recife” (Agrestes), retorna no último poema desse livro,
“Exceção: Bernanos, que se dizia escritor de sala de jantar.”
“I am what is around me.”
Esse verso
de Wallace Stevens poderia ser a epígrafe de Museu de tudo,
e ainda de toda a faina poética de João Cabral. É um inventário,
um livro de acumulação: paisagens, viagens, leituras, amizades,
a ronda da morte, reflexões, quadros e pintores, futebol e
dança. Nele o poeta exibe a sua natural redução a si mesmo, ao
seu perfil inconfundível, à sua singularidade e aos seus
limites. E ainda o seu fervor escondido, a fidelidade a uma
impulsão interior que o conduziu a um páramo de magistralidade.
Ao seu deserto, que é também um jardim. Um jardim enfurecido.
A razão é
o esconderijo predileto da sem-razão e até da loucura. A meus
olhos, quem enxerga e festeja em João Cabral de Melo Neto o
poeta do cultivo do deserto e do pomar às avessas, o
aluno da pedra e o lúcido artífice da forma severa do vazio
vê somente meio João Cabral. Rodeado pelo mistério da
criação poética – da noite do intelecto tornada claridade e dia
pela linguagem –, ele guarda em sua poesia o frêmito dos jardins
enfurecidos vistos, no início de sua trajetória, de sua janela
de recluso. Ambíguo e plurissignificativo, o poema sempre
esconde outro poema.
A
propósito dos poetas, sejam eles emissários da sombra ou vozes
da claridade, convém jamais esquecer a advertência de André
Breton: os mais céticos dentre nós moram em casas
mal-assombradas. |