Jorge de Sena: Um exílio em cólera
Júlio Conrado
Jorge
de Sena (1920-1978), poeta, investigador, dramaturgo, contista,
docente, romancista, engenheiro, antologista, epistológrafo,
tradutor e prefaciador é um dos casos mais fascinantes de
produção de uma literatura de exílio num país onde a legião de
intelectuais “estrangeirados” é consequência da constância do
Estado totalitarista ao longo dos séculos. Quando se fala de
exílio de escritores, de literaturas de exílio ou de exílio
tout court, os Portugueses sabem do que falam, tantos deles
tiveram de abandonar o país para noutras paragens procurarem, em
liberdade, o sustento do corpo e a ração do espírito. Mas também
aqui, o affaire Jorge de Sena é paradigmático. Ele, Sena,
não corresponde, em boa verdade, ao padrão geralmente aceite de
exilado político. Corporizou, sim, antes de mais, o drama do
emigrante económico cuja ambição maior era a de ser escritor e
não engenheiro de pontes e calçadas, que em dado momento da vida
se viu a braços com a mulher e sete filhos ( mais tarde a conta
subiria para nove) para sustentar e o quase completo ostracismo
votado pela crítica portuguesa à sua actividade literária.
Sena começa, pois, por ser um exilado no interior, condição à
qual acrescenta a dimensão de “exílio no exterior” ao emigrar
para o Brasil em 1959, deixando para trás um lugar de quadro da
Junta Autónoma de Estradas e partindo com a alma a clamar
vingança contra a “conspiração” (em não pequena medida por
si acirrada), dos jornalistas e críticos “ignorantes” que com o
silêncio lhe obstruiram o acesso à glória. A perseverança posta
na desforra é qualquer coisa de gigantesco. A cólera com que
zurziu os contemporâneos “cegos” à importância da sua obra
atingiu patamares de truculência inimagináveis. Varreu a eito,
implacável de rancor e raiva, alardeando uma capacidade
invejável para exorbitar a malignidade dos fantasmas que levara
de Portugal, tudo o que no país pudesse ter algum merecimento.
Ninguém estava à altura do seu talento. Ninguém, de facto,
parecia capaz de saber lidar com a mistura explosiva da
incomensurável imodéstia e do inegável valor, um coktail
Molotov sempre preparado para ser lançado sobre “essa gente”.
Ninguém, a não ser ele mesmo.
Querendo contornar a alegada incapacidade da crítica para lhe
analisar os escritos, Sena passou a interpretar os seus
trabalhos de criação através de textos de natureza ensaística,
os famosos prefácios. Colocado acima dos condutores de opinião -
ultrapassados por tão desconcertantes incursões no seu perímetro
de influência - por esses ensaios de “si sobre si mesmo” com que
polemicamente adornou vários livros, teve o condão de com eles
exasperar ainda mais os “visados” - raramente nomeados -
alargando assim o fosso de silêncio que estava na génese dos
seus irados queixumes. “Tenho horror da mediocridade que se
compraz em escusar-se a reconhecer o que a excede”, disse, numa
entrevista conduzida por Arnaldo Saraiva, respondendo à
insinuação de que seria o maior admirador de si próprio. Sem
deixar de referir: “A única razão pela qual parece que eu
proclamo a cada instante o meu talento é porque, até muito
recentemente, se eu não o fizesse, ninguém o faria. E, se eu sou
agudamente sensível a todas as formas de injustiça, haveria de
deixar que ela se exercesse impunemente comigo ? “
É errado pensar-se em Jorge de Sena como o provocador nato, o
outsider que todo se joga no afrontamento ao sistema e se
realiza hostilizando-o. Ele não ambiciona a destruição do
sistema, quer a sua vénia. Aquilo a que profundamente aspira é
tê-lo aos pés, rendido à sua arte e ao cabedal de erudição
entretanto adquirido no contacto com modelos superiormente
evoluídos de estudo das disciplinas literárias. Tarda o
reconhecimento, multiplicam-se as manifestações de cólera do
não-reconhecido contra os juízes-réus do adiado reconhecimento.
Cresce o tom de desafio à pátria ingrata, cuja virtude soberana
parece ser a de esquecer quem melhor a honra. A para muitos
insuportável vaidade do Narciso a quem é negado o espelho
através do qual pudesse saciar a auto-estima dá contornos
diabólicos ao contencioso que infernizará para sempre a vida do
escritor. A cruzada auto-interpretativa com que premeia “esses
sujeitos” e o “país dos sacanas” que os sustenta é uma aventura
sem regresso, uma luta sem fim à vista, um combate eterno. O
centro geométrico do exilado no interior está no lugar do “eu”
onde decisivamente pesa um egoísmo vital ferido pela ausência do
eco social capaz de salvar a obra e o homem do ignominioso
anonimato que é a causa do seu tormento. Apoiando-se em Scheler,
Camus dirá que o “ressentimento, conforme surja numa alma forte
ou fraca, converte-se em ambição de vencer ou em azedume”. O
temperamento de Sena troça destas fronteiras: ele é forte na
ambição de vencer e excessivo nas demonstrações de azedume - ele
será um vencedor que morrerá em guerra com um mundo que apesar
de tudo não o adulou como devia.
Há, no entanto, um momento de viragem, em Portugal, a partir do
qual a obra de Sena começa a ser vista com outros olhos. O nº 59
da revista católica progressista O Tempo e o Modo, de
Abril de 1968, é-lhe consagrado. Essa “consagração” reflecte a
nova atitude das elites culturais portuguesas relativamente,
sobretudo, aos feitos do investigador e do docente
além-fronteiras. Não se estava mais em presença do engenheiro,
com fumos de artista da palavra escrita, que colaborara no
projecto da construção da ponte sobre o Tejo; estava-se em face
de um homem que lograra chegar, como professor, às universidades
brasileiras de S. Paulo e de Araquara e, nos Estados Unidos, à
Universidade de Wiscosin, considerada uma das dez melhores do
país e aquela onde os estudos das literaturas portuguesa e
brasileira se encontravam mais adiantados, aí regendo cursos e
dirigindo teses de doutoramento como “visiting professor”. Na
mesma universidade, em 1967, seria nomeado catedrático do
Departamento de Espanhol e Português e é já quando, portador
destes galões académicos, sublinhados por intensa actividade de
investigador e de teorizador, começa a ecoar no país o prestígio
do mestre de Literatura e da Língua alcançado em tão selectos
fóruns intelectuais, que a sua obra poética e de ficção é
encarada com diferente recepticidade e, digamos, recuperada. O
ensaísta e o professor “arrastam” consigo o escritor, que assim
suscitam novos enfoques críticos à produção ficcional. De certo
modo são-lhe, até, perdoados os “prefácios”.
Porque é que a homenagem de O Tempo e o Modo decepciona
Jorge de Sena ? Não tem a “grandeza” justificada pela estatura
intelectual do homenageado ? Não é um preito de vassalagem por
parte daqueles a quem ele desejaria vergar com a pujança do seu
saber e são “outros” aqueles que vêm oferecer-lhe o conforto da
solidariedade e da admiração ?
São duas, quanto a mim, as razões do acolhimento céptico que faz
a essa consagração para ele não suficientemente grande.
Em primeiro lugar, há um período de vinte e dois anos desde a
edição do primeiro livro – e a consequente acumulação de
azedumes vários – durante o qual são raras as referências nos
jornais ao que publica. São duas décadas fatais, que geram um
homem amargurado, que subiu a pulso, que nada ficou a dever aos
seus contemporâneos, mas ao mesmo tempo um homem revoltado com o
silêncio a que o votaram, irritado com os “medíocres” que o
esquecem ( chega a pensar-se, lendo-lhe as diatribes, que o que
apaziguaria seria a adulação desses “medíocres”) e magoado com a
ausência das sempre reclamadas análises de fundo aos seus
trabalhos. A recolha a que Eugénio Lisboa procedeu de textos
publicados na imprensa é ilustrativa da travessia do deserto
feita pelo criador de O Físico Prodigioso. Entre 1946 e
1968 tinha publicado oito livros de poemas, três peças de
teatro, três livros de ficção, vinte e cinco estudos de crítica
e investigação literárias e alguns prefácios, mas o que
encontramos como retorno crítico dessa notável produtividade são
meia dúzia de textos assinados por João Gaspar Simões (1946),
Vasco Miranda (1951), David Mourão-Ferreira (1951), Adolfo
Casais Monteiro (1955) e Mário Sacramento (1960 e 1967), bem
escassa safra para um “egoísta” que tanto de si deu aos outros.
Foram vinte e dois anos anos de interiorização do rancor
fermentados pela ausência de “eco”. A homenagem da prestigiada
revista soube-lhe a pouco. Queria, porventura, lá ver outros,
que não lhe proporcionaram, porém, o almejado comprazimento.
A segunda razão a que atribuo o relativo desdém de Jorge de Sena
à consagração de O Tempo e o Modo resulta do facto de uma
substancial percentagem dos homenageadores ser constituída por
jovens escritores, muitos deles sem “nome” e sem “passado” nas
Letras, mesmo se já vinham dando provas de que seriam o “futuro”
da Literatura Portuguesa. Creio que Sena, numa primeira
avaliação, subestimou a importância dos depoimentos desses
jovens, tão ocupado andava com os fantasmas que lhe povoavam as
insónias. É que, entre os tais jovens, estavam, nem mais nem
menos, Almeida Faria, Ruy Belo, José Augusto Seabra, Casimiro de
Brito, João Rui de Sousa, E. M. Melo e Castro, Armando da Silva
Carvalho, Fernando Guimarães, Rebordão Navarro e José Fernandes
Fafe (ao lado dos consagrados David Mourão-Ferreira,
José-Augusto França, José Blanc de Portugal, Ruy Cinatti,
Vergílio Ferreira e Eduardo Lourenço), todos figuras de primeira
linha - sabêmo-lo hoje - da geração revelada na década de
sessenta ou um pouco antes e que era então, sem que Sena disso
talvez se apercebesse, tributária, à distância, do seu
magistério e sensível às motivações do conflito com que, com
insuperável frontalidade e um feitio intratável, o homem de
cultura alimentava a combustão do seu exílio perturbado.
Há boas razões para admitir que a sobranceria de Sena continha
algo de virtual. Ao manifestar menosprezo pela homenagem de O
Tempo e o Modo ao seu compatriota e amigo Adolfo
Casais Monteiro, também exilado, foi por este posto severamente
no seu lugar, isto é, duramente admoestado em relação ao que se
perfilava agora como um sentimento de ingratidão de todo
injustificado. Casais Monteiro fez-lhe ver que o combóio da
glória estava finalmente a passar por ele e que convinha
apanhá-lo. E Sena não se fez rogado: meteu-se nele e desembarcou
em Lisboa em 1969, onde foi alvo de uma recepção que qualquer
grande vedeta não desdenharia para si.
Pode dizer-se que Jorge de Sena trincou então uma boa fatia do
que sempre desejara: a glória. A glória física, a glória em
vida, não a glória póstuma, que dizia repugnar-lhe. Em
correspondência trocada com o seu amigo Adolfo Casais Monteiro,
escreve, nomeadamente: “Os recortes de notícias e entrevistas
são uma montanha impressionante... Com operação e tudo, e até
por causa dela, a minha estadia foi comovente - mas eu só
desejava ver-me dali para fora, apesar do prazer de rever os
amigos e de ter feito uma espécie de reconciliação nacional à
minha volta... Eu chegava a sonhar com a solidão sem telefone,
sem acesso, sem amigos, conhecidos, desconhecidos ou
ex-inimigos, e sem as casas deles aonde às vezes, para
satisfazer as encomendas, tive de jantar duas vezes ao dia.” **
A partir desta altura o discurso de Sena, especialmente o
discurso poético, ganha algumas surpreendentes inflexões. O povo
português deixa de ser ridicularizado como anti-protagonista do
seu destino ( Terra de escravos / cu pró ar ouvindo /
ranger no nevoeiro a nau do Encoberto, 1961) para se tornar
a vítima traída de “uns poucos” em 1971 e finalmente motor da
revolução, em Abril de 1974, data que marca a sua reassunção
como “português” orgulhoso do que acontece na pátria longínqua (
Chatins, ladrões e miseráveis fomos - mas fomos também
grandes. Sêlo-emos / ainda desta vez, na casa lusitana...
E que ninguém venha cuspir-nos, muito menos nós ). As
nuances “fomos”, “sê-lo-emos” e “nós” introduzidas no
discurso valem por uma reintegração completa - o poeta,
inteligente e culto como é, sabe perfeitamente que “recados”
está a enviar para o lado de cá do Atlântico. Labora, porém no
equívoco de se pensar como imagina que os outros o pensam. Não é
reintegrável em coisa nenhuma o que aos olhos de toda a gente
jamais chegou a desintegrar-se e que nunca passou do espectáculo
do filho que tudo fez para impressionar a mãe com a sua “fala” e
se revolve de ira contra a constância da surdez materna. Desde
que ela melhora as capacidades auditivas e consegue articular
alguns dos sons da linguagem do amor, o gigante rebelde vacila,
repensa-se, percebe-se que se comove. Cai depois em si: tem uma
imagem a preservar, é preciso que o show da ingratidão
continui até ao fim - mas já ninguém o leva mais a sério,
incluindo ele próprio.
Objectivamente, Jorge de Sena produziu uma parte substancial da
sua obra no estrangeiro em conflito afectivo frontal com a
pátria. Nenhuma causa visível impede que essa obra possa ser
considerada “literatura de exílio”. Enquanto criador literário,
Sena seguiu o percurso tradicional dos exilados portugueses,
jamais se expatriando da sua língua e da sua cultura. Não há em
Portugal autores equivalentes a Nabokov ou Isaac Singer, homens
de duas pátrias culturais - tão pouco o escritor
português quis em circunstância alguma assemelhar-se-lhes. João
Gaspar Simões, o crítico que mais acreditou nas qualidades do
autor de O Reino da Estupidez, pôs o dedo nessa ferida em
aberto: “Mas o que punge nas páginas quer poéticas quer
prosaicas, críticas ou não críticas - de Jorge de Sena é o
fragor do seu sarcasmo, a ferocidade do seu humor, tendo em
vista a cultura que, de modo algum, renega, uma vez que,
renegando-a, seria como renegar-se a si próprio. Também para ele
a sua pátria era a língua portuguesa.”
O lugar de exílio de Jorge de Sena foi sempre Portugal, ainda
que tenha encontrado a morte em Santa Bárbara, Estados Unidos,
quando era possuidor de um passaporte que lhe conferia a
nacionalidade brasileira. |