Caos e
utopia em José Alcides Pinto
Floriano Martins
Segundo
o poeta e compositor estadunidense John Cage, o fim de toda e
qualquer utopia estaria na raiz do envolvimento do ser humano
com aquilo que está realizando. Não haverá mais utopias se acaso
as pessoas não mais se encontrem dentro daquilo que fazem.
Já o
búlgaro Elias Canetti nos lembra que “para dizer algo sobre este
mundo que tenha algum valor, o poeta não pode afastá-lo de si ou
evitá-lo”. O caráter definitivo de toda e qualquer escritura
poética, assim, estará irretorquivelmente pautado pela
intensidade da relação entre a aventura e a invenção. Diz ainda
Canetti: “o poeta está mais próximo do mundo quando carrega em
seu íntimo um caos”.
Caos e
utopia. Estas sempre me pareceram duas versões de um mesmo
problema, questão essencial que move os destinos de toda
escritura poética. A palavra chave então seria pura e
simplesmente envolvimento. Não tratamos aqui diretamente
das relações estéticas entre ser e linguagem, posto que seu
território é de tal maneira indispensável que enfocá-lo soaria
como grosseira obviedade. Todo e qualquer poeta sabe que não
pode iniciar-se em seu próprio caos, em sua própria utopia, sem
os necessários apetrechos da linguagem, sem um mínimo de
convicção estética acerca de suas idéias.
Neste
sentido, um grave padecimento da poesia brasileira
contemporânea, em suas linhas gerais, é uma habitual constância
na utilização de certo devaneio da linguagem, de certo grau de
futilidade, um pouco próximo da coloquialidade inconsistente dos
dias de hoje, fartamente procriada pela retórica dos meios de
comunicação; há também, funcionando quase como contraponto, uma
espécie de estranhamento da aventura humana a nível da
linguagem, espécie de anulação do princípio básico da
comunicação poética.
A meu ver,
a soma desses dois fatores representa aquilo que chamo de
intoxicação da linguagem poética, um tipo de enfraquecimento
gradual e quase letal de nossos recursos estilísticos até então
alcançados. A título de exemplo, valem as referências à chamada
“geração mimeógrafo” dos anos 70 e aos herdeiros diretos/diletos
do concretismo.
Contudo,
retomemos a idéia central destas páginas: as relações entre
aventura e invenção na obra de um de nossos importantes poetas,
o cearense José Alcides Pinto (1923). Julgo procedente aqui
definir uma espécie de antes de tudo, de maneira a não
haver, por quem quer que seja, um tipo de jogatina vulgar em
torno de minhas palavras. Considero a discordância um recurso
essencial a todo diálogo, e não um mero artifício da mídia
para render novas edições. Desta forma, assim estabeleçamos
minha posição em relação à poesia de José Alcides Pinto: suas
proezas verbais jamais conseguiram ir além de seu real
envolvimento com o mundo.
Quando me
refiro a proezas verbais, faço-o sobretudo em duas instâncias:
sua própria defesa de um excessivo rigor consigo mesmo (“em
matéria de arte, nada pode (nem deve) ser improvisado”, disse-me
certa vez) e o inquestionável fato de que este poeta erigiu, até
a publicação, pelas Edições GRD (Rio de Janeiro, 1966) de sua
obra poética reunida (1952-1964), uma poesia digna de uma
cuidadosa avaliação crítica, empenhada na verificação de seus
recursos, na particularíssima modulação de sua voz, em sua
estranheza imagética e no diálogo singular que mantinha com a
modernidade. Lamentavelmente esta leitura crítica de sua poesia
nunca existiu. Alguns escritores se aproximaram, a exemplo de
Gilberto Amado, Fausto Cunha e Cassiano Ricardo, de um diálogo
crítico com este poeta.
Neste
sentido, lhe foram concedidos alguns atestados poéticos. Aqueles
firmados à pressa comentam sua marcada aproximação com o
discurso poético de Antonin Artaud, colocação que soa como
insustentável lugar comum, posto que toda a miséria da poesia
parece remeter unicamente ao poeta francês; há aqueles mais
polidos, que tratam de salientar a destreza verbal do poeta,
seus recursos às redondilhas de extração popular, a
predominância dos decassílabos, destacando por vezes a precisão
dos versos livres; cheguei a ler comentários acerca da
estranheza temperamental do poeta, um tipo vampiresco,
possivelmente da mesma escola do velho e cansado Dalton
Trevisan.
Cassiano
Ricardo fez uma observação de grande interesse, ao salientar que
o poeta “integra em si os próprios momentos em que andou,
demoniacamente, fora de si”. Trata-se de uma passagem do
prefácio da mencionada reunião de sua obra poética, edição cujo
título é o mesmo de seu livro mais essencial: Cantos de
Lúcifer. Este volume representa uma espécie de divisor de
águas na produção poética de José Alcides Pinto. A nosso ver,
após a publicação deste Cantos de Lúcifer (reunião de
seus livros publicados até então e mais a inclusão do inédito
Cenas), nosso poeta iria perdendo seus principais sinais de
vida, sua tessitura poética originalíssima, salientada por
recursos múltiplos e intensamente comprometidos com a
modernidade, onde destacamos a utilização do poema em prosa, sem
dúvida seu grande contributo para a poesia brasileira.
Em
contrapartida, o período marcado pelos livros seguintes inicia
uma fase que podemos distribuir em duas instâncias: os equívocos
tradicionais de nossa poesia engajada (quando o poeta claramente
se mostra um instrumento - no mínimo risível - do poder) e a
conversão (de um moralismo inconsistente) do insólito em
agressividade banal, recorrendo, em seu caso específico, à
máscara desgastada da sexualidade, do atributo fugaz de nossos
complexos freudianos. De um lado a excrescência de livros como
Ordem e desordem (1982) e O sol nasce no Acre
(1991), enquanto que de outro a moralidade folhetinesca no
tocante à escritura de livros como Relicário Pornô (1982)
e Poeta fui (Ora direis) (1993).
Sua
publicação mais recente, Os cantos tristes da morte
(1994), reproduz iguais equívocos, então acrescidos de uma outra
perspectiva do mesmo problema: a acomodação crítica por parte de
outros poetas. Reúne a edição deste mencionado livro dois
comentários acerca de seu livro imediatamente anterior, Poeta
fui (Ora direis), textos firmados por Carlos Augusto Viana e
Adriano Espínola. O primeiro não vê mais que uma óbvia revelação
de temas recorrentes, plenamente incapacitado o crítico de
questionar os indicativos poéticos de José Alcides Pinto; já o
segundo, poeta por sua vez experiente no trato do elegíaco, não
consegue ir além da identificação enumerativa dos atributos
formais do autor em referência.
Retornemos, no entanto, à raiz do problema: caos e utopia, como
salientado no início destas breves notas críticas. Me parece que
aquilo que Cassiano Ricardo situa como “demoniacamente fora de
si”, é o ponto de partida para elucidar a questão seguinte:
teria cessado em Alcides Pinto o envolvimento com o mundo ou
simplesmente o poeta teria banalizado a relação entre aventura e
invenção? Abre-se ainda uma outra indagação: quando não carrega
mais em si nenhum caos, como pode cumprir então o poeta sua
principal função: a de resguardar a linguagem? Que pode a
linguagem, vale insistir, quando cessa toda utopia?
Em alguns
momentos de uma antiga conversa nossa, o poeta me falou das
circunstâncias que o envolviam quando da escritura de alguns de
seus principais livros. Acerca de seu primeiro poemário,
Noções de poesia e arte (1952), disse-me que o livro foi
marcado pela morte de sua irmã Gerci: “Essa dor ainda me
persegue (…) Talvez tenha sido sua morte, em plena mocidade, que
abriu esse vazio dentro de mim. (…) …sua imagem fixou-se em
minha retina com obsessão. Ela está presente, de uma forma ou de
outra, em toda a minha obra, principalmente na poesia”.
Comentando
acerca de Cantos de Lúcifer, refere-se José Alcides Pinto
à “consciência de uma dimensão nova, de uma inventiva poética”
que já vinha perseguindo com sofreguidão. Assim define o livro,
por sinal um dos poemas mais misteriosa e verdadeiramente
malditos (linhagem tão perseguida e raramente alcançada) da
poesia brasileira: “a redenção de uma alma perdida e que, de
repente, ressurge de seu próprio caos”.
Suponho
que o acertado no caso de José Alcides Pinto seja a afirmação de
sua gradual banalização de todo e qualquer tipo de
transcendência poética, uma espécie de vulgarização do exercício
poético, dessa aventura que melhor corporifica a relação entre
ser e linguagem. É absolutamente indiscutível o acentuado
empobrecimento poético da obra do autor cearense nas últimas
três décadas, hoje em completo estado de negação de tudo aquilo
que notavelmente atingiu até a publicação de sua obra reunida em
1966. O mais curioso, embora o presente artigo não comporte o
tema, é que o mesmo não se verifica no tocante à sua obra de
ficção.
Por último
confirmo minha defesa acerca daquilo que chamo de
envolvimento. As revelações de José Alcides Pinto, em torno
dos efeitos provocados pela morte de sua irmã, bem o atestam.
Não devemos, por extensão, esquecer que a noção de cultura que
hoje conhecemos nasceu exatamente com o culto dos mortos. Neste
sentido, uma irmã morta pode muito bem render seis décadas de
excelente produção poética, restando, no entanto, uma avaliação
mais severa acerca do gradual abandono do humano em nós,
deplorável estado que atravessa a humanidade neste final de
século. Recordemos ainda que, antes de discutirmos, em volta do
fogo, se o poema estava bem ao gosto da linguagem de turno,
considerávamos sobretudo o abraço poético do homem com sua
própria vertigem. Bem o sabemos: assim nasceu a poesia.
Que nossa
inquestionável decadência cultural não consiga estabelecer a
diferença entre um livro e outro de um determinado poeta, isto
não é razão para que se eleve o mesmo à categoria de master
ou que seja indiscriminadamente detratado. É igualmente
lamentável que as relações humanas tenham atingido o presente
estágio de vulgarização do indivíduo. José Alcides Pinto,
contudo, mesmo diante dos problemas aqui apontados, representa
um dos momentos de grande vitalidade da poesia brasileira,
merecendo ainda hoje uma revisão crítica de sua obra poética, de
maneira a situá-lo como presença fundamental no cenário da
poesia brasileira deste século. |