José
Alcides Pinto - Fúrias do oráculo
Floriano Martins
A
exemplo de outros grandes poetas deste século, confunde-se a
vida de José Alcides Pinto
com sua
obra e vice-versa, criador que constitui sua criação enquanto
signo de elaboração de si mesmo. Um de seus pares, Jean Genet,
dizia-se “intérprete dos desejos humanos, dos resíduos que
apodrecem nas prisões, debaixo das pontes, no fundo da fétida
podridão das cidades”.
Também José Alcides Pinto orientara sua obra por caminho bem
próximo. Em ambos observamos a mesma obstinada lucidez com que
se empenharam em testemunhar as inúmeras formas de derrocada da
condição humana, a voracidade depredatória com que o homem
dedicou-se à exploração e aniquilamento de si próprio. Se Genet
penetrara as sórdidas galerias das prisões e o mundo desolado do
homossexualismo, por sua vez José Alcides Pinto nos conduz pelos
labirintos assombrosos dos hospitais e manicômios e da
conflituada reflexão em torno dos aspectos religiosos da
existência. Duas visões singulares de um mesmo cenário de
miséria e absoluto desterro. Em tal sentido encontramos
similitudes entre livros como Nodre-Dame des fleurs e
Journal du voleur, do poeta francês, e Entre o sexo: a
loucura/a morte e O amolador de punhais, do poeta
brasileiro.
Disse
Genet: “Estamos todos condenados a uma reclusão solitária no
interior de nossa própria pele”.
Recolhemos em José Alcides Pinto: “Estou tão só e integrado na
solidão como uma árvore. E não há nada mais solitário do que uma
árvore, mesmo coberta de flores. Por trás de sua sombra há o
grande luto.”
Ou ainda mais dilacerante este outro exemplo: “Estou tão
só que nem meu corpo me faz companhia”.
No pórtico
do romance Os verdes abutres da colina (1974), lemos: “Eu
não escrevi este livro, mas quem o escreveria senão eu?” As
palavras de José Alcides Pinto nos fazem recordar um outro
importante escritor, Samuel Beckett, quando dissera, acerca de
sua própria obra: “Nada tenho para dizer, mas somente eu sei
como dizer isto”.
Não se trata, em nenhum dos casos, de um paradoxo, como quer a
crítica, mas sim da afirmação de uma singularidade e da
expressão de sua essencialidade. A exemplo de Beckett, também
José Alcides Pinto assumira para sua obra o testemunho de seu
próprio sentimento, dando forma à percepção pessoal de sua
experiência existencial. A linguagem encontraria sua identidade
ao meditar sobre a condição humana, é natural, mas desde que tal
reflexão tomasse por centro a aventura (metafísica, sim)
particularíssima do poeta. O vazio que enfoca a obra de Beckett
é da mesma natureza do conflito interior, sobretudo de ordem
mística, que caracteriza as personagens (criaturas evocadas
através) da obra de José Alcides Pinto. Em ambos nos deparamos
com a representação metafórica do verdadeiro inferno em que se
constitui a natureza humana. Se em Beckett o objeto da crítica é
a absoluta entrega do homem a um destino inevitável, em José
Alcides Pinto o que se encontra em questão são os atributos do
dualismo maldição/santificação, a atração pelo demoníaco e os
conflitos interiores de uma formação místico-religiosa. Em um,
intrigante imobilidade. No outro, dinâmica conflituada.
Distingue-os, sobremaneira, a presença constante da parábola em
Beckett, enquanto José Alcides Pinto identifica-se mais
claramente com o alegórico.
Inclina-se
a crítica em reduzir a dimensão da obra ficcional de José
Alcides Pinto, limitando-a inadvertidamente a dois elos
(formais) constitutivos: a linha de natureza psicológica e a
ambientação característica da denominada narrativa coloquial
realista. Ao escrever sobre Doutor Jivago, o romance de
Boris Pasternak, salientou Italo Calvino que “o significado do
livro deve ser buscado não na soma das idéias enunciadas mas na
soma das imagens e das sensações, no sabor de vida, nos
silêncios”.
Igual distinção deve aqui ser observada em relação ao que
denominamos de elos formais. Não permite a obra de José Alcides
Pinto a delimitação genérica usual. O tratamento poético que
imprimiu à totalidade de seus livros como que impede a leitura
de um romance a partir dos moldes tradicionais da crítica
literária. É possível que a falha advenha da absoluta falta de
uma leitura conjunta de tal obra. Se observarmos a soma
de seus delineamentos e encarnações, sobretudo o sabor de
suas inquietudes, não mais será possível tratar separadamente de
sua ficção e de sua poesia, ao mesmo tempo em que tornar-se-á
inconcebível não destacar o caudal de particularidades que
acrescentou ao universo da literatura brasileira.
Da
surpreendente trivialidade que caracteriza o teatro do absurdo,
sobretudo nos casos de Eugène Ionesco e Fernando Arrabal,
encontram-se ritmadas as ações cênicas de Equinócio
(1973),
única aventura dramatúrgica de José Alcides Pinto. Experiência
tardia em relação aos textos essenciais do teatro contemporâneo,
o que naturalmente a distancia de qualquer possível relação com
A cantora careca (Ionesco) ou Esperando Godot (Beckett)
- embora guarde íntima proximidade de ordem cronológica com O
arquiteto e o imperador da Assíria, de Arrabal -, o que se
deve aqui salientar é que este exercício dramatúrgico de José
Alcides Pinto atende, de maneira inquestionável, àquilo que
Ionesco definira como anarquia interior, ao defender que o texto
(a criação artística) deve fluir independente da história, dos
sinais de seu tempo, da circunstância peremptória ou qualquer
outra fonte de interferência externa. Acrescente-se ainda a
opinião do crítico José Lemos Monteiro,
segundo a qual “o fatalismo motivado pela concepção do absurdo é
o grande gerador do fantástico, do místico e do demoníaco em
José Alcides Pinto”.
Deve a
memória funcionar, na criação artística, não somente como um
espelho do passado, mas também como uma recuperação do futuro. É
algo como aquela noção constante em Homero, sobretudo em
Ulisses, de “não esquecer o retorno”. A este respeito possui
Calvino uma observação muito feliz, ao afirmar que “a memória
conta realmente só se mantiver junto a marca do passado e o
projeto do futuro, se permitir fazer sem esquecer aquilo que se
pretendia fazer, tornar-se sem deixar de ser, ser sem deixar de
tornar-se”.
Se tratássemos aqui de uma definição de estética pessoal, diria
que me sinto francamente inclinado por um texto cuja
dramaticidade implique com furor e delícia uma charmosa relação
entre o trágico e o lírico. Não pode o artista - ao menos, me
parece - fugir do entendimento de que só a arte poderá evocar
uma circunstância ao mesmo tempo de assombro e fascinação,
integrada em uma forma e um conceito que encarnem a beleza e a
proporção, a harmonia e a perfeição, à medida da acertada
definição de Fiedor Dostoievski. A partir desta perspectiva,
encontra-se o universo temático preponderante em toda a obra de
José Alcides Pinto regido pelos acontecimentos de seu passado, o
leque de experiências vivenciadas pelo poeta, seja a infância no
povoado de Alto dos Angicos (em seus hábitos extremamente
supersticiosos), a morte prematura de sua irmã Gerci, seu
espírito aventureiro (que o conduzira por caminhos sinuosos
através de cidades como Recife e Rio de Janeiro) ou as inúmeras
outras paisagens insólitas de sua vida.
Nasceu
José Alcides Pinto a 10 de setembro de 1923, no povoado de São
Francisco do Estreito, distrito de Santana do Acaraú, na região
norte do Estado do Ceará. De formação entrecortada por inúmeros
acontecimentos, da lavoura ao jornalismo palmearia uma
insondável extensão, tendo acumulado um rol de subempregos que
engloba atividades como as de servente de pedreiro, ajudante de
padeiro e bedel de alunos. Igualmente extensa é sua experiência
como jornalista, havendo colaborado com os principais jornais de
Fortaleza e do Rio de Janeiro, no decorrer das décadas de 50 e
60. Durante este período assinou inúmeras matérias, enfocando
assuntos diversos, a exemplo de textos críticos sobre autores
nacionais
e temas da ordem do antiregionalismo, do erotismo e as novas
tendências do romance brasileiro. Reproduz a seleção de
entrevistas compiladas neste volume alguns memoráveis palmos de
terra cumpridos por este notável poeta. Destaquemos, com efeito,
seus estudos de biblioteconomia, através da Biblioteca Nacional,
vindo a especializar-se em tal área através do Instituto
Brasileiro de Bibliografia e Documentação (IBBD), assim como o
cargo de redator do Ministério de Educação e Cultura (MEC), que
ocupou por vinte anos, tendo lecionado tanto na Universidade
Federal do Rio de Janeiro quanto na Universidade Federal do
Ceará. Não cabe aqui, no entanto, avaliar o mérito da decisão de
José Alcides Pinto em abandonar a clara fertilidade de seu
currículo, em nome da implantação de um espaço único de
dedicação à criação literária. Já se passaram algumas décadas e
foram muitas as dificuldades que enfrentou a partir daquele
momento. Leva o poeta, desde então, uma vida de resignação e
recolhimento. Guarda, contudo, uma sabedoria sempre peculiar,
uma visão particularíssima e rara entre nossos escritores acerca
da função que deve desempenhar um poeta em relação a seu tempo.
Ciente sempre de que, sendo a linguagem em si o fundamental
abismo que nos separa uns dos outros, é, ao mesmo tempo, a única
chave de que dispomos para nos relacionarmos entre nós.
Diz
apropriadamente Dante Milano que “não havia nada de tão
importante assim no modernismo, como se propalou. Ele acabou com
o academismo, que dominava no Brasil inteiro, e essa foi a
vantagem”.
Contudo, esse academismo - entendido aqui também como expediente
retórico de recusa ao aspecto personalíssimo da criação em si -
de que fala Milano, de certa forma uma das tônicas mais graves
de nossa poesia, voltaria a reinar com a Geração de 45. Se é bem
verdade que a mesma buscaria acentuar a necessidade de clara
definição estética na realização do poema, o fato é que acabaria
se excedendo em tal premissa, despovoando a poesia daquilo que
Ferreira Gullar chamaria de “dimensão fascinante da linguagem”,
ou seja, sua carga de imprevisibilidade, de assombro, a presença
inequívoca do maravilhoso, enfim, sua verdadeira dimensão
humana. Julgo cabível ao momento uma lúcida explanação de Ivan
Junqueira: “Quando Mallarmé sentenciou que poesia se faz com
palavras, e não com idéias, não pretendeu em absoluto - como
depois alguns entenderam - instaurar o reino frio e impessoal de
uma palavra que fosse alheia ao discurso ou à emoção, de uma
palavra que não estivesse a serviço senão de si própria e do
ludismo que lhe inflama o significante. Quis o autor de Un
coup de dés apenas delimitar os domínios de uma arte cujo
veículo essencial e irredutível é a palavra, dando assim ‘un
sens plus pur aux mots de la tribu’. E o fez exatamente no
momento em que, após as supremas conquistas poéticas de
Baudelaire, Rimbaud e Verlaine, essa mesma palavra se perdia na
rígida retórica do parnasianismo e no decadentismo penumbrista
de fins do século XIX.”
Entre os
principais poetas que integram a mesma geração de José Alcides
Pinto encontram-se os nomes de João Cabral de Melo Neto (1920),
Darcy Damasceno (1922-1988), Ledo Ivo (1924), José Paulo Paes
(1926), Francisco Carvalho (1927), Ferreira Gullar e José
Santiago Naud (ambos nascidos em 1930) e Gilberto Mendonça Teles
(1931). Embora tenham, em boa parte, permitido a identificação
de seus nomes com algumas circunstâncias escolásticas da
literatura contemporânea - o vínculo de João Cabral e Ledo Ivo
com a Geração de 45, assim como as relações diretas com o
concretismo em Ferreira Gullar e José Alcides Pinto -, me parece
mais acertado incluir a todos naquela vertente denominada por
Gilberto Mendonça Teles como “poetas sem geração”,
vertente que não constitui uma anomalia, mas sim uma outra
característica de vital importância para a poesia. Para alguns
destes poetas, os modelos inaugurais - as fontes sedutoras a
nível de influências (identificações) - encontravam-se definidos
a partir da obra dos simbolistas franceses. Entre os
brasileiros, o destaque maior seria a presença inconfundível de
Augusto dos Anjos.
Estendo-me
aqui na demarcação geracional naturalmente impelido pela correta
vertente salientada por Gilberto Mendonça Teles. É bem verdade
que há abismos inquestionáveis que praticamente impossibilitam
uma analogia entre os poetas aqui relacionados, de João Cabral
ao próprio Mendonça Teles. O estratégico, neste momento, é
justamente não permitir uma valorização geracional sobrepujando
o altíssimo valor estético individualmente alcançado por estes
poetas. São, portanto, como entendo, superiores em tudo aos
ditames estéticos, em grande parte redutores, das gerações - ou
segmentos escolásticos - a que estiveram ocasionalmente ligados.
Além de sua própria poesia, cujo universo múltiplo e extenso não
cabe ao presente estudo deter-se em averiguação mais detalhada,
bastaria aqui referir-me às relações diretas que alguns destes
poetas estabeleceram com seus pares em outros idiomas, através
das inúmeras traduções e estudos críticos que realizaram, por
sua vez inestimável contributo à formação de nossa cultura.
Pensemos, por exemplo, nas traduções de Jean-Arthur Rimbaud,
Alfred Jarry, Paul Valéry, Yanni Ritsos, levadas a termo,
respectivamente, por Lêdo Ivo, Ferreira Gullar, Darcy Damasceno
e José Paulo Paes.
No caso
específico de José Alcides Pinto, ele próprio já declarara haver
recebido “influências dos chamados poetas videntes ou
iluminados, como Baudelaire, Rimbaud, Poe, Byron, e Artaud,
concluindo: “Eu acho que a vida é diabólica. Sou uma pessoa em
sintonia com o mundo desconhecido e a minha própria norma de
vida, como aventureiro, foge ao comum das coisas.”
No tocante à sua ficção, será suficiente transcrever uma
observação de José Lemos Monteiro: “Na prosa narrativa, pela
temática do absurdo, José Alcides parece herdar os motivos e
concepções de Albert Camus,
Genet e Henry Miller, entre outros. Sem esquecer naturalmente
Franz Kafka, pela profundidade de sua mensagem e riqueza de
simbologia que seduzem a qualquer escritor de nosso tempo
ansioso por tematizar a condição humana em um século de
angústias.”
Residindo
já no Rio de Janeiro e sob a chancela editorial dos Irmãos
Pongetti - que viriam a editar os mais importantes volumes de
sua poesia -, organiza José Alcides Pinto (então assinando-se
tão somente Alcides Pinto) duas interessantes antologias da
poesia brasileira. A primeira delas, Antologia de poetas da
nova geração (1950) foi uma realização compartilhada com
dois outros escritores, Ciro Colares
e
Raimundo Araújo. A outra, A moderna poesia brasileira
(1951), tem por peculiaridade a inclusão, em sua totalidade, de
nomes inteiramente desconhecidos no cenário nacional, aspecto
este ressaltado logo no prefácio, assinado por Aníbal Machado,
ao afirmar que “a estrada da poesia, com seus braços e
ramificações, é uma só: por ela transitam os que procuram
transcender a sua condição humana e tirar do espírito os mundos
imaginários que o povoam em estado de nebulosa”. Ressalta o
organizador, por sua vez, que uma tarefa como a que empreende
exige, antes de tudo, “o gosto do Belo, e este gosto é a mais
das vezes prejudicial a quem toma dessa iniciativa”.
Representava Aníbal Machado, naquela ocasião, um importante
papel de aglutinador da nova geração. Em sua casa reuniam-se com
freqüência nomes como Álvaro Moreira,
Lêdo Ivo, Adonias Filho, Walmir Ayala e José Alcides Pinto. Em
1951, Aníbal Machado havia declarado sua filiação ao
surrealismo. Também na mesma época Mário Faustino imprimia
sua notável contribuição nas páginas do suplemento dominical do
Jornal do Brasil, através de inúmeras traduções de
autores fundamentais para a poesia contemporânea. Na poesia, já
haviam estreado, entre outros, João Cabral (Pedra do sono,
1942), Lêdo Ivo (As imaginações, 1944), José Paulo Paes (O
aluno, 1947) e Ferreira Gullar (Um pouco acima do chão,
1949). José Alcides Pinto publicaria seu primeiro livro em 1952:
Noções de poesia & arte.
No curso
estético de toda a obra de José Alcides Pinto, excetuando-se a
publicação de Concreto: estrutura visual-gráfica (1965) e
As águas novas (1975), constitui acidente de quase
nenhuma conseqüência seu vínculo ao concretismo, muito embora
tenha chegado a fundar entusiasticamente uma sucursal
concretista em Fortaleza, ao lado de dois outros poetas: Antonio
Girão Barroso e Pedro Henrique Saraiva Leão. Tal acontecimento
se deu em 1956, estendendo-se ainda por 1957 e 1959, datas de
realização das exposições que expunham trabalhos de diversos
autores cearenses, ao lado de obras de Pedro Xisto, Décio
Pignatari, Haroldo e Augusto de Campos. Contudo, podemos
observar este vínculo de José Alcides Pinto com o concretismo
sob o mesmíssimo prisma de outro semelhante caso, o de Ferreira
Gullar. Segundo o poeta maranhense, “a minha maneira de ver o
problema da poesia sempre foi diferente e muito ligada à poesia
que eu fazia antes. Com o mesmo sentimento da palavra, do
espaço, do silêncio, e é o mesmo que me orientou a minha
experiência, na fase concretista e na fase posterior. Então, a
rigor, nunca fui um poeta concreto mesmo. Minha poesia tem
assunto, tema e objetivação.”
Antes da experiência concretista, já havia publicado José
Alcides Pinto alguns livros que claramente definiam uma poética
tanto pessoal quanto intensamente renovadora, como é o caso de
Pequeno caderno de palavras (1953), Cantos de Lúcifer
(1954)
e As pontes (1955). Posteriormente consubstanciaria tal
poética em outros títulos igualmente essenciais: Ilha dos
Patrupachas (1960), Ciclo único (1964), Os
catadores de siri (1966) e Projeto rural para receber o
poeta Artur Eduardo Benevides na
fazenda Equinócio
(1981).
A
particularidade das desconstruções frasais levadas a termo por
José Alcides Pinto em alguns de seus poemas desta época - assim
como em trechos do romance Entre o sexo: a loucura/a morte
(1968) - melhor encontra equivalência em Antonin Artaud,
sobretudo em Pour en finir avec le jugement de dieu
(1948), livro que ainda hoje lhe exerce enorme fascínio -
recordemos que a novela O criador de demônios (1967)
reproduz, a título de epígrafe, a íntegra de “Oração”, poema de
Artaud em tradução do próprio José Alcides Pinto. Também
poderíamos pensar, não com certas reservas, no argentino
Oliverio Girondo, levando em consideração seu En la masmédula
(1954), observado pela crítica como uma espécie de “comoção
intensificada”, ou seja, a linguagem utilizada na exasperação de
sua “devoção vitalista” (segundo terminologia de Saúl Yurkievich),
algo bem distinto do enfoque concretista.
O fato é
que, a exemplo da poesia de Ferreira Gullar, também em José
Alcides Pinto - neste caso, destacando-se a presença de uma
linguagem fragmentada, entrecortada por imagens bruscas,
violentas, e a busca vertiginosa, atormentada, de “mais
realidade”, tendo por modelo central a experiência romântica -
localizamos a presença de “assunto, tema e objetivação”. Desta
forma, tanto se trata de equívoco querer imprimir valor
acentuado à sua passagem pelo concretismo, quanto tentar
inseri-lo no âmbito da Geração de 45 - como foi recentemente o
caso da exposição comemorativa “Geração de 45/50 anos” (1995),
realizada em São Paulo sob os auspícios do SESC e do Clube de
Poesia.
Possivelmente em função de seu envolvimento com o mundo abissal
da criação, tragado por sua vertigem alucinatória, ou pura e
simplesmente por não sentir-se inclinado àquela função crítica
que todo poeta moderno deveria assumir, segundo um
fatalismo de turno, deteve-se José Alcides Pinto na tarefa de
tecer uma obra que superasse a ambientação temática e
estilística de sua época. O épico e o fantástico que realiza em
seus livros não guardam relações de similitude com seus pares na
literatura nacional, sobretudo tomando-se por referência a saga
do romance nordestino - insiste erroneamente a crítica em situar
sua Trilogia da maldição em um mesmo modelo de
regionalismo de Fogo morto, de José Lins do Rego.
Observe-se ainda que o epos em José Alcides Pinto, a
exemplo exatamente da mencionada Trilogia da maldição, é
fruto de um cenário idealizado, constituindo claramente
deformação e não reconstituição da história.
Em face da
insistência em localizarmos uma identificação do poeta com algum
escritor brasileiro, julgo que não se poderia pensar em outro
exemplo senão em Clarice Lispector. Digo isto tanto em função do
grau de sublevação genérica que a obra de ambos leva a termo,
como também pela ordem de reflexão filosófica que teceram. Tanto
nos recursos de linguagem, quanto na atmosfera insólita, entre
assombrosa e risível, dos diálogos travados entre suas
personagens. Seja nas novelas, contos ou romances, é nítida e
indiscutível a presença do poeta. Pousa em ambos a mão severa de
Kafka, sem que, no entanto, torne-se esse contato um
acontecimento de proporções negativas. Encontram-se ambos entre
os poucos escritores no Brasil que exploraram as sinuosidades da
psique humana com tamanho rigor e propriedade. Destaquemos - em
uma trilha paralela - a amizade de que gozaram em certo momento
de suas vidas, as constantes debilidades financeiras
características da vida de cada um, a nítida ambientação de
questionamento filosófico em torno de algumas falhas plenas,
variando entre si justamente de acordo com a singularidade de
cada autor.
Um dos
aspectos fundamentais na narrativa de José Alcides Pinto é sua
relação com o tempo, cuja identificação precisa não nos leva
senão à noção de um tempo múltiplo, a exemplo do que Borges chamara
de “tempo ambíguo da arte”.
Apresenta-se sua narrativa como um modelo incomum de movimento,
onde cada livro (texto) é o registro da continuação de outro,
continuado em um seguinte que, por sua vez, continuara a si
mesmo, mesclando, em sua estrutura enganosamente atemporal,
epos, arquétipos e motivos poéticos - sem falar dos aspectos
de cunho autobiográfico, cuja presença é constante -,
confirmando a marcação nítida de seu aspecto ontológico,
tratemos da transfiguração fantástica da Trilogia da maldição,
do conflito lancinante que percorre as páginas de O amolador
de punhais ou da simbologia terrificante da angústia
instalada em Tempo dos mortos e O criador de demônios.
É naturalmente legítima a liberdade do autor ao repetir cenas,
nomes e mesmo particularidades psicológicas de personagens na
passagem de um texto a outro. O Pe. Tibúrcio da Trilogia da
maldição não é senão uma espécie de contraponto sutil do Pe.
Hugo de Tempo dos mortos, transplantado do cenário rural
para uma ambientação definida por sua urbanidade fria e
impessoal. Observe-se ainda um ideário de padecimentos morais em
todos os textos, deflagrado por personagens que não cabem em si,
cuja angústia ou aflição são tamanhas que se mostram sempre na
expectativa-limite de uma ação que reverta tal estado
psicológico. Não se trata de súplica ou suplício - os
protagonistas não sofrem ou impõem diretamente a ação, uma vez
que observada em sua carnalidade -, mas sim da presença de um
tormento constante, reflexão incansável acerca de um tipo
qualquer de falha moral. Contudo, a estética desse suposto
infortúnio encontra-se pautada por aqueles conceitos básicos do
surrealismo: amor, liberdade, poesia. O derrotismo apontado pela
crítica superficial como sendo a chave da obra ficcional de José
Alcides Pinto não é senão sua contestação crítica em relação ao
estado de debilidade estarrecedora em que se encontra o homem de
seu tempo. Diz o protagonista anônimo de O amolador de
punhais: “onde o amor será uma maldição, nada lembrará o
sonho ou a mocidade”.
Quando um
determinado poeta é tocado por uma intensa capacidade de
renovação da linguagem, é possível que a parcela final de sua
obra não vá além da mera repetição de seus recursos renovadores.
Verificamos em alguns casos até mesmo uma redução de seus
atributos inventivos. Um caso bastante conhecido entre nós é o
de Carlos Drummond de Andrade. A este respeito comentou João
Cabral de Melo Neto: “era um poeta que muitos anos antes de
acabar sua obra não se renovava mais. A obra dele continuava
aquilo que ele havia aprendido.”
Recorreram a tal exemplo tantos maus poetas, que Drummond acabou
tornando-se uma espécie de paradigma desta questão. Curiosamente
o próprio João Cabral incorrera no mesmo ato falho. Ivan
Junqueira nos lembra, por outro lado, a possibilidade de um
malogro incidental no corpo geral da obra de um grande poeta. É
o caso de História do Brasil (1932), na bibliografia de
Murilo Mendes. O equívoco deste livro é tamanho que, recorrendo
às palavras do próprio Ivan Junqueira, “traz de novo à tona um
problema que há muito nos preocupa: o de se dizer cegamente amém
a todas as tolices em que incorreram os modernistas”.
Quando o
jornalista Lira Neto me convidou para escrever sobre a poesia de
José Alcides Pinto,
em função de uma homenagem que lhe prestaria o jornal O Povo,
não imaginei momento mais oportuno para observar dois aspectos:
por um lado, anotar que não havia registro até então de uma
visão crítica do conjunto da obra deste poeta, aspecto este que
nos furtava a avaliação indispensável de suas reais
contribuições; e observar, por outro lado, alguns equívocos
ocasionados justamente pela repetição de certos recursos
renovadores ou mesmo pelo descrédito de sua real contribuição,
malogro que pode muito bem ocasionar um retrocesso em relação às
conquistas literárias de nossa cultura. Neste sentido, observei
que a decantada natureza fescenina de um livro como Relicário
pornô (1983) encontrava-se, em termo de linguagem poética,
muito aquém de seus pares, a exemplo de Safo ou Gregório de
Matos, constituindo-se, quando muito, em uma repetição
infrutífera de experiências anteriores. A ocasional polêmica
gerada por um livro desta natureza - fato extensamente
registrado na imprensa cearense, por ocasião do lançamento do
mencionado Relicário pornô - não acusa senão o estado
embrionário, ou mesmo retrógrado, de uma determinada cultura.
Outro
aspecto que questionei foi o deslize de natureza forçosamente
engajada, retórica folhetinesca dos instantes mais desprezíveis
da literatura brasileira, deflagrados a partir de incidentes
como o CCP, a série “Violão de rua”, e algumas outras
equivalências que se alastrariam sobretudo pelo universo
estético (se ali podemos detectar algum sentido estético) da
chamada “geração mimeógrafo”. Se na ocasião relacionei os
equívocos que havia anotado na recente produção de José Alcides
Pinto com base no que chamei de envolvimento do poeta com seus
próprios signos, o fiz, em parte, movido por uma observação de
Ivan Junqueira, quando afirma que “o pior que pode acontecer a
um poeta é ser distraído”.
O espaço sempre exíguo da imprensa não nos permite um
delineamento mais eficaz de nossas idéias. Termos como
“envolvimento” e “distração” podem muito bem estar ligados a um
outro curioso aspecto: o legado da indiferença, que substitui o
prazer estético pela evidência do simulacro. Por outro lado, o
que naquela ocasião chamei de “vulgarização do exercício
poético”, no tocante à produção mais recente de José Alcides
Pinto, quando muito poderia ser substituído, a exemplo do
ocorrido com Murilo Mendes, por malogro ocasional. Tal evidência
não diminui, é bom que se diga, o valor da obra em si deste
excepcional escritor. Tão somente alerta para uma necessidade de
compreensão histórica com base em cada estágio que galgamos em
nossa vida. Nenhuma aventura permite o retrocesso, sobretudo no
âmbito da criação artística.
NOTAS
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