P R O J E T O   E D I T O R I A L   B A N D A   L U S Ó F O N A

 

 

J O R N A L   D E   P O E S I A   |   F O R T A L E Z A l C E A R Á l B R A S I L
COORDENAÇÃO EDITORIAL   |   SOARES FEITOSA | FLORIANO MARTINS
2000-2010
 

 

 

 

BANDA LUSÓFONA | PORTUGAL

José Correia Tavares | (1938)

José Correia Tavares: Quadras na funda

Júlio Conrado

Liga-me a José Correia Tavares uma amizade de vinte e cinco anos que tem por referência axial a solidariedade literária. Não partilhamos o mesmo espaço político-ideológico, não somos sequer amigos íntimos, naquela medida em que o pragmatismo da visita e a proximidade afectiva dos que nos são próximos sustentariam um colateral reforço da nossa amizade, temos porventura nas nossas respectivas cabeças soluções diferentes para os desconcertos do mundo – ele é um homem de fé na bondade de uma sociedade melhor, eu sou um céptico estrutural que desconfia de todas as engrenagens criadas e postas em funcionamento em nome da felicidade humana mas raramente ao seu serviço. A noção de amizade comporta, no que me diz respeito, um distanciamento semântico relativamente, por exemplo, a um certo conceito de camaradagem; mas passa, no que a ambos concerne, por uma atitude de tolerância face às opções que cada um julga serem as melhores para que no corpo do universo – não fazemos a coisa por menos –não se abram feridas insuturáveis. Atitude que ajudou a tornar duradouros os equilíbrios, isentos de mácula, de todos estes anos de convivência salutar.

Ao falar de convivência, já se percebeu, falo necessariamente mais de convivência intelectual do que de convivência no dia-a-dia. Ao falar de convivência falo necessariamente de admiração. Admiração por alguém que participou na guerra colonial, num quadro de risco físico extremo; que sobreviveu a um acidente de viação dramático; que assumiu o desconforto de uma situação profissional adversa por não pactuar com os esquemas de corrupção que à sua roda se organizavam; que enfrentou uma campanha jornalística malévola, desproporcionada, infundada e, o que é pior, conduzida por processos deontologicamente equívocos; e que, enquanto dirigente da Associação Portuguesa de Escritores, vem desenvolvendo a acção extraordinariamente meritória de incrementar a criação e a manutenção dos prémios literários, contribuindo, à custa de muito sacrifício pessoal, para dar lugar ao que muito boa gente chama a “inflacção dos prémios” esquecida de que ainda há uma vintena de anos se entoavam pungentes lamentações pela escassez desses mesmos prémios. Não há fome que não dê em fartura ? Pois ainda bem que já não é preciso lamentarmo-nos por causa da inexistência de prémios literários em Portugal. Isso em larga medida se deve à tenacidade e ao brio com que pessoas como o José Correia Tavares atacaram o problema - e permitam-me que recorde a actuação de uma sua grande predecessora, nessa área, a malograda e sempre presente Wanda Ramos.

Caracterizadas assim, a traço muito largo, as causas que justificam a minha presença aqui, no que respeita ao Amigo e ao Homem, falta falar do primeiro pressuposto da amizade que invoquei: a solidariedade literária. Foi-me pedido que hoje, dia do lançamento oficial do novo livro de José Correia Tavares, dissesse algumas palavras alusivas à obra, ao que de pronto anui, liberto do ónus da análise crítica de fundo - quem quiser ler crítica literária que se debruce sobre o elaborado prefácio de Silvina Rodrigues Lopes a Leitura dos Actos – e suficientemente couraçado contra a obrigação de “dizer bem” de algo que me cativou, que me divertiu e que, em determinados lances, me surpreendeu deveras. Como o que vou dizer não é nenhuma obrigação - é o que realmente sinto – também desse ónus me considero totalmente desonerado. Vou, então dizer desta obra o que realmente me apetece, dado o grande espaço de manobra de que dispõe o curso do minha fala: a montante, está o José Manuel Mendes preparado para todas as eventualidades com todo o peso das instituições que representa; a jusante está a Silvina, impossibilitada já de escapar ao facto incontroverso de ter escrito um belíssimo ensaio para o livro. Estes dois pilares desencorajariam o mais pintado de vir intrometer-se entre eles. Porque arrisquei então ? Bom, o livro está bonito, os editores são simpáticos, o Luís Machado é um excelente actor e um reputado animador cultural, o José Manuel Mendes é um autor de referência - grande poeta, sobretudo - estando pois criadas as condições para que sejamos por uma tarde gente cordial, feliz e reconciliada com a vida. Afinal sempre sou um apreciador antigo da arte do autor em infernizar os dias daqueles que, com registo de culpas no cartório, têm a desgraça de ficar ao alcance da malícia das suas quadras. Para quê, então, ficar de fora de um momento destes ?

Também já se deve ter percebido que não vou dizer bem por dizer bem, só porque a hora é de festa. Dizer bem por dizer bem pode parecer insuportável tautologia que nem a amizade justificará, e apesar do profissionalíssimo prefácio de Silvina Rodrigues Lopes já conter todas as pistas técnicas que verdadeiramente importam à compreensão da obra e ao respectivo enquadramento literário, procurarei demonstrar o porquê da minha opção de gosto, rastreando alguns aspectos que possam constituir indicadores seguros do que no livro vivamente me interessou. É que, sendo a quadra uma modalidade versificatória eminentemente popular e o veio satírico um dos seus recursos porventura mais insistentemente aproveitados, o posicionamento do autor face a estas duas especificidades de recorrente utilidade faz com que a sua intervenção cultural suporte com êxito o desafio do tempo, tornando actuais e visíveis os contornos do seu recado, que, como veremos adiante, tem muito que se lhe diga.

Senão, vejamos: esta obra configura um aparatoso ajuste de contas de José Correia Tavares com o seu tempo. Cauciona-o um discurso repleto de sarcasmos, de ironia cortante, de raides fulminantes visando as debilidades do quotidiano mais-que-imperfeito em que lhe coube crescer e multiplicar-se. Danificados, não obstante, alguns bastiões do escândalo, da corrupção e da ambiguidade cívica, esse quotidiano sinistro obviamente oscila mas não cai. Pensar-se que uma quadra bem ajustada na funda do poeta e a pontaria correcta do arremesso podem alterar o equilíbrio dos desequilíbrios estruturais do mundo é puro desperdício de imaginação, mau-grado o gozo que dá acertar em cheio no toutiço do vilão – ou no de alguma vilona a subir na carreira a poder de testes de cama com o chefe (se alguém tem dúvidas, consulte no livro a página sessenta e nove).

No plano mais ambicioso da equação das diferenças primordiais, o que acaba por estar em processo no livro é a eterna querela do Bem contra o Mal. O poeta toma partido pelos humilhados. Ao lado destes, assume a luta aos corruptos, aos videirinhos, aos vira-casacas, aos falhos de verticalidade, mas também aos “grandes cães” de que fala uma das quadras. A sensação de ataque continuado ao que, sendo obscuro, é ainda assim tangível, decorre essencialmente do recurso insistente à segunda pessoa do singular, ao “tu”. O tratamento por tu, em Leitura dos Actos, é altamente pejorativo. O “tu”, revelador da proximidade do adversário, traduz o envolvimento do sujeito do poema nas incidências do conflito bipolar. Entre o “eu”, porta-voz do Bem, e o “tu”, portador de todas as ignomínias e desonras da condição humana, há um mano-a-mano feroz em que o perdedor é o “tu”, impiedosamente sovado pelo Bem no corpo da letra que o designa. De uma maneira jocosa, assassina, divertida ? É verdade. Uma sova e peras.

Ao consubstanciar no “tu” a maldade universal o emissor desta fala, o “eu”, torna claro ser ele fiel guardião da instância fiscalizadora e de castigo, enquanto ser moral casto e sem mancha; o outro, o “tu” perverso e venal, merece, indiscutivelmente, levar com o calhau na cabeça. No domínio do real, ou seja, dos valores, a vitória do Bem não se discute. Ela é absoluta, terrível, demolidora. Mas no plano da realidade concreta, comezinha, terra-a- terra, dos ganhos no terreno ? Terá o “eu”, proprietário legítimo da razão moral, força para castigar o “tu” a-moral, imoral ? Terá o “eu” ao seu serviço meios de acção para impor a educação severa de quantos se perfilam num largo painel de “vampiros”, “sacanas”, “papalvos”, “burros”, “mafarricos”, “safados”, “capados”, “ursos”, “abutres de belzebu”, “grandes cães”, “grandes ratos”, “filhos da curta”, etc. ? Como procederia o “eu” para endireitar a sociedade dos pecadores e dos pescadores em águas turvas, se tivesse a faca e o queijo na mão para o fazer?

Não vale realmente a pena entrar nesse tipo de especulação. O que se passa é que o “eu”, forte na razão, apenas da sua funda dispõe para a acção. A consciência dessa razão e, simultaneamente, da falta de força para conduzir os seus próprios actos – que também estão em leitura – às últimas consequências, remete-o para o exercício pleno do direito à indignação. E, aí, ele está como peixe na água. Acha assim uma saída para o desespero a que essa como que esquizofrenia social e existencial dramaticamente dá lugar. Compraz-se em alimentar a este nível uma luta completa. O ultimato ao vilão, isto é, o “tu” , para que se renda, contorcendo-se de remorso, arrependido das suas práticas de lesa-sociedade, não se inscreve no quadro da boa acção diária do escoteiro nem na cruzada de boa vontade do exército de salvação. O que se suspeita é que, mesmo que o vilão deite por terra o lenço branco, o gesto magnânimo do perdão venha a estar fora das cogitações profundas do “eu”.

José Correia Tavares coloca-se, portanto, numa primeira linha de censura dos “tus” mal comportados, reactivando a tradição do “escarnho” que vem, como bem sabemos, dos trovadores medievais, que tão bem se harmoniza com o nosso temperamento meridional e em que a quadra se apresenta como um dos instrumentos mais fiáveis para o fim em causa. A sociedade questionada sobreviverá – ela pode bem com umas quantas pedradas infalíveis. Mas pequenos ou grandes que sejam os danos provocados, eles serão sempre morais e ajudarão a trazer o homem que os provoca à dimensão pública da sua vital seriedade, apesar da amplitude do sarcasmo, da volúpia da ira, da irredutibilidade do juízo, da perícia no manejo da funda, da violência da diatribe, da superação da angústia pela ferocidade do verbo, da magnitude do desprezo...

Se, com estas palavras talvez pouco convencionais numa homenagem a um Amigo, ajudei a despertar o interesse por um livro inquestionavelmente polémico, cáustico e intratável, na linha do já conhecido Beijos e Pedradas – agora mais pedradas que beijos, a verdade se diga – terei justificado a presença nesta sessão. Embora lamente que o José Correia Tavares insista em publicar a sua poesia cronologicamente – os versos de Leitura dos Actos são de 1983 – o que sobremaneira dificulta a localização dos alvos, há nesta escrita méritos cristalizados que nada têm a ver com o tempo da sua elaboração – a expressão depurada, o léxico rico, as variantes sonoras na unidade rítmica do discurso e, enfim a recuperação de um tipo de poesia que, para aquilo para que o poeta a quer, não tem rival no elenco de outras soluções que se lhe apresentem à escolha.

 

 

O Projeto Editorial Banda Lusófona foi criado em janeiro de 2010, como complemento ao Projeto Editorial Banda Hispânica. Assim o Jornal de Poesia integra em sua plenitude a poesia de línguas portuguesa e espanhola. Aqui registraremos criação e reflexão, reunindo autores de distintas gerações e tendências, inclusive inéditos em termos de mercado editorial impresso. Aqueles poetas que desejem participar devem remeter à coordenação geral seus dados bibliográficos, seleção de 10 poemas e resposta ao seguinte questionário:

1. Quais são as tuas afinidades estéticas com outros poetas de língua portuguesa?
2. Quais são as contribuições essenciais que existem na poesia que se faz em teu país que deveriam ter repercussão ou reconhecimento internacional?
3. O que impede uma existência de relações mais estreitas entre os diversos países de língua portuguesa?

Todo este material deve ser encaminhado em um único arquivo em formato word, para o seguinte e-mail: agulha.floriano@gmail.com. Agradecemos também o envio de uma fotografia (jpg), assim como de textos críticos, livros de poesia e material jornalístico sobre o mesmo tema. O Projeto Editorial Banda Lusófona é uma fonte de informações que reflete, sobretudo, a ampla generosidade de todos aqueles que dele participam. O acesso a cada país deve ser feito através do selo correspondente.

 
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