A poesia portuguesa depois da revolução de Abril
Júlio Conrado
Os
acontecimentos de 25 de Abril de 1974 encontraram os escritores
portugueses maioritariamente agrupados, do ponto de vista
político, numa ampla frente antifascista e treinados na arte de
iludir a censura salazar-caetanista com toda a espécie de
artifícios por forma a que a sua mensagem de protesto contra o
estado das coisas chegasse até um público virtualmente
anti-situacionista, de consciência cívica sensível aos problemas
do país e por conseguinte atento aos sinais de mudança que os
livros continham nas entrelinhas. Tornou-se então imperioso
aprender a escrever em liberdade. Fora subitamente alargada a
faixa de consumidores da escrita em tempo de “liquidação” do
regime antigo e de ensaio de tomada do poder por uma parte das
forças de esquerda vencedoras. A liberdade de expressão passara
a nutrir-se da efervescente luta de classes no seio das
empresas, nas ruas e nos campos; da querela ideológica no seio
das famílias e em sectores moderados aturdidos com a espiral de
violência verbal dos grupos radicais. Não é, pois, de admirar
que os poetas, nos trabalhos produzidos a “quente”, exprimissem
as suas emoções utilizando uma linguagem tão terra-a-terra
quanto possível que os conservasse em harmonia sustentada com a
dinâmica revolucionária posta em marcha. É o momento em que os
escritores se tornam “outros”, seja porque a censura os trouxera
amordaçados e a realidade de distúrbio feliz produz neles o
efeito insólito da garrafa de espumante aberta com estrépito no
quarto escuro, seja porque as convulsões sociais ateiam neles o
fogo da palavra útil que é preciso alimentar por imperativos
éticos e de intervenção directa na vida dos povos, seja,
finalmente, pelo aparecimento de condições propiciadoras de uma
tranquilidade criadora afecta a escolhas livres mesmo se o
contexto socio-político, nalguma medida, tende de novo a
constrangê-las. A recondução da Revolução dos Cravos ao seu
inicial projecto democrático, o conturbado processo de
descolonização, a chamada crise das ideologias gerada pela queda
do Muro de Berlim e pela implosão do império soviético, tanto
geográfico como mental, terão contribuído para a perda de
coordenadas de alguns dos romancistas e poetas mais atreitos a
considerarem os seus livros contributos materiais para uma
irreversível ascensão à sociedade socialista, mas constituiram
fenómenos que estimularam o reencontro de muitos outros com o
prazer do texto, na medida em que puderam, passada a fase
orgásmica da ruptura, apaziguadas as pulsões, serenado o
discurso inflamado da paixão, culminar em liberdade as suas
experiências com resultados notáveis atendendo ao volume e à
pujança da obra concluída. O mínimo que se pode dizer é que, se
a revolução mobilizou os poetas numa conjuntura favorável à
intervenção directa destes na vida da comunidade, coagindo-os
transitoriamente a adiarem projectos de realização próprios,
aqueles que tinham realmente algo a dizer fora do quadro do
pragmatismo revolucionário acabaram por fazê-lo com invulgar
brilho, corroborando assim a convicção há muito vulgarizada
segundo a qual a poesia portuguesa, dada a sua alta qualidade,
constitui o género literário que melhor “representa” a
literatura do país, pese embora o facto de também o romance ter
contado, nos últimos vinte anos, com intérpretes de grande
nível, contrariando uma outra ideia feita que dava os
portugueses como estruturalmente ineptos para a prática de
modalidade tão exigente.
Cantigas, leva-as o vento
Num texto que se pretende da máxima abrangência relativamente a
um período tão extenso como é o que vai de 25 de Abril de 1974
até à actualidade, não é fácil evitar algumas generalizações nem
contornar com análises tecnicamente rigorosas a necessidade de
nomear, de lembrar, de não esquecer, porque se muitos são os
chamados e poucos os escolhidos, não é este um lugar de escolha
e sim de chamada. Comecemos por falar da canção de intervenção
na medida em que ela foi veículo privilegiado da poesia no
dealbar da liberdade. A Revolução nasceu, por assim dizer, a
cantar e constituíu o pano de fundo ideal para o desabrochar da
poesia como ela era então entendida por homens como José Carlos
Ary dos Santos, Joaquim Pessoa, José Jorge Letria, José Afonso,
Adriano Correia de Oliveira, Luís Cília, Manuel Freire, Sérgio
Godinho e Francisco Fanhais. Alguns destes nomes de referência
da esfera poético-musical tiveram grande influência na alteração
do gosto do público no sentido da adesão deste à poesia cantada
como “arma” contra a burguesia (terminologia e objectivos dos
poemas-canções da época). A canção foi o instrumento mais à mão
para fazer chegar a poesia ao povo e alguns dos que já eram ou
viriam a consagrar-se vozes de topo na poesia portuguesa das
últimas décadas estavam então conluiados com a música na
experiência única de transformar a coisa poética numa causa
popular de necessidade e urgência. A canção Grândola, Vila
Morena, de José Afonso, foi a senha para o arranque das
operações militares da madrugada de 25 de Abril e Ary dos Santos
(d)escreveu-a assim: “Disse a primeira palavra / na madrugada
serena / um poeta que cantava / o povo é quem mais ordena”. A fé
de Ary dos Santos no “povo unido” que “nunca mais será vencido”
levou-o a construir um poema-canção com base na palavra de ordem
célebre, importada do Chile revolucionário. Pedra Filosofal,
poema de António Gedeão de elogio ao futuro e à transformação do
mundo, foi escutada até à exaustão na balada de Manuel Freire.
Através de uma canção ouviu Natália Correia, emocionada, na
rádio, no dia seguinte ao da data-corte, o seu poema proibido
pela ditadura Queixa das almas jovens censuradas . “A
poesia está na rua” era vulgar dizer-se nesses dias de comer
estrelas na baixela da liberdade
muito por responsabilidade dos que a fizeram para ser cantada.
Se o sentimento de festa instalado na sequência da vitória dos
capitães, deu, com efeito, à poesia cantada, uma ressonância
nunca antes adivinhada, é preciso reconhecer na sua função
circunstancial precaridades que a evolução do processo
revolucionário e o percurso posterior dos próprios poetas
acabaria por confirmar. Abril não foi só ponto de partida, foi
também ponto de chegada. A frente antifascista dos escritores
não correspondia a qualquer unanimismo estético-literário: era
composta por grupos tendencialmente distintos que de diferentes
maneiras interpretavam a oposição à ditadura. No caso particular
dos poetas, havia-os de diversos matizes: os do conteúdo, os de
vanguarda, os obscuros, os elegíacos, os surrealistas, os
eróticos, os espiritualistas, os do quotidiano, os
estrangeirados, os da guerra colonial e alguns mesmo
realizando-se poderosamente sem ligação orgânica às linhas
preponderantes ou ainda revelando-se herdeiros assumidos do
património pessoano (influência não despicienda que Fernando J.
B. Martinho trata com o escrúpulo do historiador e com a
sensibilidade do poeta, que é, em vasta obra consagrada ao
assunto, que adiante mencionaremos com o merecido relevo) ou do
cesariano. Toda esta pléiade de poetas, unida na oposição ao
fascismo, festejou jubilosamente a derrocada do velho regime,
“caído de maduro”, como bem constatamos nos poemas de um céptico
culto, lúcido e furioso da estirpe de Jorge de Sena, siderado no
seu exílio de Santa Bárbara com o que em Portugal se passava: “
Qual a cor da liberdade? / É verde, verde e vermelha./ Saem
tanques para a rua,/ sai o povo logo atrás: estala enfim altiva
e nua, com força que não recua,/ a verdade mais veraz”,
nos versos de Manuel Alegre alusivos à vida por um só dia:
“Foram batalhas perdidas. Foram derrotas vitórias./ Foi a vida
(foram vidas). Foi a História (foram histórias) / mil encontros
despedidas. Foram vidas (foi a vida)/ por um só dia vivida.”, na
dúvida sobre a legitimidade dos militares para instaurarem um
regime de liberdades que lemos em José Gomes Ferreira, dúvida
logo desfeita assim que o poeta foi capaz de interpretar
correctamente o rumo dos acontecimentos; nas tensas, tersas
palavras de José Manuel Mendes: “depois Lisboa / doca da
madrugada / tão de cravos nascida / o povo nas ruas / e o gosto
a terra / que só a pátria / tem.”
Cedo se percebeu, porém, que terminado o festim dos espantos
surgiriam os problemas e que os tempos vindouros seriam de
clivagens profundas entre gente intelectualmente honesta mas
profundamente divergente quanto às rotas sociais e estéticas a
trilhar. Cedo os poetas menos inclinados a abdicarem dos
pressupostos que haviam assistido à obra passada (Natália,
Torga, Sena, Sophia, Graça Moura) se posicionaram, não contra a
liberdade nem contra a democracia, mas contra o anúncio de uma
nova era totalitária, de sinal contrário ao da “ordem”
precedente, capaz de sacrificar a uma retórica do “uniforme” de
índole burocrática boa parte dos criadores inconformistas (ou
apenas incorfomados com o rumo que as coisas levavam) tendo em
conta tanto o modelo de sociedade que se pretendia implantar
como as equivalências conhecidas da aplicação desse mesmo modelo
noutras partes do mundo. Esta é, no entanto, uma luta que se
desenvolverá ao longo dos tumultuosos meses de febre balizados
pelas datas de 25 de Abril de 1974 e de 25 de Novembro de 1975,
altura em que se concretizaram acções de contenção
político-ideológica a partir das quais Portugal “regressou” à
via ocidentalizante, não sem algumas vacilações e receios de
perda de identidade face aos riscos insinuados, à esquerda e à
direita, de diluição numa confederação europeia indiferente às
especificidades nacionais. A Natália Correia, a poetisa que deu
a cara nesse combate, foram assacadas responsabilidades
golpistas na derrota do projecto de esquerda, mas a coerência
com que depois se bateu pelas suas convicções, tanto no trabalho
da escrita como no desempenho das funções de deputada na
Assembleia da República atesta uma fidelidade aos valores da
liberdade que ninguém ousa pôr em causa a não ser aqueles mesmos
que, por razões intrínsecas ao seu perfil intelectual, se
mantiveram apegados a irredutíveis visões do mundo e
comportamentos afins.
A homenagem de doze poetas a Vasco Gonçalves, o militar-político
que foi um dos rostos visíveis das forças acusadas de
pretenderem instaurar em Portugal uma democracia popular, pode
servir de contraponto à “luta” de Natália Correia pela
“liberdade” já porque tinha a legitimá-la objectivos igualmente
edificantes – uma “sociedade mais justa” – já porque ainda era
difícil de assimilar, pelos sectores apoiantes do general (o
famoso “Óscar” das operações militares de Abril) a inversão da
corrente História, dois anos depois dos enfrentamentos de
Novembro. Conquanto faça todo o sentido que a recolha tenha sido
organizada por inspiração partidária, não só é inequívoca a alta
qualidade de alguns poemas como se torna particularmente
estimulante acompanhar no tempo e no espaço da escrita a
evolução dos melhores destes doze cavaleiros do apocalipse:
António Ramos Rosa, Armando Silva Carvalho, Casimiro de Brito,
Eduardo Olímpio, Egito Gonçalves, Eugénio de Andrade, Gastão
Cruz, José Jorge Letria, José Barreiros, José Ferreira Monte,
Maria da Graça Varela Cid e Maria Tereza Horta.
Guerra colonial: resistência e catarse
De onde vinha e como estava a poesia que tínhamos à chegada do
25 de Abril ? Peguemos na ponta de um dos muitos fios cruzados
do tecido da escrita poética – o que faz a ligação com a guerra
colonial. Manda o rigor histórico sublinhar o facto de serem em
número relativamente escasso as vozes poéticas que se ergueram
contra a guerra no decurso desta, pelo que a poesia de
resistência configurada como agente explícito de ruptura se
confina a versões poligrafadas da índole de Discurso Claro
como o Inverno (1961), de Liberto Cruz,
a discretas edições de autor como Três Natais (1967) de
José Correia Tavares, a livros proscritos como Praça da
Canção (1965) e O Canto e As Armas (1967),
de Manuel Alegre ou aos contidos poemas-relatos de circulação
restrita de Fernando Assis Pacheco, de que o título mais
conhecido é Catalabanza, Quilolo e Volta (1972,
reformulado em 1976). Ainda que da necessidade de exorcisar os
fantasmas da guerra tenha resultado, depois do 25 de Abril, um
importante acervo de testemunhos cuja “posterioridade” os situa
num contexto de recuperação, acrescento e rectificação da
memória colectiva (Vergílio Alberto Vieira, José Martins Garcia,
Eusébio Cardoso Martins, João de Melo, Maria da Graça Varela
Cid, J. H. dos Santos Barros, Celso Cruzeiro, Fernando Grade,
Fernão de Magalhães Gonçalves e Filomena Cabral entre outros) ,
nunca é demais sublinhar o sacrifício dos pioneiros, tenha
presidido ao seu discurso a cólera, a revolta, o desespero ou
até mesmo o medo. Jornal de Campanha, de Liberto Cruz,
publicado em 1986, reúne “fragmentos” escritos em Buela, Luanda
e Sintra entre Maio de 1962 e Janeiro de 1965 que são, no dizer
do ensaísta Eugénio Lisboa, “disparos” de um texto “avaro,
rápido, seco, letal”. São na verdade incomplacentes para com a
guerra essas composições de dois, três versos de recorte
diarístico das quais não é excluído o desencanto pela ausência
de protesto dos escritores quanto ao que se passava em África:
“Onde estão os escritores do meu País / ó António Nobre, que
nada escrevem sobre esta guerra ?” e se revelam ora vorazmente
irónicas “Uma novidade: a partir de agora alguns pais vão passar
a receber no dia 1O de Junho, no Terreiro do Paço, uma medalha
em troca dos filhos.” ora de sibilante dramatismo nos limites da
dor: “ Com um serrote de cozinha, o médico cortou, há pouco / um
braço a um soldado. / A mão armada também salva.” Manuel Alegre,
ex-expedicionário, exilado em Argel, registará em livros como
Praça da Canção e O Canto e as Armas o absurdo da
guerra e a impotência da poesia perante esse absurdo, de que o
poema a seguir transcrito é exemplo:
De súbito três tiros na memória.
Apagaram-se as luzes. Noite. Noite.
De súbito três tiros nas palavras
um poeta calou-se apagou-se a canção.
De súbito um poema foi bombardeado
um poeta fechou-se nas vogais
cercado por consoantes que talvez
caminhassem cantando para um verso.
Eram granadas ? Eram sílabas de fogo ?
E de súbito a guerra. Noite. Noite. E um poeta
com cinco letras escreveu no chão:
porquê ?
Com cinco letras do seu próprio sangue.
Praça da Canção
Também Fernando Assis Pacheco, no poema Monólogo e Explicação
em Catalabanza se amargura com a fragilidade das sua
“armas” preferidas – a poesia, os livros – no cotejo com a
violência irracional.
Não puxei atrás a culatra,
não limpei o óleo do cano,
dizem que a guerra mata: a minha
desfez-me logo à chegada.
Não houve pois cercos, balas
que demovessem este forçado.
Viram-no à mesa com grandes livros,
com grandes copos, grandes mãos aterradas.
José Correia Tavares consegue fazer passar imagens doridas do
conflito em África glosando o Natal, tema, em si mesmo, caro às
autoridades, o que valeu ao pequeno livro Três Natais
(1967) não ter sido apreendido, embora nesses poemas em prosa se
denuncie com toda a veemência a malignidade do que então se
passava além-mar. Textos que Liberto Cruz eleva à categoria
de “ testemunho duma geração que descobriu na guerra não
serem a dor e o luto, a morte e o suicídio, simples e estafadas
figuras de retórica.”
Ao sussurro confidencial da represada raiva, ao eco clandestino
ou de exílio dos que eram contra a guerra respondia a direita
nacionalista tocando a rebate para reunir as hostes que ainda se
lhe mantinham fiéis, quando julgou ser oportuno dar a impressão
de que eram afinal “muitos” aqueles que defendiam a ficção das
províncias ultramarinas de Portugal “do Minho a Timor”. Numa
recolha de poemas coordenada por António Almeida Matos O
Corpo da Pátria, antologia poética da guerra do Ultramar
(1961/71), são seleccionados “poetas da rectaguarda” e “poetas
da frente”. Tanto no primeiro grupo como no segundo há presenças
surpreendentes, como as de Rui Cinatti (1915-1986) – explicada,
de algum modo, pela sua forte ligação afectiva a Timor – (Antologia,1986),
de Manuel Geraldo e Álamo de Oliveira, que posteriormente
evoluiram para posições críticas em relação ao sentido e às
finalidades da guerra, a par do que de mais radicalmente
conservador o regime produziu: Amândio César, Fernanda de
Castro, Pedro Homem de Melo, Fernando Guedes, Barroso da Fonte,
António Salvado, entre outros. Coincidindo com o polémico I
Congresso dos Combatentes do Ultramar, foi editada uma antologia
dos “poetas do Ultramar” intitulada Vestido de Soldado e
organizada por António Salvado (1973).
Pode parecer estranho que, estando os poetas e escritores
realmente importantes, juntos na vasta frente de oposição à
ditadura, a guerra colonial lhes tenha passado praticamente ao
lado durante os treze anos que durou. Recorde-se, a propósito,
que uma terrível censura de guerra fez da questão colonial tabu
(“a pátria não se discute”). Em Portugal, país periférico
fechado ao mundo, cuja população era apertadamente controlada
por uma polícia política violenta e poderosa, não se
verificaram, por exemplo, os movimentos de opinião que nos
Estados Unidos contribuiram para pôr fim à guerra do Vietname ou
em França conduziram à independência da Argélia. Os escritores
eram sensíveis à ideia de que soluções para a questão colonial
passavam pelo estabelecimento de condições mínimas de democracia
interna que permitissem a sua discussão. O combate privilegiou a
restituição dos direitos, liberdades e garantias a um povo deles
privado desde 1926, data que marca o advento do salazarismo.
Reconheça-se, ainda, que nenhum poeta – salvo, talvez, Bação
Leal, morto na guerra, que não teve tempo para escrever senão
sobre ela
– fez do conflito o núcleo temático mais forte da sua obra. A
guerra constituíu um pesadelo que foi “poeticamente” digerido no
seu horror como na sua transitoriedade pelos nela
presencialmente envolvidos ou pelos contemporâneos cuja posição
ética os colocava na mesma margem de alarme. O sonho mau levou
tempo a passar, deixou fundos traços de desespero nas páginas
que o relatam, mas uma vez resolvido o problema os poetas foram
convocados para fazer outras coisas: a vida reclamava-os para
novos e fascinantes desafios embora os que participaram em
directo nos acontecimentos pontualmente os relembrem para
que não sejam esquecidos. O caso de Vergílio Alberto Vieira é, a
vários títulos, exemplar. O seu trabalho poético, de início
influenciado por Eugénio de Andrade e que depois ganhou
cambiantes particulares na experimentação de variantes de poesia
pura, foi “suspenso” na sua orientação semântica e
organizacional para abrir espaço a um livro catártico de
conteúdo “guerreiro”- A Paixão das Armas (1983) -em que o
autor sacode as mágoas do inferno quer recorrendo a implacável
veia sarcástica que não recua perante o recurso ao léxico mais
ousado para caracterizar situações caricatas sem olvidar a
premonição da morte no horizonte de certos poemas, obsessão
primordial de qualquer expedicionário lançado contra vontade na
sangreira dos combates:
Metalizaram o espaço
Os olhos saltam das órbitas:
metalizaram o espaço
A terra sangra
Apodrece sobre o rosto nimbado
dos mortos
Pela madrugada, as buganvílias
deixaram de cantar
O espaço é de ferro, arma-se
de sombras:
Estamos dentro da morte.
O neo-realismo e depois
A liberdade reconquistada graças ao Movimento dos Capitães deu
um segundo fôlego a alguns poetas resistentes, no passado
reunidos em torno de uma colecção editada pela Revista
Vértice, de Coimbra, intitulada Novo Cancioneiro
(1941/1944). À data de 25 de Abril estão ainda vivos sete dos
dez poetas, integrantes da colecção, dados como referências de
cume da poesia neo-realista: Fernando Namora, Mário Dionísio,
João José Cochofel, Joaquim Namorado, Manuel da Fonseca, Carlos
de Oliveira e Sidónio Muralha. Tinham falecido Francisco José
Tenreiro (1963), Álvaro Feijó (1941) e Políbio Gomes dos Santos
(1939) surgindo a publicação dos poemas deste último, em 1941,
como homenagem póstuma. Já na década de noventa viriam a
desaparecer Manuel da Fonseca e Mário Dionísio pelo que,
actualmente, não restam sobreviventes. (A obra de Carlos de
Oliveira está incluída em Obras de Carlos de Oliveira,
Ed. Caminho, 1992, com prefácio de José Manuel Mendes).
Convidado a colaborar no nº 10 da colecção, que acabaria por não
saír, José Gomes Ferreira considerar-se-á sempre membro do
grupo. Todos estes criadores tinham a aproximá-los a intenção
social de conotação marxista (neo-realismo era a máscara nominal
de realismo socialista, para ludibriar a censura) conquanto
variasse de poeta para poeta a atitude face aos imperativos
estéticos da escrita: Fernando Namora jamais abdicará da
componente psicologística que lhe vem de assumidas afinidades
presencistas; Manuel da Fonseca manter-se-á ao rés do povo,
cantando-lhe as necessidades e as dores com versos de uma
densidade e depuração formal muito exigentes; Carlos de Oliveira
refinará o seu notório gosto pela palavra rigorosa e
contundente, construindo uma obra única à qual muitos defendem
ter ido “beber” alguma da Poesia 61, conquanto outros
preconizem que a influência foi de sentido inverso; João José
Cochofel, “um aristocrata que simpatizava com o povo”
será uma voz intimista, crepuscular e discreta que se terá
afirmado melhor no ensaio; José Gomes Ferreira, poeta do
quotidiano citadino e das metáforas pomposas, gestor afortunado
da dialéctica do eu individual-eu social, fará agulha, em
liberdade, para a irreverente coloquialidade com que questiona o
real a partir da observação directa da realidade, extraindo dos
efeitos desta ganhos de popularidade não negligenciáveis;
Joaquim Namorado será aquele em cuja obra pesará de forma mais
nítida o “programa” de transformação da sociedade a que na
literatura e na vida se devotou, e Mário Dionísio, intelectual e
teorizador do movimento, na primeira fase, derramará o seu
talento pelo ensaio, a crónica, a crítica, o conto e o romance,
além, evidentemente, da poesia. Do grupo (alargado) do Novo
Cancioneiro só Joaquim Namorado e José Gomes Ferreira são
“poetas militantes” em 25 de Abril. Cochofel pouco se expõe.
Carlos de Oliveira, Fernando Namora e Manuel da Fonseca são
então renomados romancistas. Mário Dionísio partilha-se pela
pintura, o ensaio, a crónica memorialista, depois de ter
escrito, convém lembrar, um romance paradigmático
causador de certa perturbação por se tratar de um trabalho
tecnicamente elaborado ao arrepio daquilo que postulara nos anos
quarenta como formalmente conveniente à boa consciência e
eficácia neo-realistas. Pastoral (1976), de Carlos de
Oliveira, Nome Para Uma Casa (1984), de Fernando Namora,
e Terceira Idade (1982), de Mário Dionísio, são os
títulos mais salientes de colectâneas de poemas assinadas pelos
últimos representantes de uma geração de notáveis que, tendo
começado pela poesia, se realizou predominantemente na prosa.
De entre os poetas de qualidade estreados nas décadas de
quarenta-cinquenta, vários são os que chegaram ao 25 de Abril em
plena actividade criadora, actividade que a libertação da
censura tornou mais impetuosa e vibrátil. Dos praticantes do
neo-realismo mais vincamente ideológico (Antunes da Silva,
Armindo Rodrigues, José Saramago) aos cultores de relações de
(boa) vizinhança ou de grande intimidade com um surrealismo
retardado e que deram nas vistas graças ao dinamismo por si
imprimido a modos de comunicação poética irreverentes e
provocatórios para a época (António Barahona da Fonseca, Mário
Cesariny de Vasconcelos, Alexandre O'Neill, Egito Gonçalves,
Natália Correia, António José Forte, Mendes de Carvalho, José
Carlos Gonzalez, Vergílio Martinho, Helder Macedo, Rui Cinatti,
alguns deles componentes do grupo “abjeccionista” do Gêlo,
uma tertúlia que animou, no café lisboeta do mesmo nome, a vida
cultural no final dos anos cinquenta) e aos que irradiaram de
projectos singulares ou grupais para fulgurantes caminhadas
solitárias (Miguel Torga, Jorge de Sena, David Mourão-Ferreira,
Sophia de Melo Breyner, Eugénio de Andrade, João Rui de Sousa,
António Ramos Rosa e Albano Martins), todos tiveram bons motivos
para se congratularem com a instauração das liberdades,
incluindo a que mais lhes interessava, a liberdade de expressão,
que os projectou no país finalmente à medida da sua verdadeira
estatura intelectual, dando-lhes e às suas obras a visibilidade
que os arrancou a um silêncio injusto e, nalguns casos, trágico,
junto do seu próprio povo.
É difícil isolar de entre os nomes atrás referidos os dos
“melhores”, dado tratar-se de criadores multifacetados que
nalguns casos levaram até às últimas consequências a indagação
metafísica da causalidade poética, como António Ramos Rosa,
autor entregue, nesse campo, a uma denodada porfia cujo processo
ainda decorre e à qual Vergílio Ferreira se reportou nos
seguintes termos: “De livro em livro, de poema em poema, essa
palavra rarefaz-se até ao desejo inexorável e absurdo de ser
fala plena no silêncio. Palavra discreta que mal se enuncia, faz
sinais longínquos a outras palavras à distância, estremece
indecisa à ponta do “lápis” que a torna real – ela evoca o gesto
de uma sacralidade e secreta iniciação.” (Do prefácio a O
Incêndio dos Aspectos, 1979).
Sophia de Melo Breyner explora com impressivo recorte
perfeccionista o engaste das paisagens límpidas e solares do
Mediterrânio helénico (ou do sul português que mais se lhe
assemelha) na palavra que, ao designá-las, resplende de um
imaginário encantatório de beleza e transparência (De pedra e
cal é a cidade / Com campanários brancos /De pedra e cal é a
cidade / Com algumas figueiras. Geografia, 1961) .
São-lhe assinaladas ao longo da obra certas inflexões de sentido
tendentes à adesão a realidades mais “tangíveis” através de uma
linguagem menos afectada por ressaibos aristocratizantes, mas a
sua escrita jamais perdeu a unidade que faz dela um marco de
coerência estilística na moderna poesia portuguesa.
David Mourão-Ferreira cristalizou em harmoniosa escrita clássica
de assumido pendor hedonista o louvor à figura da mulher como
mito erótico axial (Quem foi que à tua pele conferiu esse
papel / que mais que tua pele ser pele da minha pele, Do Tempo
ao Coração, 1966), mas notou com argúcia Eugénio Lisboa, a
propósito de um dos seus poemas, que “… toda a poesia de David
Mourão-Ferreira (1927-1996) com todo aquele deflagrar de corpos
que fulgem, é minada por rios subterrâneos de uma angústia
omnipresente: a luz segrega a sombra, como o deserto segrega a
sede”.
Eugénio de Andrade, mergulha em versos da mais pura água
sentimentos, afectos, paixões, solidões, desencantos, fundidos
na matéria das coisas, nos elementos naturais e no destino
precário do corpo depois do apogeu, sobretudo na fase posterior
a Obscuro Domínio (1971), momento de viragem para
uma das mais empolgantes aventuras poéticas do nosso tempo
português (obras mais recentes: Matéria Solar (1980),
O Peso da Sombra (1982) Branco no Branco (1984)
Vertentes do Olhar (1987), O Outro Nome da Terra
(1988), Rente ao Dizer (1992). Jorge de Sena (192O-1978)
em azedo contencioso com a terra-mãe, ergueu um protesto
gigantesco contra a exclusão a que o seu tempo o forçou, eivado
de ressentimento radical, caso sem paralelo nas lusas Letras:
“És cabra, és badalhoca, és mais que cachorra pelo cio, és peste
e fome e guerra e dor de coração. Eu te pertenço: mas ser's
minha, não.” escreveu, referindo-se à pátria, que ainda a tempo
recuperou como sua após demorado e aviltante exílio por diversas
partes do mundo, que culminou em Santa Bárbara (Estados Unidos),
onde o surpreendeu a notícia do golpe libertador. Homem de
Letras dos mais cultos do seu tempo, queixoso do descaso dos
contemporâneos em relação à sua obra, atormentado e vigilante,
como sobre ele escreveu Angel Crespo, poeta-filólogo maneirista,
como lhe chamou João Barrento, “caso-limite de identidade na
alteridade”, a propósito das máscaras de Camões, como referiu
José Augusto Seabra, Jorge de Sena é uma figura que impressiona
pelo excesso na afirmação do que nega, pelo superavit de
convicção alardeado nos seus textos, poéticos ou não, pelo
protesto violento de quem não se rende ao ignominioso ultraje de
um ostracismo imerecido.
Pela estrada larga da poesia viaja, com pujança criadora, João
Rui de Sousa, sempre fiel a um lirismo de “obscura” clareza que
não cessa de se renovar.
Miguel Torga (1907-1994) telúrico solitário, incansável no seu
amor pelos lugares de apreço calcorreados a par e passo com
paciência de peregrino e minúcias de investigador de sensações
fortes, foi o moderno cantor da pátria, o que lhe sofreu as
dores e os rancores e lhe captou os momentos cintilantes sem
nunca perder de vista o destino de um povo sacrificado mas
desperto para a defesa da sua unidade existencial. Arauto da
liberdade, a quem Fernão de Magalhães Gonçalves reconheceu um
itinerário órfico, um discurso cósmico, um discurso sociológico
e um discurso teológico, foi na “clandestinidade do espírito”
que estas linhas de sentido se intersectaram numa obra rica de
significação e actualidade.
Foste um sonho redondo
E és agora
Um palmo de amargura
Retornada.
Amargura que em mim
Também nunca tem fim
Por ter sido comigo baptizada.
[28.4.77 Diário XII]
Egito Gonçalves começa a ser um caso sério de longevidade
literária activa: ganhou recentemente o prémio do Pen Clube
Português, ex-aequo com Armando da Silva Carvalho, e sagrou-se
vencedor do sempre ambicionado Grande Prémio de Poesia, da
Associação Portuguesa de Escritores, com o livro “E no
entanto Move-se” (1995) no qual alguma crítica viu “os seus
melhores versos”, mas a sua obra vem do início dos anos
cinquenta: encontramo-lo já entre os colaboradores de Árvore
, revista dirigida por António Ramos Rosa, António Luís Moita,
José Terra, Luís Amaro e Raul de Carvalho de que sairam apenas
quatro números mas que constituíu, segundo Clara Rocha, “lugar
de afirmação de um grupo de poetas ligados pelo vínculo
geracional e por um comum entendimento da criação artística”.
Além dos fundadores e de Egito Gonçalves, por aquelas “folhas de
poesia” passaram Matilde Rosa Araújo (cuja finura e
sensibilidade poéticas pudémos rever em Voz Nua,
1986 e A Estrada Fascinante, 1988) Sebastião da Gama,
Alberto Lacerda, Sophia de Melo Breyner, David Mourão-Ferreira,
Cristóvam Pavia e Mário Cesariny de Vasconcelos.
Egito Gonçalves, autor de poesia de matriz surrealista, é
considerado na História da Literatura Portuguesa, de
Óscar Lopes e António José Saraiva, “o mais importante caso de
imagismo-surrealismo que se transcende”, na primeira fase da sua
carreira, e continuador “da tradição lírica do amor por uma
partitura onde, às vezes com extraordinário acerto e audácia, a
exuberância de registos metafóricos e de timbres afectivos se
casa com a dialéctica ausência-presença, saudade-desejo,
textualização possível-impossível, de um (dois) corpo(s) e suas
circunstâncias.” A obra de Egito Gonçalves até 1991 está reunida
em Pêndulo Afectivo, Ed. Afrontamento. Alexandre O'Neill
(1924-1986) controversa figura literária à qual foram colados os
rótulos de “surrealista”, “herdeiro” de Nicolau Tolentino (poeta
satírico do século XVIII), poeta do “concreto” e “publicitário”,
entre outras minudências de encarecimento personalista tendentes
a arrumá-lo nos armários da História devidamente classificado,
fez do verbo sistematicamente insubordinado o instrumento com
que arranhou os tiques, as manias e as disfunções psicológicas
dos seus contemporâneos, satirizando em versos breves e secos,
plenos de eficácia, desbordantes de inventiva, uma quantidade
enorme de tipos citadinos sem nunca cortar as asas às expressões
que, adquirindo dinâmica própria, queriam voar para fora do
quadro do “concreto” em que à viva força Alexandre Pinheiro
Torres quis encarcerá-las, a avaliar por um textozinho
programático incluído num livro intitulado justamente
Programa para o Concreto (1966). Fernando J. B. Martinho,
todavia, não anda longe das verificações de Pinheiro Torres ao
reconhecer que O'Neill se “detém a observar criticamente o real,
a sujeitá-lo, em tom de fala, próxima, viva, a uma visão
ora ternamente irónica ora virulentamente sarcástica, de modo a
dar-nos, na radiografia dos nossos pequenos ridículos e
mediocridades, o retrato certeiro do país que somos.”, ao invés
de libertar o real quotidiano “para as zonas do surreal onde se
busca a anulação das contradições…”.
Albano Martins é mais um poeta defensor da economia verbal, que
no seu caso se caracteriza por incidir numa escrita fortemente
alegórica, portadora de fascinantes associações simbólicas de
marcada ligação à natureza e à vida (Afluentes / dum rio:
conúbio / da água com a água, Com as Flores do Salgueiro,
1995).
Raul de Carvalho fez da poesia o espelho da sua timidez, o
vazadouro das suas amarguras de homem socialmente marginalizado.
Serafim Ferreira, investigador da obra do poeta alentejano e um
dos seus biógrafos, observa que na “dor” e no “sofrimento” “toda
a poesia de Raul de Carvalho mergulha e se cumpre no destino de
ser forma de expressão tão pessoal e própria, lembrando, como
Lautreamont, que “só o poeta consola a humanidade”.
E para Luís Amaro (autor de delicada poesia intimista que não
voltou a publicar em livro desde Diário Íntimo, Dádiva
e outros poemas, de 1975) o desaparecido companheiro da
Árvore viria a merecer-lhe as seguintes palavras na
homenagem que lhe foi prestada em 23 de Novembro de 1996 na
terra natal, Alvito: “A dada altura, descobrira, como fuga, o
sentido de humor surrealizante – e quanto, no íntimo, sonharia
ingressar no grupo marginal e culto, negativista, dos
surrealistas lisboetas ! Mas não: as suas raízes nunca de todo
se desprenderam do húmus natal, do vero padrão lírico de início,
ainda que superando-o, enriquecendo-o de leituras, experiências,
incursões no campo artístico em que se movia como em terreno
próprio.”
António Gedeão, poeta, e Rómulo de Carvalho, professor,
historiador e divulgador da Ciência, são uma e a mesma pessoa. O
poeta estreou-se em 1956 com Monumento Perpétuo e em 1964
publicou Poemas Completos com prefácio de Jorge de Sena,
asseverando Fernando Guimarães (J. L. 6.11.96) que o
imaginário de António Gedeão “talvez esteja mais perto da
expressão barroca” e salientando como “aspecto importante” da
sua poesia “ o modo como se usa a sua figuração irónica”. Ao
completar, no ano transacto, 90 anos de idade, as comunidades
literária e científica juntaram-se para lhe prestar
significativa homenagem. Dos poetas estreados na década de
cinquenta que mantém um alto índice de produtividade, há a
destacar Pedro Tamen, cujo livro inicial, Poema para Todos os
Dias, 1956, ressente preocupações religiosas, tal como
Fernando Echevarría (recolhas: Poesia 1956-1979;
Poesia 1980-1984), seu companheiro de geração, evoluindo
aquele depois para formas de crítica subtil e irónica da
realidade quotidiana, como é bem patente em Horácio e
Coriácio,1981: “Olha Daisy: quando amanhã for à praça /
compro-te um peixe com uma chave no bucho. / Não serei Gepeto ou
Jonas devolvido,/ mas leitor moído, colecção Manecas”;
Maria Alberta Menéres (Poemas Escolhidos 1952-1961, José
Carlos Gonzalez (estreia: 1957; antologia: 7O Poemas,1990),
Helder Macedo (Poesia 1957-1977, Moraes Ed., 1979) Rui
Knopfli (Memória Consentida – 20 Anos de Poesia 1959-1979,
Imprensa Nacional, 1982), Orlando da Costa (A Estrada e a Voz,
1951, Canto Civil, 1979, Caminho), José Blanc de Portugal
(Parva Naturália, 1959, O Espaço Prometido,
Moraes Ed., 1960) José Bento (Silabário, 1992, Relógio d'Água,
obra poética 1953-1992) e António Cabral (O Mar e as Águias,
1956, Os Homens Cantam a Nordeste, 1967, Emigração
Clandestina, 1977, Novos Poemas Durienses, 1993) são
outros dos poetas estreados na década de cinquenta que vêm
publicando com maior ou menor regularidade. Fernando Guimarães,
estreado em 1956, é um caso notável de alteridade
crítica/criação. A par do labor crítico bem evidenciado ao longo
dos últimos anos nas páginas da Revista Colóquio/Letras e
do J. L. escreve poesia, já reunida em Poesias
(1956 a 1988) tendo recebido o Grande Prémio da Associação
Portuguesa de Escritores e o Prémio do Pen Clube pelo seu livro
Anel Débil, 1994, Afrontamento.
Os polémicos anos sessenta
Aqueles que o poeta Vasco da Graça Moura considera “uma boa
merda”,
os anos sessenta (altura em que se estreou), são, objectivamente,
anos decisivos para a poesia portuguesa contemporânea. Desde
logo o aparecimento do grupo da Poesia 61 constituído por
cinco poetas animados da vontade de romper com a “praxis”
dominante veio alterar os equilíbrios existentes. Contra a
verbosidade, a litania do social – que já não lograva impor com
eficácia os seus estafados clichés messiânicos (os amanhãs que
cantam, etc.) – e um certo conformismo reinante, os cinco
intérpretes de Poesia 61 (Gastão Cruz, Fiama Hasse Pais
Brandão, Maria Teresa Horta, Luiza Neto Jorge e Casimiro de
Brito) propunham-se, através da adopção de uma linguagem tensa e
densa, cifrada, de uma economia textual auto-vigiada a par de
reiterada preocupação social, relançar nos circuitos
comunicacionais mensagens em código, não de imediato
referenciáveis pela censura, que compatibilizassem inovação
significante e reforço da atenção aos mais candentes problemas
que afligiam a sociedade portuguesa. Todos eles viriam a
construir obra poética duradoura ainda que o trabalho da maoiria
se tenha ressentido da pluridisciplinaridade que já informara a
produção da anterior geração neo-realista: Maria Teresa Horta
tergiversou, sem grande sucesso, pelo romance, em repetidas
digressões eróticas de registo intimista; Fiama Hasse Pais
Brandão repartiu-se pela poesia e pelo teatro, expondo-se à
crítica, que viu na “obsessão” pela metáfora, causa de asfixia e
devorismo textuais, o sinal de um momento “historicamente
determinado” de valorização recorrente dos “padrões míticos”
e inflectindo ultimamente para modos de acentuação da carga
sonora da sua poesia, depois de discutida a presença, nela, do
sujeito intertextual e da autonomia da escrita, em composições
de ressonância camoneana;
Casimiro de Brito cultivou a ficção romanesca (sendo co-autor de
um interessante romance “a dois” com Teresa Salema), a crónica e
a crítica, evoluindo na poesia para patamares superlativos de
inteligência do prazer, trazendo a provocação do desejo à
superfície das palavras solares que o nomeiam, depois de
ultrapassado o pessimismo “elegíaco” dos primeiros versos (Corpo
Sitiado, recolha, 1955-1963). No seu último trabalho,
Intensidades (1996) nostalgia, androginia e afirmação
narcísica da urgência de amar como saída para o “belo caos
inquieto do mundo em volta”, fundem-se numa valorização do
presente e dos seus momentos privilegiados “Já que não posso
mudar o mundo / deixa-me sacudir a areia / das tuas sandálias”;
Gastão Cruz e Luiza Neto Jorge (1939-1989) terão sido, digamos
assim, os menos erráticos, a segunda porque viria a falecer
quando ainda tinha muito para dar à poesia e a sua herança
literária se confina aos versos de intransigente e dorida
frontalidade – não isentos de uma exigente contenção formalista
– com que ataca o universo das ideias feitas, exalta as
metamorfoses do corpo minado pela doença ou dominado pelo desejo
erótico e luta pela dignidade humana, e o primeiro por opção, o
que faz dele o poeta mais coerente com os objectivos iniciais do
grupo,
até porque, tendo sido um dos seus teóricos, capitaliza numa
escrita que retém da lição camoneana a sua essencialidade, as
capacidades de expressão que dão corpo a muitos dos objectivos
que postulou.
Os poetas aglutinados à volta do projecto Poesia 61
tiveram a sua “réplica” em Coimbra, ainda sob a égide tutelar da
Vértice e do incentivo ideológico de Joaquim Namorado, na
publicação dos primeiros poemas de José Carlos Vasconcelos,
Fernando Assis Pacheco e Manuel Alegre. Diferentes seriam os
percursos destas três figuras importantes da sua geração: José
Carlos de Vasconcelos trocaria o suado labor poético pelas
seduções do jornalismo, mantendo de pé, depois de dezasseis anos
de teimosia, um baluarte das Letras – o Jornal de Letras,
Artes e Ideias -, título de referência na imprensa cultural
portuguesa; Fernando Assis Pacheco (1937-1996), de quem já
falámos a propósito da guerra colonial, evoluiria para uma
poesia de recorte surreal-satírico distante dos belos propósitos
da sua fase neo-realista (Musa Irregular, 1996); e Manuel
Alegre, cuja vasta obra se distribui pela condenação da guerra,
o protesto cívico e um “mergulho” afectuoso no património lírico
português (de Camões a Bernardim Ribeiro, dos trovadores a
Fernando Pessoa), tendo a pátria como instância mítica central,
trata, ora com fervor épico, ora com delicada sensibilidade,
factos históricos erigidos em temas nucleares sem nunca
prescindir dos recursos rítmicos e de musicalidade da melhor
poesia tradicional.
Organizados em torno das páginas literárias dos jornais da
província, alguns poetas de diversas proveniências (na maioria
neo-realistas ou aparentados mas igualmente surrealistas como
Carlos Loures e Fernando Grade) realizaram “encontros” cuja
periodicidade se quis anual mas que em boa verdade se realizaram
somente quando foi possível, com a finalidade de se darem a
conhecer uns aos outros e incomodarem a ditadura, o que, até
certo ponto, conseguiram. António Augusto Menano, um poeta da
Figueira da Foz, e Santos Simões, professor em Guimarães,
lograram dinamizar, confrontados com dificuldades enormes, esses
encontros, sendo que no seguimento de um deles (Cascais, 1964),
embora não como sua consequência directa, foi preso pela polícia
política o poeta Carlos Loures. José Ferraz Diogo, Daniel
Filipe, Idalécio Cação, Manuel Amaral e António Augusto Sales,
além dos já citados, entre outros, pontificaram nesse movimento.
Com exepção de Fernando Grade, que não “saíu” da poesia, as
restantes figuras ou “desapareceram” na voragem da militância
política, ou se “perderam” para profissões mais estimulantes ou,
enfim, cederam, como tantos outros, à atracção da prosa. António
Augusto Menano tem-se feito notar ultimamente por
romances-crónicas fixados na sua experiência de Macau, onde
viveu alguns anos (embora com poesia aí localizada: Poemas do
Oriente, 1990) e Carlos Loures ficciona preferencialmente
episódios da luta contra o salazarismo. Luís de Miranda Rocha –
cujo primeiro livro data de 1968 (O Corpo e o Muro) – um
poeta contemporâneo deste grupo mas que vem percorrendo um
caminho próprio de indagação existencial a partir de textos de
complexa estrutura semântica, continua a fazer prova da sua
coerência relativamente à opção tomada (obras mais recentes:
Os Arredores do Mar, 1993, Vagas, Artifícios,1995) .
Em 1964 apareceu o primeiro caderno de publicação antológica
Poesia Experimental, que congregou nomes revelados no
último quartel da década anterior, com vista à abertura de uma
frente de “desconstrução do discurso” que “suportava
ideologicamente” uma sociedade “traumatizada e eivada de
contradições internas e externas… uma sociedade provinciana
oprimida e fechada como a nossa”.
A poesia experimental, voltada para a exploração de recursos não
especificamente literários, como o visual e o objectual, colidia
frontalmente com os valores que sustentavam a crítica literária
mais influente da altura, a crítica jornalística, ao favorecer
“valores mais pragmáticos, objectivos e construtivistas, tais
como a estrutura da construção do texto, quer visual, quer
fonética, quer morfológica, ou a transgressão produtora da
própria autonomia textual, ou o isomorfismo conceptual-visual do
poema concreto.” António Aragão, António Ramos Rosa, António
Barahona, E. M. de Melo e Castro, Herberto Helder e Salette
Tavares figuram na rampa de lançamento de Poesia Experimental
. A maioria destes poetas viria a perseguir interesses próprios,
nem sempre coincidentes com a natureza fundadora do movimento.
E. M. de Melo e Castro, principal teorizador e divulgador das
acções do grupo, Ana Hatherly, Salette Tavares (1922-1995) e
José Alberto Marques, a que depois veio juntar-se um poeta
iconoclasta como Alberto Pimenta, identificado com as posições
de Adorno,
são os vultos mais insinuantes, em Portugal, da poesia de
vanguarda tal como ela era praticada e divulgada nos seus
fundamentos e propósitos, nos anos sessenta e que na década
precedente tivera no Brasil percursores da envergadura de Décio
Pigmatari e Haroldo e Augusto de Campos.
A década de sessenta (cujos autores nesse período revelados ou
em início de carreira têm larga repercussão desde o 25 de Abril
até aos nossos dias), é, no entanto, quanto a performances
individuais, dominada por dois poetas de proveniências
diferentes: Herberto Helder,
estreado no decénio anterior (O Amor em Visita, 1958)
companheiro de cruzada dos mentores da Poesia Experimental, faz
desde logo alarde de frontal recusa dos dispositivos culturais
dominantes, e Ruy Belo (1933-1978) – cujo livro de estreia,
Aquele Grande Rio Eufrates, é de 1961- oriundo da área
espiritualista afecta à Igreja Católica, “obriga” a sua poesia a
um movimento deslizante, ao encontro das preocupações da
sociedade “laica”, acabando por veicular dilacerantes
contradições de cariz ontológico, que constituem, para muitos, a
sua principal riqueza, através da atitude neo-romântica que
passou a impregnar a sua escrita, até aí voltada para os grandes
feitos históricos e para o elogio da pátria como universo mítico
tutelar. “Não renego um passado conhecido de muitos, susceptível
de ser conhecido por quem o quiser conhecer. Apesar disso sofri
alguma coisa, numa sociedade e num país onde se sofre muito. No
termo de dez anos de uma aventura mística que terminou há dez
anos, eu saí para a rua e para o dia-a-dia com este punhado de
poemas, com estas palavras que me consentiram escrever nos
breves intervalos de um silêncio durante muitos anos imposto, a
pretexto de que, de contrário, a minha alma correria perigo,
como se eu tivesse uma coisa como alma, como se correr perigo
não fosse talvez a minha mais profunda razão de vida.” São
premonitórios estes versos de 1976 extraídos do poema Uma
Forma de me Despedir:
Nos fins de setembro quando eu partir
de uma cidade seja ela qual for
quando eu pressentir que alguém morre
que alguma coisa fica para sempre nos dias
e ou nuns olhos ou numa água
num pouco de água ou em muita água
onda do mar lágrima ou brilho do olhar
eu recear seriamente vir-me a submergir
direi alto ou baixo conforme puder
com a boca toda ou já a custar-me a engolir
as palavras mar ou mulher
com certo vagar e cada vez mais devagar
mulher mar
depois quase já só a pensar
o mar a mulher
Não sei mas será
talvez mais que outra coisa qualquer
uma forma de me despedir
De Herberto Helder dirá Fernando J. B. Martinho tratar-se de um
“Poeta indelevelmente marcado pelo Surrealismo” que fez de
elementos como o “excesso”, a “graça furiosa”, a “vertigem”, a
“febre”, os fundamentos do seu processo criativo”
enquanto que Maria Estela Guedes, num extenso e informado
trabalho de interpretação da obra deste autor
destrói logo à partida eventuais reservas dos receptores mais
cépticos: “Herberto Helder é um dos poetas mais fascinantes que
me foi dado ler, e aquele cujo poder encantatório mais me
deslumbrou. Este livro representa o tributo que ao fim da
estrada o viajante paga por a ter percorrido, sendo também o
resultado de quatro anos de convivência assídua com a obra
herbertiana.”
Ruy Belo e Herberto Helder contrariam, não de modo deliberado
mas tão só porque são intrinsecamente avessos à economia de
linguagem que consubstanciava a proposta de Poesia 61,
todo e qualquer obstáculo ao curso da palavra, não reconhecendo
limites técnicos à expansão desta, e se o primeiro, não
obstante, ainda respeita os pressupostos do comunicado clássico,
o segundo subverte-os em deslumbrantes jogos de espelhos
estilhaçados, numa exuberante reivindicação de liberdade para o
texto poético de alguma maneira contrastante com a discrição que
pauta o seu comportamento social. Herberto não aceita prémios,
não dá entrevistas, repele sistematicamente homenagens e
prebendas, não tem visibilidade mediática, vivendo
exclusivamente para a Poesia numa entrega de si a si e de si a
ela, Poesia, sem outros mediadores que não sejam os editores que
lhe publicam os livros, os leitores, alguns amigos. Personagem
estranhíssima no mundo das pequenas vaidades e dos
pequenos vedetismos dos artistas das Letras, Herberto Helder
distingue-se sem dúvida como uma das mais fortes personalidades
literárias do século que certamente muita tinta ainda fará
correr: além de que não esgotou o seu invejável gosto de
experimentador nem exauriu o seu fabuloso arsenal linguístico ,
a “obra feita” do ilustre poeta madeirense – a que ele costuma
chamar “Poesia Toda” – é já suficiente para alimentar o
interesse de várias gerações de estudiosos que sobre ela venham
a debruçar-se criticamente.
Outro dos poetas que marcou presença significativa foi Armando
Silva Carvalho, cujo ano de estreia foi o de 1965 com Lírica
Consumível . Escritor plurifacetado, que tanto em poesia
como em prosa tem patenteado um apreciável arcaboiço satítiro na
crítica à sociedade do seu tempo, ora censurando com grande à
vontade as dialécticas do consumo e os ritos da publicidade, ora
ironizando o processo de realização e produção do texto, ora
refinando a acentuação no erotismo, tudo isto na óptica do
desgaste de uma visão do social urbano potencialmente geradora
de mal-estar civilizacional , Armando Silva Carvalho é um dos
bons valores da sua geração que ainda recentemente mereceu, de
parceria com Egito Gonçalves, o prémio do Pen pelo seu livro
Canis Dei, 1995.
Vasco Graça Moura, estreado em 1963 com Modo mudando,
seguido de Semana Inglesa (1965) e de Quatro Sextinas
(1973) em edições de autor, só depois do 25 de Abril vem a
conhecer grande notoriedade pública, quer pelo ritmo de produção
e de publicação imprimido à sua obra desde então, quer porque se
desdobrou em mútiplas actividades com afirmação mediática
garantida, sobretudo as relacionadas com a sua postura cívica de
“reserva intelectual” do cavaquismo. Embora tendo experimentado,
com discretos resultados, a ficção romanesca, na poesia – uma
poesia inicialmente próxima do surrealismo que depois derivou
para uma estilização classizante do seu discurso, suportada, por
um lado, pela vasta cultura de V.G.M., por outro, pelo apelo dos
temas “eternos” (o amor, a morte, o tempo), tratados com
torrencialidade, exigência estética e ambição humoral – mais e
melhor se exprimem as suas faculdades de escritor. Escritor
multifacetado: aos vinte e dois títulos que leva publicados em
poesia, há a juntar treze livros de ensaio, três romances, duas
peças de teatro, crónica, diário e uma antologia. Em 1996 sairam
os Poemas Escolhidos (1963-1995), Bertrand, uma boa
plataforma para quem pretenda lançar-se no estudo da obra
acompanhado de um estudo interpretativo do autor. Liberto Cruz
que, para lá da sua já referida intervenção como testemunha da
guerra colonial, tem uma obra diversificada que inclui, até, uma
passagem pela poesia experimental (sob o pseudónimo de Álvaro
Neto) e que teria dado ao movimento a dimensão paródica que ele
não “explorara suficientemente”.
Ao início “barroquizante”, seguido da fase “experimentalista” –
com numerosos trabalhos de índole ensaística pelo meio – Liberto
Cruz chega ao Caderno de Encargos, de 1994, onde ele
próprio se define como homo viator.
Eduardo Guerra Carneiro, estreado em 1961 com O Perfil da
Estátua, é mais um poeta de “extracção” surrealista, que fez
um percurso sincopado mas em ascenso, com pontos altos nos anos
sessenta: Corpo da Terra (1966), Algumas Palavras
(1969) e nos anos setenta: Isto Anda Tudo Ligado (1970);
É Assim que se Faz a História (1973) e Como Quem Não
Quer a Coisa (1978). Mais espaçada é a produção na década de
oitenta, apenas dois títulos: Dama de Copas (1981) e
Contra a Corrente (1989), conhecendo ritmo idêntico nos
“noventas”: Profissão de Fé, (1990), Lixo, 1993 .
De idêntica “raiz” é José Viale Moutinho, um poeta madeirense
radicado no Porto, autor de um punhado de livros de versos de
grande qualidade, de que elegemos Correm Turvas as Águas
deste Rio, 1982 Piano Bar, 1986 e Máscaras
Venezianas, 1987; Fernando Alvarenga, poeta estreado em 1966
com Poemas para a Distância Quebrada, a que se
seguiram Hoje na Madrugada, 1972, Meus Cantos de Ainda,1982,
A Mãe por um Menino, 1994 e O Iris da Cinza, 1994,
livros em alguns dos quais versos de ressonância africana
indiciam a passagem do poeta por Angola, é uma personalidade
também com presença marcante no ensaísmo literário que consegue
harmonizar o que para muitos é inconciliável: sendo um pessoano
de reconhecido valor (A Socialização da Arte em
Fernando Pessoa, 1984) é igualmente um escrupuloso estudioso
do neo-realismo (Afluentes Teórico-Estéticos do Neo-Realismo
Visual Português, 1989); Orlando Neves, cujo livro de
estreia foi publicado em 1959 (Sopapo para a Destruição da
Felicidade) é um dos autores prolíficos do seu tempo, com
larga intervenção nos domínios da crónica, da literatura
infanto-juvenil, do teatro e da ficção romanesca, além da
lírica. Esta última está reunida no volume Poesia, 1995,
no qual figuram catorze dos seus vinte e dois títulos em poesia
e J. O. Travanca-Rego, também poeta
e analista atento da poética de O. N., refere-se-lhe nestes
termos em amplo ensaio “aproximativo”: “Através da concitação de
múltiplas, diversas e contraditórias lactências existenciais, de
um rebuscar num arquivo de experiências, memórias, intenções, o
'eu' rebusca aí também a sua tensa unidade numa contida
repercussão de 'tudo': o eu, os outros, a História, a presença e
a ausência do tempo vivido… representificado, desejado,
irrecuperável, imparável.” Mendes de Carvalho (1927-1988), na
linha de O'Neill, mas de veia satírica mais mordaz, menos
polida, tem em Camaleões & Altifalantes, 1963, Poemas
de Ponta e Mola, 1975 e Experiência de Liberdade,
1976, três das suas obras fundamentais. Outros nomes importantes
dos “sessentas”, ainda activos: Arnaldo Saraiva, José Augusto
Seabra, Yvette Centeno, A. M. Pires Cabral, Dórdio Guimarães, M.
S. Lourenço e Maria Amélia Neto.
Pessoa e Cesário: as sombras tutelares
O cinquentenário da morte de Fernando Pessoa (1985) e o
centenário do seu nascimento (1988), sobre serem pretexto para o
relançamento da obra e da biografia do poeta, deram origem a que
a influência deste último se revelasse, num cenário
comemorativista e concelebratório, nos mais inesperados e
controversos quadrantes da “inteligentzia” literária
(recorde-se, a título de exemplo, que o romance O Ano da
Morte de Ricardo Reis, foi o livro que consagrou José
Saramago na Europa e na América do Sul). Já antes, porém,
Fernando J. B. Martinho vinha indagando da “presença” do autor
de Mensagem nas obras das gerações posteriores, num
processo inter e transtextual clara ou discretamente assumido
por essas mesmas gerações. Num livro hoje esgotado (espera-se a
sua reedição para breve) que constitui trabalho de referência
para se aquilatar da extensão da influência de Pessoa na
produção dos poetas que lhe sucederam – Pessoa e a Moderna
Poesia Portuguesa, do “Orpheu” a 1960, 1983 – são
exaustivamente examinados os entrelaces textuais que denunciam
as subjectividades cúmplices do forte ascendente exercido nos
que chegaram depois pela arte do mestre heteronimista, “uma das
grandes vozes do modernismo, à escala internacional”. Aquilo que
Martinho definiu então como “invasão” (e outros como “inflacção
fernandina”)
é associado a um conjunto de iniciativas de sentido elogiativo
tendentes a manter vivo o interesse pela herança pessoana,
nomeadamente: a publicação da revista Persona, dedicada
ao poeta e ao modernismo português; a actuação do Centro de
Estudos Pessoanos, no Porto; filme e adadptação televisiva; o
aparecimento de “abundante iconografia”; a organização de
Congressos Internacionais de Estudos Pessoanos, em Portugal e no
estrangeiro; a representação da peça de Jaime Salazar Sampaio,
Fernando (Talvez) Pessoa, no Teatro Nacional,
entre outros importantes contributos que viriam a ser alargados
nos anos correspondentes às datas aniversariantes atrás
referidas e mesmo depois (atente-se nos soberbos trabalhos de
Tereza Rita Lopes Pessoa por Conhecer, Roteiro para
uma Expedição, 1990, e Fotobibliografia, 1988, org.
por João Rui de Sousa). Neste domínio da “inflação
fernandina” o ensaísta Eduardo Lourenço, num texto célebre,
ironizava assim premonitoriamente o fenómeno: “A terra inteira
está povoada de anacoretas pessoanos dedicados noite e dia à sua
glosa antropofágica, consumindo na mesma adorante devo(ra)ção a
poesia de Pessoa e a glosa dos outros glosadores. A exegese
pessoana é hoje uma selva luminosa onde ninguém está disposto a
reconhecer pai e mãe. Na verdade um contacto “inocente” ou
acintosamente ingénuo (livre) com a obra de Pessoa tornou-se
impraticável. Nenhum deus escapa à perversão do ritual inventado
para o tornar presente. Chega sempre um dia em que é necessário
negá-lo para o sentir ainda vivo.”
Mas o que aqui mais nos importa sublinhar é o vasto espectro dos
poetas “irmãos” do autor de Ode Marítima, dos aparentados
ou tão só daqueles cuja poética, tendo divergido no estilo e nos
propósitos, comporta de alguma maneira o “diálogo” com o genial
predecessor. Segundo Fernando Martinho, teriam sido “tocados”,
de perto ou de longe, pela labareda do poeta, artistas da
palavra como Pedro Echevarría, Pedro Tamen, Ana Hatherly,
Salette Tavares, João Rui de Sousa, Luís Amaro, José Carlos
Gonzalez, Casimiro de Brito, Fiama Brandão, Herberto Helder, Rui
Knopfli, Sophia de Melo Andersen, Alexandre O'Neill, Luís Veiga
Leitão, Natália Correia, António Ramos Rosa, Couto Viana,
Cesariny, Raul de Carvalho, Arnaldo Saraiva, Eugénio de Andrade,
Egito Gonçalves, Alfredo Margarido, Jorge de Sena, Rui Cinatti,
Helder Macedo e José Blanc de Portugal, para só citar os vivos
ou aqueles que desaparceram fisicamente já depois da Revolução,
o que vale por dizer que praticamente a todos os criadores de um
certo quadro geracional que puseram em causa o discurso poético
positivista, fosse por via da fragmentação versilibrista mais
extrema, fosse por via da exploração transfiguradora dos
complexos caminhos do sentido, não foi alheia a lição do criador
dos heterónimos, que nele viram o guia incontestável, uns, o
“esotérico” ou o “obscuro”, outros, mas estes últimos sempre
atentos à proximidade dos sinais do seu fogo, mesmo quando a
querela da arte pela arte radicalizou posições entre os
defensores da poesia como veículo de intervenção social,
necessariamente limitado por espartilhos normativos, e os da
poesia encarada como território de liberdade total do texto, do
desassossego significante às osmoses da significação.
A herança naturalista de Cesário Verde (1855-1886) interessou
mais os “materialistas”, mas ela é omnipresente em poetas de
outros quadrantes estéticos, como bem o revela um inquérito
promovido pela revista Colóquio Letras em 1986 (nº 93).
Aí, Armando Silva Carvalho não hesita em considerar o
neo-realismo como “um seu descendente”; Armindo Rodrigues
louva-lhe a “ternura pelos pobres, pelos desprotegidos, como o
amor do campo” porque é “puramente natural e naturalmente se
exprime”; Fernando Martinho considera-o essencial aos que “têm
feito a aprendizagem do olhar, do olhar para fora de si”
elegendo-o como um antecessor “à altura das poéticas de maior
exigência do lirismo nacional da hora presente.”; para António
Barahona, Cesário é o poeta da “descoberta e exaltação dos
objectos quotidianos e da vida prática”; Albano Martins vê o
trabalho poético do comerciante da Rua dos Fanqueiros como
cingido ao real – “o real observável, o real quotidiano” ; Nuno
Júdice e Fernando Echevarria entendem, o primeiro , que alguns
dos seus poemas se filiam “na luminosa dureza do ritmo de
Cesário” e o segundo vai mesmo ao ponto de defender que Cesário
contribuiu, à posteriori, para o óbito do Neo-Realismo
português; e Pedro da Silveira escreve: “Agora é que estamos em
jeito de claramente ver como a sua obra tão exígua deu o tom
certo àqueles anos que vão mais ou menos de 1876 a 1886”.
Sem esquecer Ressentimento dum Ocidental (197O) de
Henrique Segurado, são O Ressentimento de um Ocidental
(1981), de Alexandre Pinheiro Torres e Cesário:
Instantes da Fala (1989), de José Jorge Letria, as obras que
melhor traduzem a influência de Cesário no nosso tempo. Letria,
num processo mediúnico que vai muito para além da “ansiedade das
influências” e tem mesmo a ambição de dar a Cesário a biografia
que lhe falta, mete-se na pele do autor fisicamente
desaparecido, fala por ele, vive virtualmente por ele, com
extrapolações espaciotemporais que pulverizam o tempo
cronológico, tornando objectual no texto o universo fantasmático
em que múltiplas referências se cruzam: “ Dizes tu, O'Neill, que
querias que eu / aqui estivesse e eu não posso estar, / ou não
posso estar e estou, e no que / há nisto de contraditório e
inexplicável / reside uma verdade clara e de ofuscante
evidência: / perfilo-me na paisagem dos olhos, abrasado / por um
lume que nasce da lembrança das casas / e se propaga aos quartos
e à música / de opereta das mansardas do ciúme e do tédio.”
Alexandre Pinheiro Torres () explica ele próprio na citada
Colóquio Letras de que modo convive, no seu livro,
intertextualmente, com Cesário: “ Diga-se quanto ao meu livro
que ele tomou sempre os escritos de Cesário como praticamente a
única fonte tópica, mas num tom mais apelativo, às vezes
declamatório, e, em dois ou três casos, propositadamente
panfletário, o que nunca sucede com o Mestre, que evita estas
tentações, nem sempre, em teoria, negativas.” José do Carmo
Francisco, pela atenção que dedica ao pulsar da vida quotidiana
numa cidade ainda em muitos aspectos “cesarista” como Lisboa,
parece-nos ser o poeta actual que, sem explicitamente o
reclamar, mais perto está do olhar humanizado e humanizador do
antecessor ilustre. Tansporte Sentimental (1987), por
exemplo, é um livro muito próximo do que se presume seria a
visão de Cesário de uma urbe cheia de carácter e de
potencialidades referenciadoras neste final de século XX – a
capital portuguesa.
Presente e futuro
Uma das singularidades da poesia portuguesa prende-se com a não
existência de um elenco de críticos e ensaístas exclusivamente
votados ao trato da disciplina, do que resulta serem muitas
vezes os poetas a desdobrarem-se nessas funções, se bem que um
crítico como Fernando J. B. Martinho possa constituir a mais
ilustrativa excepção a esta “regra”, ele que abdicou de publicar
poesia de forma continuada para mobilizar os seus esforços no
rastreio iluminador da produção do último meio século. Todavia,
esta “concentração de poderes”, que com o avanço e a
generalização dos estudos literários acentua a
institucionalização da poesia e os consequentes reflexos
corporativos da crítica que a sublinha, está a contribuir para
relativizar o prestígio de arma de ruptura, transgressão
e anti-poder que durante decénios caracterizou a arte
lírica. A esta contemporânea hegemonização da poesia no seio da
instituição universitária, não é estranho o seu estatuto de
disciplina de programa escolar, que traz como consequência maior
a rarefacção do mundo da experiência vivida na sua vertente
efabulatória em proveito de intensos movimentos exploratórios em
torno e sobre os recursos do texto. A Universidade já não estuda
o que os poetas fazem: quer que os poetas escrevam poesia como
ela própria ensina. Talvez por isso não pareça despiciendo
constatar serem professores universitários alguns dos poetas que
mais insistentemente têm vindo a cortejar o universo crepuscular
das representações e a “autonomia” das linguagens. Mas é também,
curiosamente, de dentro da Universidade que têm brotado alguns
apelos visando a necessidade de um “regresso” ao realismo
seja porque a vaga de fundo do texto pelo texto de certa maneira
exponencializada em três figuras nucleares (Ramos Rosa, Herberto
Helder e Nuno Júdice) pouca margem de manobra deixe aos seus “continuadores”,
instaurando, por conseguinte, o mal-estar e a crise como estado
de coisas permanente, seja porque a vida flui fora das
Faculdades de Letras a ritmos mais velozes do que os seus por
forma a justificar se não, já, os exercícios de mimese da poesia
“útil” que prevaleceu durante décadas de realismo
socio-literário, decerto modelos de intervenção “racionalista”
na marcha das sociedades capazes de alimentarem um projecto no
qual estas reconheçam os seus desígnios substantivos.
Na predisposição académica para sublimar a produção dos
escritores que nos dois últimos decénios e meio se bateram pela
poesia enquanto pulsão de desobediência às coordenadas
lógico-simbólicas, em detrimento de algumas vozes que
legitimamente reivindicam o estatuto “realista” contrário aos
rituais celebratórios da “estetização da utopia”,
vemos que um professor de literatura, João Barrento, elege hoje
um poeta que por sinal ensina literatura, Fernando Pinto do
Amaral (dois ensaístas de cujo eficiente labor este texto é, em
boa medida, tributário) como um dos vultos mais representativos
da novíssima poesia portuguesa, ao consagrar nos seus versos um
estado de espírito melancólico, decadentista, com tendência para
o esvaziamento do tempo e propenso à exaltação das “paisagens da
alma” em lugares do “nosso mundo, do nosso tempo e dos lugares
simbólicos da sua precaridade (esplanadas e cafés, por
exemplo)”,
de algum modo a foz do “realismo” contemporâneo posto a correr
vinte anos antes por um outro professor universitário, poeta,
Joaquim Manuel Magalhães, proponente do que julgamos ser um
realismo céptico. Sobre Magalhães escreve Barrento: “É
praticamente impossível ler a poesia de um Joaquim Manuel
Magalhães, de há vinte anos a esta parte, sem nos darmos conta
de que ela é, insistentemente, isto mesmo: um terreno marcado
por essa consciência do mesmo, atravessado por uma nostalgia
à rebours, ou malgré soi, todo feito de pequenas
alegorias de um quotidiano banal, sem “heroísmos”, como eram
ainda os de Baudelaire ou de Eliot…
Entre Magalhães e Pinto do Amaral há toda uma elite de poetas da
“recusa”, da “ausência” e da “perda” que em diferentes registos
e em discrepância com o passado “épico” do sujeito diluído em
grandes operações de resgate social, valoriza agora o papel
desse mesmo sujeito ocupado com aquilo que num livro de Manuel
Frias Martins é descrito como estética do detalhe.
A poesia minimalista de Helder Moura Pereira será a que melhor
ilustra o conceito mas torna-se necessário recuar a 1971 para se
detectar o início do percurso de João Miguel Fernando Jorge,
aquele que, segundo o mesmo Frias Martins, “oferece cada poema
por um acto de comprometimento com os valores canónicos
inscritos no significado de cada vocábulo”.
Parti para o movimento da água
para o nome deste barco
premeditado incêndio de um corpo
de vigília e festas.
A aspereza é o nome
o acordado corpo
a incerteza o escreve.
À Beira do Mar de Junho,1982
Nomes como os de António Franco Alexandre, Al Berto, Luís Miguel
Nava (1957- 1995) – falecido em Bruxelas, em condições trágicas-
e Paulo Teixeira
estão na primeira linha da vanguarda melancólica, seja por
cicios, silêncios, lamúrias ou educados protestos anti-Europa,
destoando talvez deste desencantado panorama “pós-moderno”
eivado de angústia conformada, uma poética como a de José
Agostinho Baptista cujo pessimismo com o seu quê de mágico e
profético não exclui a conotação com o real objectivo nos
deslocamentos temáticos que o levam, por exemplo, a inspirar-se
na cultura mexicana para assinar alguns dos seus textos.
António Torrado, cujo trabalho poético se anunciava promissor (Do
Agregado Sentimental, 1970 e Dos Simples e das Casas
Interiores, 1976) fez agulha para a literatura
infanto-juvenil, modalidade na qual “construíu” obra notável,
publicando esporadicamente poesia. José Jorge Letria, poeta
igualmente revelado nos anos setenta, só na década seguinte se
demarcará decisivamente de uma escrita de génese sociológica,
passando a privilegiar preocupações ontológicas sempre, em todo
o caso, ligadas à “realidade”. A facilidade com que se “move” no
mundo espectral e a hábil gestão que faz dos ruídos e das vozes,
das esperanças e das decepções, dos perigos e dos prazeres,
levam a que a sua escrita seja atravessada por uma espécie de
melancolia “activa” na altercação constante com os fantasmas
ruins que lhe povoam as insónias mas como que empolgada com a
memória do vivido de maneira a não se deixar cair numa
analgesiante litania do pesar, do luto ou da indiferença que
conduza à desistência. A “explicação” que o poeta dá da sua
própria alteridade torna clara a dialéctica existencial do
discurso, que assim submete à encenação por vezes atroz do
remorso a confusa auto-estima do sujeito da escrita e a ampla
generosidade dos afectos (físicos, míticos e anímicos) em poesia
de sonoridades e ritmos que coerentemente lhe conferem um tom de
sugestiva musicalidade. O essencial da poesia de José Jorge
Letria está recolhido em O Fantasma da Obra (1993),
colectânea que tem sido merecedora de rasgados encómios pela
unidade que transmite da escrita de um poeta até aí considerado
excessivamente “fragmentário”. Wanda Ramos é outra voz dos
“setentas” cuja poesia, não enjeitando a herança surrealista,
antes dela se reclamando afim, conforma a um estilo
barroquizante um entendimento da vida em que as vibrações
eróticas e os insolidários silêncios se aliam por vezes a uma
certa fúria de viver assinalada pela palavra poética nos seus
ciclos de crise, desejo e dádiva.
Ernesto José Rodrigues é mais um dos poetas-prosadores em que a
literatura portuguesa é fértil, com o coração repartido entre os
penhascos transmontanos e a Hungria danubiana, estreado em 1973.
Uma recolha de 1981 – Para Ortense: Variantes, dá conta
de um humor com forte carga sarcástica e de uma ainda assaz
contundente crítica social indissociada de um pendor
versilibrista que toca mesmo, em vários momentos, as raias do
prosaico. Amadurecida e codificada é a linguagem dos poemas mais
recentes de Sobre o Danúbio (edição bilingue, Budapeste,
1996), pequena casa antológica que poeta e prosador partilham
sem conflito. João Camilo, autor de verso livre, solto, atento
ao quotidiano, tem o melhor da sua obra reunido em Nunca Mais
se Apagam as Imagens, 1996. Paulo da Costa Domingos,
truculento e iconoclasta, reuniu em Vaga, 1990, a sua
obra poética. António Quadros, aliás Frei Johannes Garabatus,
aliás Mutimati Barnabé João, aliás João Pedro Grabato Dias – um
luso-moçambicano que foi das vozes mais activas da fase
pré-independência do seu novo país foi também uma das figuras
mais perturbadoras da sua geração. O Povo é Nós, 1979, é
uma obra de afirmação revolucionária, já distante de
Quybyrycas (1972), uma lúcida e bem humorada paródia ao
desastre de Alcácer-Quibir e a outras vicissitudes históricas de
má lembrança. António Osório é um caso de revelação tardia mas
nem por isso é menos significativo o lugar que ocupa no panorama
da nossa poesia: não obstante ter sido co-fundador e director da
revista Anteu na primeira metade da década de cinquenta,
onde “apareceu” ao lado de Pedro Tamen e Cristóvam Pavia, só em
1972 publicou A Raiz Afectuosa, a que se seguiram A
Ignorância da Morte (1978), O Lugar do Amor
(1981) e Décima Aurora (1982), livros que definitivamente
o consagraram como uma das vozes mais autênticas no domínio da
poesia amorosa confessional, de modo lapidar sinalizada por
Eugénio Lisboa no prefácio à segunda daquelas obras: “… A
Ignorância da Morte, é, no seu modo mansamente
inovador, apetecidamente lento e meticuloso, no seu progredir
musicalmente inventariante, no seu fascinante realismo mítico,
aladamente terrestre e distanciadamente afectuoso, uma das vozes
mais fortes, mais isoladas, mais inquietantemente pessoais e
mais complicadamente directas que nos tem sido dado conhecer, de
há alguns anos a esta parte.” O eco da poesia de António Osório
nas gerações mais novas é já patente no modo como sobre ela se
pronuncia um Fernando Pinto do Amaral: “Pelo retorno a uma
expressão classizante, por um gosto confessional eivado de
pudor, pelo reequilíbrio entre o coração e os sentidos, pela
fidelidade a um universo em que a linguagem da experiência é
sempre mais decisiva do que a experiência da linguagem – por
tudo isso, mesmo os que esteticamente a ela não aderem serão
obrigados a reconhecer que esta obra tem representado um meio
eficaz de resistir, com discreta perseverança, à barbárie
maioritária que tantas vezes nos cerca e agride. Quem pode
exigir mais a um poeta?” E, enfim, figura revelada nos anos
setenta, há que falar de Nuno Júdice, um dos mais enigmáticos
poetas do nosso tempo. Tendo brotado de uma conjuntura pouco
favorável a manifestações poéticas de matriz individualista
(1972), quando as tensões sociais em Portugal eram já portadoras
do germen da mudança que viria a manifestar-se dois anos depois
e as preocupações do país estavam centradas na crise de
confiança nas instituições decorrente da erosão do regime,
sobretudo pelo beco sem saída a que conduzira a guerra colonial,
Nuno Júdice “aventurou-se” a encetar um caminho original de
pesquisa, se assim se pode dizer de um trabalho marcado pela
persistente exploração das virtualidades da palavra que vai da
subversão do sentido lógico do discurso ao sentido emergente do
tráfico de informação verbal e cultural organizando-se em
equívocas metáforas da própria significação do que escreve. A
obra de Nuno Júdice, vista no seu todo, revela coerência
estrutural, um inegável apuro formal e uma ambiguidade semântica
em que é “legível” a consciência dessa mesma ambiguidade e o
torna, pelo engenho com que consegue harmonizar estas três
vertentes, um dos vultos em foco na poesia portuguesa actual.
Seria injusto omitir deste texto alguns nomes de poetas que, ou
porque tivessem publicado irregularmente, ou porque a sua
progressão esteja ainda em curso e seja prematuro emitir
considerações de natureza judicativa sobre as suas obras, ou
porque a dispersão por outras áreas do saber literário os
“fixou” nessas áreas em detrimento da Poesia (casos de Maria
Alzira Seixo, notável ensaísta, autora de Letra da Terra,
1983; de Fernando J. B. Martinho, historiador da Poesia, autor
de Resposta a Rorschach, 1970, Razão Sombria,
1980; de Eugénio Lisboa, vigoroso e estilisticamente brilhante
crítico e ensaísta, autor de A Matéria Intensa,
1985; ou de Joaquim Manuel Magalhães, em igual medida poeta e
teórico da literatura). Se escritores como Olga Gonçalves, Mário
Cláudio ou Maria Estela Guedes parecem ter passado pela Poesia
sem nela se demorarem, já que as suas faculdades se adaptarão
talvez melhor à novelística e ao ensaio, poetas como António
Cândido Franco, Manuel Gusmão, Luís Filipe Castro Mendes, Manuel
António Pina, Helena Buescu, Joana Varela, Ana Mafalda Leite,
Rosa Alice Branco, José Guardado Moreira, Ana Luísa Amaral e
Tolentino Mendonça, sendo poetas do “futuro”, porque a
experiência e as vivências não deixarão mais tarde de completar
percursos longe ainda do fim, são-no também do “presente” porque
a obra feita torna desde já inequívoco que se trata de poetas de
valor consolidado cujo reconhecimento dispensaria outras
“provas”.
Além destes, nomes estimáveis como os de Luís Filipe Sarmento,
Mário Máximo, João Candeias, Artur Lucena, Graça Pires, Mário
Machado Fraião, Miguel Barbosa, Jaime Rocha, Henrique Madeira,
Eduardo Pitta, Francisco José Viegas, Fátima Maldonado, Amadeu
Baptista, José Emídio-Nelson, Raúl Malaquias Marques, Cristino
Cortes, Amélia Vieira, Graciete Besse e Isabel de Sá, entre
vários outros, representam modos diversos de encarar o fenómeno
poético e merecem integrar o vasto elenco dos homens e das
mulheres que generosamente contribuem para que Portugal seja
considerado um país de poetas.
Presentemente – depreende-se do que ficou dito – a poesia “nova”
que se faz em Portugal cinge-se à tradição elegíaca. Se poemas
de combate como os de José Carlos Ary dos Santos (1937-1984),
Joaquim Pessoa ou José Correia Tavares
parecem hoje “elementares” face aos níveis de complexidade
estilística e efabulatória logrados pelos seus pares da
“estrutura”, do “código”, da “desconstrução” e da “reconstrução”
do texto e do aprofundamento do eu subjectivo-melancólico num
grau de excesso niilista virtualmente suicida, é, por outro
lado, já uma necessidade dos tempos avaliar de novo o regresso
ao realismo não-disfórico no qual a poesia se reaproxime do
mundo da experiência com confiança criadora, mesmo em cenários
de crise em que a ausência de uma épica da vida dificulte a
eclosão de um surto épico na arte poética. A rotação ideológica,
o advento de grandes causas e a aspiração das pessoas à clareza
poderão talvez reorientar o dizer dos poetas, no próximo século,
para objectivos menos elucubrantes e pessimistas do que aqueles
hoje em dia se tomam por “inevitáveis”, e mais consentâneos com
a felicidade humana enquanto utopia mas também como aspiração
colectiva materializável através de graduais superações do
aparentemente impossível. Isto não passa de futurologia precária
e as coisas tanto se podem passar assim como exactamente ao
contrário ? Naturalmente. Mas não era isto mesmo que há dezena e
meia de anos atrás preconizava Joaquim Manuel Magalhães no
último texto do seu livro Os Dois Crepúsculos (A Regra do
Jogo, 1981) ? Atente-se no que escrevia, então, Magalhães: “Em
Portugal, como nos países atingidos pelas reformas capitalistas,
a palavra dos poetas precisa de reocupar o sentido das coisas
que se perdem e das coisas que tardam a vir. Sabe-se que a
espera da poesia é como a da própria história: sem impaciência.
Mas pertencemos a uma geração dessatisfeita. Culturalmente,
nenhum lado faz sentido, ou fez um sentido novo. Politicamente,
nada esteve interessado na criação cultural fosse do que fosse.
Apenas se conseguiu atingir o coração do nada com este vazio.
Quando é cada vez mais preciso que a nossa colectividade adquira
um coração singular e crescente para poder criar uma plenitude
cantável. E aí têm os poetas um dos seus mais radicais
desígnios.”
Palavras válidas para os dias de hoje, obviamente.
|