Entre a
luz e a sombra
Lêdo
Ivo
Eu
estava entre a luz e a sombra. Menino, costumava acompanhar meu
pai em suas peregrinações pelos cartórios e outros lugares de
sua faina forense ou cotidiana. Mas, de todos os lugares
visitados, os que mais me atraíam eram as lojas de ferragens, na
Rua do Comércio. Eram espaços habitados pela solidez e
materialidade da vida: lâmpadas, chaves de fenda, martelos,
roscas, baldes, comutadores elétricos. Nos balcões e
prateleiras, uma galáxia de instrumentos e objetos estava à
espera da necessidade dos homens. E, cegos e expectantes, eles
me seduziam: coisas espessas, impenetráveis. Por mais que eu
interrogasse a sua mudez, não respondiam. Eram formas
silenciosas. Uma escuridão as envolvia, abrangendo toda a loja,
mergulhada na penumbra.
As visitas
às lojas de ferragens eram quase sempre ao entardecer, quando
meu pai fechava a porta do seu escritório de bacharel e,
guardando no bolso uma chave que parecia ser a dona de numerosos
pequenos destinos, descia comigo a escada rangente e começava a
cumprir as últimas obrigações miúdas.
Chegávamos
enfim à loja de ferragens. Eu deixava a luminosidade do dia
carregado de maresia e mormaço e penetrava no mundo da sombra.
Antes de se abater sobre as proas dos navios ancorados, as
estacas negras dos trapiches, os telhados das casas e as pedras
das ruas, a noite começava nos armazéns. Fora, imperava a luz do
dia como uma corola ainda aberta; e, dentro, entre chaves de
fenda, cadeados, porcas e alicates, a escuridão avançava.
Enquanto meu pai conversava com um desembargador ou trocava
impressões com o caixeiro a respeito da mercadoria a ser
adquirida, eu sentia travar-se em mim o litígio que haveria de
seguir-me a vida inteira: estar sempre entre a sombra e a luz, o
mundo aberto que o olhar mais distraído tem o poder de
conquistar e a região escura e indevassável que sempre resiste –
numa resistência que é, na verdade, uma recusa – às incursões
mais sinuosas e atrevidas dos homens.
A noite
ainda não começara a descer sobre Maceió e as dunas que caminham
imperceptivelmente na treva, sobre os currais de peixe plantados
entre as ondas, o sinal semafórico da Capitania dos Portos, e o
farol que vigiava o Mar-Oceano, e todavia já era noite dentro da
loja de ferragens. E aquela noite prematura, entre objetos
heteróclitos, envolvia-me e estabelecia comigo um pacto, como se
desde a infância eu estivesse condenado à sua respiração.
Ao longo
de minha vida e da prática de um ofício decidido naquele momento
em que a luminosidade da tarde e a treva da noite escolhiam o
balcão de uma loja de ferragens para o seu combate imemorial,
não têm sido poucas as vozes curiosas ou austeras que me
interrogam a respeito do instante em que a experiência vivida
(que é uma experiência da imaginação) se converte em linguagem e
em poema. Aos que reclamam de mim a inabalável teoria poética,
respondo com a dúvida e a decepção.
Há poemas
que nascem, ou parecem nascer instantaneamente, forjados por
algum deus generoso ou banhados pela brisa da circunstância
afortunada. Outros exibem as marcas de uma longa maturação,
insinuando-se, ainda tateantes, na página branca. E há outros
que decerto terão sido gerados no inconsciente do poeta no tempo
em que este, menino, ainda não dispunha de uma linguagem para
exprimi-los e estabelecer, através deles, a comunicação com os
seus semelhantes. O poema “As ferragens”, do meu livro de poemas
Curral de peixe (1995), pertence a essa linhagem remota e
demorada.
Desde a
infância eu desejava exprimir a divisão do mundo em luz e treva,
em razão e desrazão, em origem e lugar de nascimento, em partida
e evasão; eu desejava proclamar a ligação obscura entre as
chaves de fenda, as porcas e os parafusos e as constelações do
céu sempre curvo de minha cidade natal. Foi preciso esperar mais
de sessenta anos, para poder dizer, no poema “As ferragens”, que
Em
Maceió, nas lojas de ferragens,
a noite
chega ainda com o sol claro
nas
ruas ardentes. Mais uma vez o silêncio
virá
incomodar os alagoanos. O escorpião
reclamará um refúgio no mundo desolado.
E o
amor se abrirá como se abrem as conchas
nos
terraços do mar, entre os sargaços.
Nas
prateleiras, os utensílios estremecem
quando
as portas se cerram com estridor.
Chaves
de fenda, porcas, parafusos,
o que
fecha e o que abre se reúnem
como
uma promessa de constelação. E só então é noite
nas
ruas de Maceió. |