O poeta e
suas ilhas
Lêdo
Ivo
Muito
me alegra estar aqui, no instante em que esta Universidade se
abre mais uma vez para o trabalho de transmissão do saber.
Esse rito
anual se insere no processo que regula o fluir planetário das
estações. E a todos nós, aqui presentes, esse momento magno
lembra e adverte que a existência dos homens não se esgota na
sucessão às vezes fastidiosa da vida cotidiana.
Os largos
dias iguais, que não deixam memória, têm a sua monotonia
quebrada por algumas ocorrências diferentes e até luminosas. São
os instantes epifânicos da festa e da cerimônia.
Diante de
tantos jovens anônimos, e muitos deles já firmemente empenhados
em converter o juvenil anonimato na afirmação nítida de um nome
e de um trajeto profissional; diante de eminentes professores
vestidos com as suas togas preclaras, rendo-me à evidência de
que sou, neste instante, um dos comparsas de um ritual. E essa
comparsaria mais fortalece em mim a convicção de que o futuro do
mundo e do tempo está condicionado à repetição e perenidade de
ocorrências como estas, em que as gerações se defrontam, os
saberes acumulados se fazem ostensivos na gravidade dos rostos,
gestos e palavras dos mestres aqui presentes, e as ignorâncias
radiosas despertam para as interrogações fecundas e as
perplexidades inevitáveis.
Não
concordo com aqueles que se satisfazem com a banalização perene
da vida e enxotam os rituais, considerando-os sobras arcaicas e
atávicas que colidem com a clareza da vida. Entendo, muito pelo
contrário, que precisamos retornar sempre ao espaço mágico e
sagrado em que o início e o fim se encontram e se unem, no
conúbio misterioso em que o silêncio ao mesmo tempo inaugural e
derradeiro sela todas as bocas e responde a todas as perguntas.
Confiou-me
esta Universidade a honra de ministrar a Aula Magna deste ano.
Talvez tenha havido uma transgressão nesse generoso ato de
confiança, já que ela escolheu não um mestre, mas um aluno, e
talvez um aluno relapso que, diante da noite que avança, tem a
consciência plena de sua ignorância.
Rendido à
sedução dessa escolha temerária, aqui estou com a minha palavra.
Inicialmente, peço permissão para evocar a alagoanidade do nome
desta antiga Ilha do Desterro. Esta cidade marítima, insular e
lagunar lembra Maceió, a minha cidade natal. Na primeira vez em
que aqui estive, há vinte anos, convidado por esta mesma
Universidade que ora me acolhe, para participar de um seminário
sobre literatura brasileira, experimentei uma espécie de
familiaridade geográfica ao percorrer as suas ruas e praças,
ilhas e praias, e ao receber no rosto o vento que, para Virgílio
Várzea, era o sinal de partida e evasão.
Era como
se eu estivesse no Norte, no Nordeste mestiço e não neste Sul,
que tanto deve à colonização alemã, italiana e açoriana, neste
estado de Santa Catarina, em que mais de um viajante estrangeiro
ficou de boca aberta ao ouvir negros puros falando alemão.
Ocorreu-me
a explicação de que a semelhança por mim verificada entre Maceió
e Florianópolis se originava de um imperativo geográfico. Maceió
é uma península. Esta cidade é uma ilha. A peninsularidade de
minha terra natal e a insularidade de Florianópolis terão
assegurado a ambas defender e proteger certos valores –
arquitetônicos, morais, religiosos, sociais, paisagísticos – das
marés descaracterizadoras. Aqui, como a mormacenta Maceió, é
castiça terra de peixe, de camarão, de lagosta, de crustáceos e
moluscos.
Nessa
minha primeira viagem a Florianópolis, a culinária magnífica de
frutos do mar fez renascer o menino guloso que sempre se esconde
e se exibe em mim – e espero que desta vez ele volte a
manifestar-se com o mesmo brio.
Cidade que
porta o nome daquele marechal misterioso que, no tumultuado e
sombrio alvorecer de nossa República, implantou um autoritarismo
que continua sendo um dos ingredientes das medicinas políticas
do nosso país – Florianópolis tinha para mim o sabor de um
estado que tirou o seu nome das águas: o estado das Alagoas.
Ao
percorrer as suas ruas e ao deter-me na arquitetura graciosa e
caprichosa e meio rococó do belo Palácio do Governador, tão
assemelhado aos palácios brancos dos rústicos e perdulários
governadores nordestinos, dominava-me o sentimento da unidade do
Brasil – uma unidade nascida de sua notável e até surpreendente
diversidade; tão diversa e misteriosa que foi aqui, nesta loura
e branca Ilha do Desterro, que nasceu aquele poeta maldito que é
hoje um clássico, e só pode e deve ser colocado ao lado de
Castro Alves, Gonçalves Dias, Manuel Bandeira e Carlos Drummond
de Andrade.
Com
efeito, a aparição de Cruz e Sousa, o chamado Cisne Negro,
sublinhada pelo contínuo esplendor do seu destino póstumo,
aponta para o mistério das pequenas províncias que – como
Alagoas produziu Jorge de Lima e Graciliano Ramos – geram
figuras exponenciais das letras e das artes. Assim, para tudo
resumir, em Florianópolis eu me sentia em casa; e o meu
sentir-me em casa abrangia o lauto cardápio oceânico, o azulejo
das casas, a claridade da paisagem, todo o longe tornado perto e
íntimo. E ao sentimento do presente se colava a lembrança dos
dias idos e esvaídos – o que acontece agora, induzindo-me a um
cotejo entre a realidade marcada pela estampilha do tempo e o
instante ainda à espera do selo da História.
No rosto
de cada jovem que ora está diante de mim leio e vejo o processo
de afirmação de uma personalidade, de busca de um destino e
reivindicação de uma subjetividade. Aqui eles, os moços, estão
procurando o sentido de suas vidas, como criaturas humanas e
cidadãos. Estão ouvindo, no fundo de suas consciências, aquele
chamamento ora claro ora escuro que é a voz da vocação e o
desvelamento de um espaço profissional ainda nublado pela
expectativa e interrogação do futuro.
Diante
desses jovens postados no umbral da esperança, seja-me permitido
trazer uma contribuição pessoal ao espetáculo do tempo que se
sucede a si mesmo, carregado dos sonhos que também se repetem.
Foi na
minha infância que escolhi o que queria e desejava ser. Eu
queria ser poeta e escritor. Não havia precedentes literários em
minha família. Não havia sequer uma biblioteca doméstica para
atender às minhas crescentes necessidades de leitura, à avidez
de evadir-me do pequeno horizonte ensolarado e atingir o patamar
dos mundos imaginários. Na cidade de Maceió, na década de 30,
não havia sequer uma biblioteca pública para o meu ostensivo
prazer de ler. Essa carência me obrigou a entrar para uma
irmandade religiosa dotada de algumas estantes prontas para
saciar-me, na qual numerosos livros profanos, de cunho
folhetinesco, contrastavam com a severidade edificante das vidas
dos santos.
A
descoberta da Coleção Terramarear consolidou para sempre um
desejo que era uma vocação. O vento da aventura soprava em mim,
rival do vento alagoano. As letras e palavras dos romances
surpreendentes se convertiam em ondas que fustigavam os cascos
dos navios, em gaivotas que abafavam as imprecações dos piratas,
em ilhas que guardavam tesouros, em portos que abrigavam por um
momento as desilusões e os cansaços.
Enquanto
as leituras afortunadas se sucediam, abrindo para mim, cada dia,
o horizonte do mundo, a experiência colegial completava a
determinação obscura. Eu era o primeiro da classe no colégio de
irmãos maristas em que estudava; mas, apesar dessa condição
austera e magnífica, a minha nascente fidelidade aos mundos
nascidos das transgressões me levara a admirar e invejar os
alunos relapsos – os que se sentavam emblematicamente nos
últimos lugares, os colegas que fumavam, jactavam-se de
aventuras sexuais nem sempre ortodoxas e tiravam notas
vergonhosas. O meu sonho era ser o aluno relapso – aquele que
rompia a pequena ordem estabelecida e fincava desafiadoramente a
bandeira de sua desordem no morno horizonte cotidiano, assim
como um dos piratas dos romances de aventura por mim devorados
plantava a sua bandeira negra na ilha conquistada.
Primeiro
da classe, eu podia vangloriar-me de saber latim (pois naquele
tempo se estudava latim nos colégios) e francês. O rigor no
ensino do português, sob a férula de um professor que me
desafiava a descobrir os objetos diretos de Camões nos lugares
mais insólitos – e, muitas vezes, esses objetos diretos estavam
nas Índias ou na brisa que fustigava uma caravela –, esse rigor
me guiou para o território que haveria de ser o meu, para
sempre: o território da Linguagem.
Para mim,
as palavras tinham um som, um significado, uma figura, um peso,
uma densidade, um sortilégio. Eu queria ser um poeta ou
escritor, para poder converter a realidade em palavras e,
juntando a verdade e a mentira, criar aquela “terceira coisa”
que, segundo Goethe, é a criação literária.
Uma
leitura ocasional e providencial decidiu o meu destino. Um dia,
li num jornal estrangeiro misteriosamente ao alcance dos meus
olhos a história de um poeta francês chamado Jean-Nicolas Arthur
Rimbaud; e um dos poemas transcritos, “Les effarés”, que fala de
alguns meninos acocorados na calçada de uma padaria, vendo o
padeiro produzir pão, representou para mim a descoberta que
faltava para que eu seguisse o meu bom ou mau caminho. Era a
Poesia. A realidade mais trivial ou insólita era transformada em
poesia através do uso específico da linguagem dotada de ritmo:
uma linguagem que unia musicalidade e visualidade e construía,
no vazio do mundo, um determinado espaço verbal.
Tempos
depois, ao ir estudar no Recife, os meus primeiros passos me
encaminharam para a Biblioteca Pública, onde estava à minha
espera o volume bem-amado com as poesias de Rimbaud.
Varias
lições recolho desse tempo colegial. O rigor das regras
escolares não sufocou o meu caminho. Já que a literatura é uma
operação linguística e semântica, o ensino imperativo do
português, do latim, do francês e do inglês permitiu-me
ingressar num universo léxico e sintático que é o próprio
universo da criação poética e literária. A ética então dominante
estabelecia o respeito religioso à norma culta, à regra modelar
e exemplar. E impunha ainda a memorização reiterada e até
implacável como condição soberana da aprendizagem. Quem não
decorava não sabia.
Invoco
esse tempo ditoso porque os jovens aqui presentes não o
conheceram e começaram a estudar num meio educacional
completamente diverso. Posso mesmo dar um outro exemplo. Quando
entravámos na escola, naquele tempo em que as crianças eram
vistas talvez menos como crianças do que como futuros homens e
cidadãos, aprendíamos caligrafia. A arte de escrever começava
onde devia começar – no desenho das letras airosas, que
conciliavam os padrões clássicos da escrita com uma nascente
expressão pessoal. Assim, comecei a escrever que Ivo viu a uva.
No meu
tempo de colegial só estudávamos os autores mortos – e, no caso
dos textos em nossa língua, só autores portugueses, como Camões,
Herculano, o Rebelo da Silva de “A última corrida de touros em
Salvaterra”, eram admitidos nos manuais, que às vezes
condescendiam em abrigar alguns trechos de José de Alencar,
Machado de Assis e Rui Barbosa.
A
literatura viva, a que se produz sob o nosso sol e sob os nossos
olhos, não apenas não era admitida como era como se não
existisse. Assim, ao me afastar dos bancos escolares, terminado
o ciclo da literatura dos romances de aventuras, tive o maior
susto ao descobrir que a literatura existia como uma realidade
viva e nova, na poesia de Bandeira e no romance de José Lins do
Rego. Descobri, inclusive, que em minha própria terra natal, um
romancista chamado Graciliano Ramos escrevera Caetés, São
Bernardo e Angústia, antes que o tivessem jogado, de
cabeça raspada, no porão de um navio, levando-o, como preso
político, para a Ilha Grande. E também descobri que fora em
Alagoas que o poeta Jorge de Lima cantara o Nordeste mestiço e
dengoso, antes que, como remate a uma intriga amorosa, alguns
tiros à queima-roupa, surpreendentemente desviados de seu alvo,
o obrigassem a deixar a terra natal, tendo na bagagem os anjos e
moças afogadas que tanto haveriam de aturdir a rotina da
metrópole literária.
Creio que
foi na década de 60, e por conta da belicosa onda nacionalista
do regime instaurado por um golpe militar, que o ensino
brasileiro enveredou pelo estudo ou até mesmo o culto da nossa
literatura viva, engastando autores contemporâneos no currículo
dos exames vestibulares. Simultaneamente, o ensino da gramática
foi substituído pela disciplina da Expressão e Comunicação, a
qual passou a privilegiar a fala coloquial e o texto bizarro ou
transgressor. Deixou-se, pois, de estudar e ensinar gramática
nas escolas, privilegiando-se o texto considerado palpitante,
orvalhado pelo instante e pelo dia que passa. Até as vozes dos
compositores populares e as mais desabridas ou consideradas
corajosas experimentações linguísticas eram oferecidas às
crianças, como uma dose cavalar de poesia e criatividade.
Não eram
apenas as salas de aula que ostentavam essas notáveis
modificações. Era a própria sociedade que mudava. Uma nova
sociedade estava nascendo: a sociedade de massas, a sociedade
eletrônica com a sua parafernália audiovisual. Novas linguagens
se acrescentavam à velha linguagem verbal. A televisão, o disco,
o filme, o computador, o cartaz veemente, o videoclipe, vinham
para ficar. Mas vinham, também, para mudar e reduzir o espaço da
comunicação e expressão verbal.
Na minha
condição provecta de pai e avô, tenho autoridade para dizer que
essa transformação formidável e irresistível se, de um lado,
representa a aparição de um mundo novo e prosperante, de outro
significa uma redução irrefutável na capacidade humana de
exprimir-se verbalmente. As novas gerações brasileiras se estão
convertendo em gerações de criaturas gestuais ou tartamudeantes,
monossilábicas e onomatopaicas que, muitas vezes, substituem a
palavra e a frase pelo grunhido. E grunhidos encantadores,
quando emitidos por moças bonitas.
A
supressão do ensino do latim e a extinção do estudo sistemático
da gramática assentado no império da norma culta têm sido fatais
para a nossa capacidade de expressão comunitária e nacional.
A
televisão, ao impor um léxico básico e construções sintáticas
padronizadas, está extinguindo a diversidade dos falares e
dizeres regionais e anulando a diferença enriquecedora que há
entre a expressão verbal dos habitantes de Blumenau e a dos
moradores da alagoana Arapiraca. Nessa marcha vertiginosa, todo
o povo brasileiro terminará falando, e até escrevendo, com a
mesma regência e as mesmas e reduzidas expressões – o que
significará que, falando igualmente, ele terminará mudo, uma vez
que o uso da palavra é o uso de uma diferença e o exercício de
uma peculiaridade.
Embora o
Brasil seja a maior nação de língua portuguesa em todo o mundo,
abrigando mais de 80% dos seus falantes, e tendo assim a
responsabilidade inarredável do seu futuro e destino, escrevemos
e falamos uma língua ameaçada e cada vez mais convertida num
caçanje eletrônico ou jornalístico.
Essa
ameaça não se circunscreve à base didática. Abrange todos os
patamares da vida comunitária. Milhares de palavras inglesas
povoam o nosso universo de trabalho e recreação. Não encontramos
ou não logramos encontrar equivalentes, em nossa língua, para a
utilização e fruição da parafernália que testemunha o nosso
ingresso na modernidade industrial. O universo da informática e
de outras tecnologias importadas incorporou-se a nós sem que o
traduzíssemos – e mesmo as criaturas mais modestas, como as
telefonistas, os antenistas de televisão e os operários de uma
oficina de automóveis se exprimem num bilinguismo surpreendente,
o mesmo que nos aguarda nos aeroportos, bancos e hotéis.
Cada vez
exprimimos menos. Cada vez comunicamos e nos comunicamos menos.
Quanto mais informados nos consideramos, menos estamos sabendo.
E quanto mais falamos, menos dizemos. A televisão e o jornalismo
padronizadores, ao silenciar os falares e dizeres regionais,
devastam um dos nossos maiores tesouros, que é o nosso português
renascentista, com os seus arcaísmos e giros sintáticos, de que
somos, ou éramos, o santuário privilegiado. A portuguesa língua,
que os colonizadores trouxeram para o Nordeste e os açorianos
para Santa Catarina, corre grande perigo.
Sou um
poeta. E na minha condição de poeta, de usuário de uma língua
especializada dentro da língua correntia e comunitária, cada vez
mais me sinto acuado num mundo que é o meu, por ser o mundo da
minha contemporaneidade e de minha respiração espiritual.
Não me
conformo em que a minha língua nativa seja uma língua
estrangeira, ou apenas uma ilha sitiada, em minha própria
pátria.
E também
não aceito o processo de insulamento a que é submetida a própria
criação literária.
Tem sido
exaustivamente louvada a prioridade conferida, nas escolas e
universidades, à literatura viva e em processo contínuo de
gestação. Mas no outro lado da moeda, ou da ilha, está o
esquecimento do passado, a falta de interrogação aos clássicos,
a extinção impiedosa do ontem, o abandono às tradições e o
menosprezo aos legados culturais ostensivos ou escondidos e às
transmissões sociais e familiares.
Incontáveis professores que transitam no território literário
são antigos alunos vitimados pelo processo repetitivo e
simplificador que aboliu a visão da criação literária e
artística como um grande sistema.
Para eles,
a literatura brasileira começa no Modernismo de 1922, e não em
Homero. O desconhecimento de línguas e do acervo cultural do
Ocidente, quer o que guarda a imaginação humana, quer o de
natureza crítica, agrava ainda mais a situação que converte a
criação artística e literária do Brasil numa bizarra ilha
tropical, sem as pontes, os portos e os navios que documentam a
transplantação que nos modelou.
Assim como
a supressão do latim nas escolas tornou a nossa língua
portuguesa uma língua sem passado, a nossa criação estética é
apresentada como uma filha de si mesma, sem genealogia e
ancestralidade. A ausência do sentimento do passado a torna
cativa de uma permanente atualidade que a desfigura, ao ignorar
ou excluir a genealogia estética e a tradição que cada geração
deve conhecer para poder reinventá-la e transgredi-la.
No
contexto de expansão de um ensino das letras centrado em sua
contemporaneidade, ocorreu no Brasil uma proliferação por assim
dizer cogumélica de faculdades de Letras que não hesitou em
avançar pelas geografias mais adustas. E, nelas, adotou-se uma
pedagogia em que a Teoria Literária foi erigida à condição de
ciência talvez mais exata do que a Química ou a Física, muito
embora ela merecesse, pela sua configuração abstrusa e carga
ficcional, ser colocada ao lado da astrologia.
Já se terá
dito todo o mal possível, e todo o bem admissível e imaginário,
dessa exacerbação teórica que grassou no sistema educacional
brasileiro, conferindo ao texto literário uma nebulosa missão
criptográfica, convertendo-o num território de adivinhações
sucessivas e num poço de ambiguidades inesgotáveis, numa
operação redutora e circunscrita a certos e determinados autores
transformados em espaços únicos e privilegiados de uma leitura
desmontadora.
Não
necessitaremos mencionar o estigma de colonização literária
evidente nessa prática, que ajunta, às vezes de forma colisiva,
doutrinas e técnicas estrangeiras quase sempre hauridas em
traduções discutíveis.
O que mais
importa dizer é que essa operação desarticuladora exclui quase
sempre a maior gratificação do texto, que é o prazer da leitura.
Ao colocar
os alunos diante do texto como se eles fossem neófitos
incumbidos de autopsiar um cadáver, os teóricos aborígines
afastam e distanciam o que deveria ser aproximado ou iluminado.
Substituem o prazer estético pelas análises letais.
Em vez de
uma leitura gelada ou congelada dos textos literários, cabe
reivindicar a que cria e recria a emoção e o fervor, como se o
jovem leitor estivesse diante de um romance de aventuras e se
sentisse tocado pela brisa que vem das ilhas afortunadas.
Cumpre
devolver ao leitor – aquele que, ao ler, promulga a existência
da literatura – uma inocência perdida. Nesta Aula Magna sob o
signo do vento e da ilha, imagino a Universidade como um lugar
de diferença e diversidade – um espaço que deve ensinar a cada
um dos estudantes que ele é uma aventura pessoal irrepetível, e
em sua presença no mundo e na vida se engasta um projeto de
afirmação individual destinado a produzir e projetar uma
personalidade nítida.
Vejo a
Universidade como a ilha de saber e pesquisa em que os jovens
passam da leitura dos livros à leitura do mundo.
Muito
poderia eu falar sobre esse mundo da padronização e
massificação, do consumismo compulsivo, do controle sutil das
consciências praticado pelos grandes empórios da mídia
eletrônica e jornalística, da economia globalizada, das
indústrias do imaginário que produzem os novos ópios dos povos e
das massas, das tecnologias que disseminam ao mesmo tempo as
riquezas deslumbrantes e a miserabilidade planetária, desse
mundo em que a razão e a irracionalidade disputam o mesmo
espaço, e a segurança e a violência institucionalizada são tão
cotidianas como a água e o pão; desse mundo onde as guerras
religiosas e étnicas ressurgem e recrudecem como se fossem a
aurora de uma nova barbárie. E não nos esqueçamos de que a
destruição ecológica e as migrações dos sem-terra e dos sem-teto
já começaram no Brasil; e o desemprego gerado pelo nosso
neoliberalismo de estação repetidora aumenta cada vez mais o
numero dos excluídos e oprimidos numa sociedade que, como a
nossa, desde o seu alvorecer se colocou sob o signo da opressão
e da exclusão decorrentes de uma impiedosa separação de classes.
Prefiro
encerrar esta Aula desejando aos jovens estudantes desta
Universidade que, enquanto aqui estiverem, aprendam a descobrir
uma ilha – uma ilha de amor, de solidariedade humana, de
esperança e confiança, e até de ambição de felicidade. Uma ilha
de saberes, técnicas e conhecimentos a serviço da condição
humana e do sabor e eternidade da vida. E guardem essa ilha em
seus corações, a vida inteira. |