Um poeta chamado Ledo Ivo
Floriano Martins
Em
um estranho e imenso país chamado Brasil costuma ocorrer coisas
por vezes muito curiosas e até preocupantes. Ao longo de minhas
viagens a países hispano-americanos, convidado a participar de
eventos literários, sempre me surpreendia a maneira afetuosa com
que se falava em Lêdo Ivo (Maceió, 1924). A princípio me parecia
um mal entendido, porque a suposição correta era de que seriam
outros os famosos a alcançar projeção internacional. Mas logo
vou descobrindo que a raiz de tudo está na pouca (ou nenhuma)
atenção que escritores brasileiros dão à América Hispânica, um
comportamento que reflete o alto grau de provincianismo de nossa
cultura. De qualquer maneira, fui constatando a freqüência com
que o nome de Lêdo Ivo me era indagado e me encabulava o fato de
não conhecê-lo pessoalmente ou mesmo haver sequer trocado alguma
correspondência com ele em minha vida. Pior: eu praticamente não
conhecia sua poesia. Um dia finalmente coincidimos em Santo
Domingo e fomos apresentados por nosso comum editor mexicano,
José Angel Leyva. Sua figura carismática, amiga, divertida,
rapidamente instalou entre nós boa amizade e mútuo respeito
intelectual. De regresso ao Brasil, Lêdo me enviou seus livros e
avançamos em nosso diálogo, sempre me inquietando o fato de que
sendo autor tão reconhecido nos países vizinhos não gozasse do
mesmo prestígio no Brasil. Em 2009 recebi convite da Casa das
Américas, para ir a Cuba integrar o júri de seu famoso prêmio
literário. Ao encontrar entre os livros inscritos a poesia de
Lêdo Ivo, percebi a oportunidade que se abria e tratei de
conversar com os dois outros membros do júri, a brasileira Ana
Maria Gonçalves e o angolano Ondjaki, observando a importância
de registrar, através do Prêmio Casa das Américas, o valor da
poesia deste brasileiro de ainda exíguo reconhecimento em seu
próprio país. E sem necessitar dever favores a ninguém, pois o
livro inscrito, Réquiem, não somente oferece grande
poesia, como vinha de duas belas edições no exterior,
precisamente no México e na Itália. Assim é que fico feliz por
haver de alguma maneira contribuído no sentido de remediar
parcialmente a desatenção brasileira em relação à obra poética
de Lêdo Ivo. Posteriormente o poeta ganharia também o
Prêmio de Poesia
do Mundo Latino Victor Sandoval (México, 2008) e
Prêmio
Rosalía de Castro (Espanha, 2010). Publicado em países como
Espanha, Dinamarca, Itália e Estados Unidos, assim como, em
países hispano-americanos, Chile, Venezuela, Peru e México. A
seguir, uma breve conversa nossa sobre alguns aspectos de sua
vida e da literatura brasileira. Abraxas
FM
Há uma observação que fazes a respeito de tua avó materna, no
sentido de que ela “era uma católica praticante: um catolicismo
ortodoxo, jamais baianizado”. Sempre me pareceu que a literatura
no Brasil foi profundamente prejudicada pela interferência
católica. Bem entendido: do catolicismo adotado por nossos
escritores e intelectuais. Figuras determinantes como Alceu
Amoroso Lima e Mario de Andrade quando menos propiciaram um fio
de alta tensão entre o que chamas de catolicismo ortodoxo e
baianizado, reorientando a vocação poética de muitos de nossos
escritores, interferindo na própria configuração cultural do
país. Qual a extensão de um prejuízo dessa natureza, em teu
entendimento?
LI
Não creio que “a literatura no Brasil foi profundamente
prejudicada pela interferência católica”. Como todos os países
do Ocidente, o Brasil, como civilização, é uma criação do
Cristianismo, cuja maior obra é a própria Europa. Foi o
Cristianismo que colonizou a América, deixando marcas
imperecíveis em sua educação, arquitetura, música, pintura, modo
de viver e de morrer etc. Esse impacto civilizatório, destruindo
em muitos casos civilizações milenares, como as maia, asteca,
inca, modelou o sistema de educação e de produção literária e
artística. O Brasil, desde o dia de sua “descoberta”, com a
Primeira Missa, seguiu e segue esse caminho.
Cabe
destacar que, no século
xix, a inteligência brasileira em sua maioria seguiu o
caminho do Positivismo, e recebeu influências de Darwin e
Spencer, neutralizando poderosamente o selo católico da nossa
civilização, a qual se caracterizava pelo fato de o catolicismo
ser a religião oficial do país. Além do mais, cumpre sublinhar
que essa nova direção literária e artística se disseminou no
século xx. O grupo
católico (Jackson de Figueiredo, Alceu Amoroso Lima, Jorge de
Lima, Murilo Mendes, Otávio de Faria, Tasso da Silveira e tantos
outros) representa essa projeção de espiritualidade, numa
literatura de forte conteúdo regionalista, paisagístico e de
escassa interrogação existencial. Hoje, com a expansão dos
evangélicos e das religiões e seitas africanas, a influência
católica, quer a temporal, quer a espiritual, diminuiu
sensivelmente, e são raros os escritores brasileiros aos quais
se poderia considerar “católicos fervorosos” ou atuantes. Na
imensa maioria, eles, como os pintores e músicos, são católicos
históricos e tradicionais (herdeiros de tradições domésticas)
“livres-pensadores” ou declaradamente ateus.
Deve ainda
ser acentuado que a literatura não é um caminho único, e a
comunidade literária se irradia em várias e numerosas famílias
espirituais, tanto no plano estético como nos planos político e
moral.
FM
Bem, não podemos esquecer que o projeto modernista de
nacionalizar o Brasil tinha forte conotação católica, cujos
desdobramentos conduziram ao integralismo. Benjamin Moser, na
biografia de Clarice Lispector, por exemplo, ao referir-se a
Plínio Salgado, observa que “como muitos integralistas, Salgado
era fortemente influenciado pelos escritores católicos que
emergiram nos anos 1920, com suas sugestões de nacionalismo
místico”. Havia então a presença da revista A Ordem,
dirigida por Augusto Frederico Schmidt, em um ambiente onde se
confundiam aspectos como a chamada escola introspectiva,
nacionalismo místico, integralismo, em uma mesma sala
frequentada por Tristão de Athayde, Mário de Andrade, o próprio
Schmidt, Plínio Salgado, ambiente que em dado momento chegou a
estar sob a coordenação impositiva da Agência Nacional e
Lourival Fontes, o super-homem de Getúlio Vargas no comando do
Departamento de Imprensa e Propaganda. Ainda me refiro ao
Benjamin Moser, ao dizer que “a fé católica de muitos desses
escritores levou alguns deles a se associar, em geral
temporariamente, ao integralismo, e a defender certas propostas
reacionárias, como a militância de Vinicius de Moraes em favor
do cinema mudo”. Quando passamos à Geração de 45, o que muda
nessa relação com o catolicismo?
LI
Não creio que o projeto modernista de nacionalização do Brasil
tenha tido “forte conotação católica” como você afirma. Esse
projeto se inspirou em elementos indígenas e folclóricos, como o
comprova o Manifesto Antropofágico de Oswald de Andrade e a
redescoberta do barroco mineiro por Mario de Andrade, o qual
era, aliás, um católico tradicional. E a esses elementos de
ancestralidade se acrescentou um tempero de vanguardismo
europeu, especialmente o sentimento da velocidade haurido no
futurismo de Marinetti. Observe-se que os modernistas de São
Paulo ignoravam o Nordeste brasileiro e o viam de longe com
olhos turísticos. E de “turistas aprendizes”, para usar aqui uma
expressão afortunada de Mario de Andrade. Plínio Salgado, com os
romances em que se utiliza de um processo de fragmentação da
narrativa, e uso imoderado da elipse e do laconismo, é um
seguidor e discípulo de Oswald. Como é um discípulo incômodo,
dada a sua condição de criador do Integralismo (o chamado
“fascismo caboclo”), a crítica e os estudiosos do Modernismo
sempre esconderam essa evidência, omitindo seu nome ou
menosprezando-o, com a exceção notável de Wilson Martins que, em
sua monumental História da Inteligência Brasileira, chama
a atenção para a importância seminal de O Estrangeiro no
cenário da nossa ficção. Quanto a Vinicius de Moraes, ele foi
uma descoberta de Otávio de Faria, que lhe dedicou parte do
livro Dois Poetas (o outro é Augusto Frederico Schmidt).
Otávio de Faria, autor de um incômodo e instigante ensaio
Machiavel e o Brasil, em que denuncia as nossa misérias
políticas, influenciou profundamente Vinicius de Moraes em sua
primeira formação marcada pela sua simpatia pelo fascismo. Eram
amigos íntimos e ocorreu entre ambos uma relação homossexual que
foi apagada quando Vinicius se tornou um dos expoentes da
esquerda e do comunismo de salão. O seu interesse pelo cinema
mudo veio de Otávio de Faria, criador do Clube Chaplin, quando
estudante da Faculdade Nacional de Direito. Nada teve a ver com
o catolicismo. E há uma retificação que deve ser feita: Otávio
de Faria nunca foi integralista. Ele foi fascista, assim como
Jorge Amado, Graciliano Ramos e Carlos Drummond de Andrade foram
comunistas, e Rachel de Queiroz foi comunista e depois
trotskista num tempo em que a intelectualidade em sua maior
parte não acreditava na Democracia, considerando-a o regime da
burguesia conservadora e infensa às grandes reformas políticas
sociais e econômicas. E além do mais, o Brasil de 1930 até 1945
foi governado pelo estadista autoritário, centralizador e
ditatorial Getúlio Vargas, e na Europa imperavam o nazismo de
Hitler, o fascismo de Mussolini, o franquismo do generalíssimo
Franco e várias ditaduras sul-americanas dominavam a América.
Evidentemente que a inclinação dos escritores católicos ou de
famílias tradicionalmente católicas era pelo fascismo e o
integralismo. (“Deus, Pátria, Família”, era o lema do
integralismo. Os integralistas envergavam uma camisa verde com
um sigma que os distinguia, como os nazistas e fascistas).
Quando a
Geração de 45 emerge, finda a Segunda Grande Guerra com a
derrocada do nazismo e do fascismo, o debate político passa a um
segundo plano. Pelo menos no seu início, essa geração será
formalista e esteticista, preocupada com a “reconstrução” da
poesia e da literatura brasileira. O nacionalismo modernista
será substituído por um subjetivismo crescente e por um
cosmopolitismo de natureza atualizadora. É o tempo da descoberta
de Rilke, T. S. Eliot, Paul Valery, Mallarmé, Ezra Pound,
Saint-John Perse, Ungaretti e outros, que substituíram as
devoções modernistas. E estas eram Apollinaire, o futurista
Marinetti e o Blaise Ceadrars que Oswald de Andrade praticamente
depenou em seu Pau- Brasil. Uma coisa singular é que o
Modernismo, teoricamente programado para proceder a uma
atualização da literatura brasileira, foi um dos movimentos mais
desatualizados e desinformados em relação às revoluções
estéticas que então se operavam na Europa e nos Estados Unidos.
No grande banquete dos ismos do século XX, alimentou-se de
migalhas.
FM
Estamos de acordo que “uma luz impostora ilumina todas as
vidas”. Evidente que não significa com isto falsear a realidade
de forma canalha, mas antes reconhecê-la como uma mescla de
razões e desrazões, anseios e decepções, impulsos e repetições,
essências e trivialidades. Como a poesia te descobre? O que
sabias de ti quando começaste a escrever?
LI
Ao longo de minha trajetória literária, tenho me manifestado
talvez exaustivamente sobre a criação poética e a poesia. E
decerto essas manifestações haverão de ser sempre fragmentárias
e incompletas. Para mim, a poesia é uma manifestação da
criatividade humana; uma arte – a arte de fazer versos; o uso
supremo da linguagem, já que ela é uma magia verbal, um “idioma”
específico dentro da linguagem não só a comum como também da
linguagem literária da prosa; um testemunho da condição humana;
uma celebração do Universo pelo homem. Dentro desse quadro
imemorial, que proclama a necessidade humana de exprimir-se
(inventando e documentando a passagem do tempo e a sua
experiência pessoal), cumpre sublinhar, com a necessária ênfase,
que a Poesia resulta de uma vocação individual e intransferível,
que se realiza e se aprimora através do trabalho, da pesquisa,
da experimentação e da capacidade de renovação diante da
tradição. O poeta nasce poeta e se faz e é feito pela cultura
que consegue incorporar ao seu ofício. E ele é apenas um elo no
grande sistema poético do mundo, um grão de poeira numa tradição
que vem do início do mundo e haverá de continuar enquanto este
nosso planeta existir. Isto porque há algo, no mundo e sobre o
mundo, que só a linguagem poética tem condições de exprimir. Há
algo, no homem, do homem e para o homem, que só o poeta tem
condições de dizer, através de e com a sua linguagem.
Quando
comecei a escrever na adolescência, nada sabia de mim, a não ser
que desejava ser um poeta e escritor, e colocar a minha poesia e
a minha prosa a serviço dos homens, o que significa colocá-la a
serviço da vida e até da mudança do mundo, já que a mim me doíam
e me doem a miséria e a injustiça, a desesperança e a morte.
O
importante é que o escritor ou poeta projete em sua obra a sua
experiência, aquilo que Rubén Darío chama de “o tesouro
pessoal”. E converta essa experiência numa linguagem
inconfundível.
FM
Quais, aos olhos de um poeta brasileiro, seriam as verdadeiras
provas da realidade?
LI
A realidade é sempre uma visão pessoal da realidade. Cada um de
nós tem a sua, e trabalha com ela ou para ela. É, assim, uma
representação, um modo de ver. Entendo que cada poeta, desde os
mais exponenciais aos mais modestos e obscuros, projeta em seus
poemas uma determinada visão da realidade, do mundo em que
respiram, da vida que levam. Para mim, até o sonho e a
“alienação poética” são realidades, pois se integram na vida
pessoal do poeta e em sua produção. Direi que a visão que tenho
do mundo é a minha realidade. É talvez ou decerto uma realidade
pessoal, intransferível, mas nela cabem ou devem caber as
realidades dos outros. Goethe diz que os homens são seres
coletivos. Isto significa que não somos sozinhos nem estamos
sós. Somos nós e os outros. Os outros de hoje e os outros de
ontem.
FM
Entendes que o cosmopolitismo da literatura brasileira é uma
farsa? Como nos relacionamos com grandes centros canônicos e não
com a grandeza natural da cultura em cada país, que outro Brasil
tens descoberto à sombra dessa máscara?
LI
Partamos do princípio e da evidência de que nós, escritores
latino-americanos, somos seres divididos entre o nosso
indigenismo e a nossa ibericidade. Como todos os países
periféricos que constituem a América Ibérica (à qual o Brasil
pertence), temos uma língua e uma etnia europeias (o espanhol, o
português) e somos os herdeiros ou usufrutuários de uma cultura
transplantada e da cultura autóctone. E a essas culturas se soma
a cultura milenar que nos veio da África À cultura transplantada
– literatura, música, arquitetura, educação, culinária, modo de
viver e de morrer etc. – conferimos um selo nacional que é a
nossa diferença decorrente do nosso indigenismo. O chamado
“cosmopolitismo” de parte da literatura brasileira – como de
resto a dos outros países como Cuba ou México, Chile ou
Argentina – testemunha a nossa ligação transatlântica com a
Europa, que, como centro inarredável de tradição e laboratório
de experimentação e invenção, atrai a nossa atenção, nos
abastece com o seu saber e a sua criatividade e contribui para o
nosso aprimoramento. E se funde com o que temos de telúrico e
nativo, do nosso chão. Atualmente, podemos vangloriar-nos de que
a produção literária e artística na América Ibérica já atingiu
um ostensivo grau de autonomia e independência, não pelo que
recebemos ou imitamos, mas pelo que criamos e inventamos. A
América Latina se tornou a pátria da imaginação e da
criatividade, cada vez mais apreciada pelos estudiosos, críticos
e leitores de uma Europa que atravessa um período da ostensiva
exaustão, após tantos movimentos renovadores como o simbolismo,
o surrealismo, o cubismo, o futurismo, o expressionismo e
outros. A presença de escritores latino-americanos no fluxo
editorial europeu, e ainda a sua presença nos festivais e
congressos realizados na Europa, indica que cada vez mais
estamos sendo reconhecidos pela nossa diferença e originalidade.
Com a sua explosão imaginativa, a diversidade artística, o seu
ímpeto testemunhal e documental, a sua diversidade artística e a
sua originalidade manifesta, a literatura, hispano-americana é
cada vez mais apreciada e aplaudida na Europa. Ostentamos,
ainda, uma “irracionalidade” e uma “magicidade” que, pela sua
dimensão onírica, primitiva e arcaica, é outra fonte de atração.
FM
O tempo envelhece o criador ou a criatura?
LI
Há poetas e escritores que dão o melhor de si mesmos na
juventude ou na maturidade, e decaem ou se tornam repetitivos à
medida que envelhecem. Outros há que se inovam e dão o melhor de
si mesmos na idade madura e na velhice. É um quadro variado. O
importante é que o poeta ou escritor descubra o momento em que
deve silenciar, se é que ele deve silenciar em algum instante de
sua vida.
FM
Na pg. 132 do teu livro de ensaios O Ajudante de Mentiroso
mencionas a tua insularidade como elemento responsável pelo que
chamas de “talvez incômodo ar de estrangeiro no cenário das
letras brasileiras”. Restringes a uma inveja crônica a
relutância do meio literário em relação à tua obra e até mesmo à
tua pessoa. O caso se explica assim mesmo, de maneira tão
provinciana?
LI
No meu caso pessoal, a minha “insularidade” decorre da
circunstância de ser originário de Alagoas, no Nordeste
brasileiro – uma região que se caracteriza pela sua beleza
oceânica e litorânea, pela miséria clamorosa da maior parte de
sua população. Acrescente-se a essas evidências a minha solidão,
já que, antes de mim, minha terra natal só produziu dois
escritores de projeção nacional, Graciliano Ramos e Jorge de
Lima. A esses elementos, acresce o fato de ter seguido, no meu
ofício literário e poético, um caminho que atesta
irrefutavelmente a minha diferença em relação à minha geração e
talvez ao próprio legado cultural do Brasil. Costumo dizer que
os escritores são constituídos pelo talento (quando o têm) e
pela inveja (sempre). Mas esta minha frase deve ser acolhida
mais como uma boutade. Embora a vida literária seja um
ostensivo domínio de competição e conflitos, e espelhe as
virtudes e vícios da condição humana, é também o território de
uma convivência harmoniosa. Ao longo do meu trajeto de escritor,
muitas mãos, algumas gloriosas, se têm estendido para mim,
apoiando-me e abrindo-me caminho. E, de minha parte, tenho
procurado proceder da mesma maneira. Minha vida tem sido um
estuário de amizades. E também de admiração. Sei admirar.
De
qualquer modo, sinto-me um sobrevivente, já que atravessei
vários movimentos poéticos sem aderir a eles – o que não foi o
caso de grandes poetas empenhados em obter o aplauso ou a
cumplicidade dos jovens – e assisti ao sumiço e naufrágio desses
movimentos. Confesso que sou muito cioso de minha diferença, a
qual se projeta no meu trabalho e na minha maneira de conceber a
literatura e a poesia, e deve constituir o meu selo pessoal de
poeta e escritor, o que me distingue dos meus queridos
confrades.
FM
Outro dilema curioso que encontramos na literatura brasileira
diz respeito a este seu aspecto livresco – uma literatura “que
só sabe respirar o ar abafado dos livros” –, como tão bem
mencionas. O escritor brasileiro, em geral, rejeita a si mesmo
como elemento constitutivo da relação – que só se realiza, por
sinal, de maneira visceral – entre realidade e literatura. Há o
prejuízo imediato da superficialidade e um outro, por efeito de
decorrência, de ausência de diálogo com as grandes correntes
internacionais. Apontamos aqui as resultantes – teu diagnóstico
é perfeito, ao dizer que esta literatura “não pode fazer a
leitura do mundo” –, porém, qual é a matriz em que se origina
este desvio?
LI
Um escritor deve ser livresco e antilivresco. Deve ser guiado
pela evidência de que a literatura e a poesia são problemas de
cultura e não de mera sensibilidade. Um poeta, a meu ver, deve
ser o protagonista mais culto da comunidade literária, devendo
conhecer um legado que vem de Homero a Dante, de Virgilio a
Camões, de Quevedo a Shakespeare e se estende até os nossos
dias. O conhecimento de outras línguas é para mim fundamental,
já que a tradição cultural da língua portuguesa era insuficiente
para as minhas necessidades de expressão e educação cultural. Já
o espectro da língua espanhola é diferente. Você pode ser um
grande poeta ou romancista em língua espanhola sem necessitar
conhecer outras línguas, já que no passado hispânico há
Cervantes e Quevedo, Lope de Vega e Garcilano de la Vega, Fray
Luis de Leon e Rubén Dario, Góngora e Antonio Machado, e
centenas de outras referências basilares.
Por outro
lado, o escritor deve respirar o ar da vida, da convivência, o
mundo dos outros, pois nele é que se abastece para a sua criação
poética e literária. E cada poeta ou prosador faz a sua
leitura do mundo – não uma leitura global e total do mundo, que
é muito vasto e inapreensível.
Lembro o verso magistral de José Martí: “Dos patrias tengo yo:
Cuba y la noche”.
Nós,
poetas, temos sempre a nossa Cuba (o nosso Brasil, o nosso
México, o nosso Chile) encravada em nossos corações. E temos a
noite: o território das escuridões e constelações, dos sonhos e
pesadelos, da interrogação existencial, da indagação
cosmológica, da fusão amorosa, do amor e do ódio, de nossa
condição humana.
FM
Em 2002, quando Walter Galvani recebeu o Prêmio Casa das
Américas, em entrevista concedida a Fabrício Carpinejar (Rascunho,
junho de 2002), o romancista comentou haver sentido restrição da
parte da mídia brasileira, que ele supõe tenha sido em relação
ao regime cubano, observando que “a divulgação em si não foi à
altura do prêmio, que tem prestígio e significado
internacional”. Mais recentemente ganhaste o mesmo prêmio. Como
há reagido à premiação a imprensa brasileira? Acreditas que este
prêmio tenha perdido prestígio internacional?
LI
O Brasil é um grande gueto literário e lingüístico. A literatura
brasileira é completamente desconhecida no Exterior. Alguns
poetas e novelistas são editados e apreciados, individualmente,
na América Hispânica e em alguns países da Europa, mas esse
conhecimento de criações artísticas individuais não chega a se
configurar na presença de um país (ainda exótico) e de uma
literatura. No plano interno o desconhecimento é ainda mais
pungente. As tiragens dos nossos livros literários são quase
sempre exíguas. Predomina no mercado o livro estrangeiro,
especialmente o best-seller planetário, sinal inequívoco
da colonização cultural e da dominação comercial por editores
multinacionais. A atividade literária no Brasil é cosmética,
decorativa, ornamental. Ser escritor no Brasil é uma coisa muito
melancólica.
FM
És um dos poucos autores brasileiros com trânsito livre nos
países hispano-americanos. Transfiro para ti a pergunta que
quase sempre me fazem, acerca do indigesto silêncio que marca as
relações culturais do Brasil com esses países. Quais os motivos
da pouca (ou nenhuma) atenção que nossos intelectuais, sobretudo
eles, dão à poesia hispano-americana?
LI
Não posso
nem devo esconder que a minha condição de “poeta
ibero-americano”, decorrente de minha presença em numerosos
festivais de poesia e também de sucessivas traduções de minha
poesia, em antologias poéticas ou em livros autônomos, muito me
alegra. Esse trânsito, iniciado em 1980, quando Carlos
Montemayor fez editar no México a antologia La Imaginária
Ventana Abierta, e que hoje alcança a Espanha, onde a minha
obra poética começou a ser traduzida de maneira intensiva, é
realmente um trânsito pessoal. Várias causas podem ser
atribuídas ao silêncio do Brasil. Menciono a circunstância de
que a língua espanhola só agora, no governo Lula, começou a ser
ensinada nas escolas. Até antes da Segunda Grande Guerra, os
escritores brasileiros, quando sabiam francês, ensinada nos
colégios, se voltavam para França. E quando só conheciam o
português, contentavam-se com as traduções estrangeiras e as
produções existentes no idioma nativo. O exílio de incontáveis
professores e escritores brasileiros nos países da América
Hispânica, durante a ditadura, instaurada em 1964, estimulou a
curiosidade em torno das literaturas desses países. Mas o
caminho da descoberta haverá de ser longo e demorado, e
literaturas ricas e vigorosas de uma América que é hoje a pátria
da imaginação e da poesia haverão de ser consumidas pelos
escritores e leitores brasileiros. Cabe ainda sublinhar a
inoperância dos mecanismos culturais destinados a promover a
nossa literatura no Exterior, o que estabeleceria uma
contrapartida proveitosa com as demais nações
hispano-americanas.
É notório
que a poesia produzida em grandes países do Ocidente está hoje
esgotada e necessita de uma transfusão que a América
ibero-americana tem condição de oferecer.
A
repercussão escassa do Prêmio da Casa das Américas a um escritor
brasileiro deve ser atribuída à visão provinciana que o Brasil
tem do próprio Brasil, e que se irradia por todos os setores. O
prestígio dos prêmios da Casa das Américas nos países
hispano-americanos e na Espanha e em outros países da Europa é
incontestável.
Quando fui
distinguido com o Prêmio Literatura Brasileira da Casa das
Américas, a repercussão nos países hispano-americanos e na
Espanha foi confortadora. No Brasil, foi irrisória.
O
insulamento cultural do Brasil é uma realidade incontestável. E
precisamos de pontes, neste mundo cercado de outros lados. |