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2000-2010
 

 

 

 

BANDA LUSÓFONA | PORTUGAL

Luís de Camões | (1524-1580)

Luís de Camões, leitor de Petrarca, amoroso pela “activa”

Júlio Conrado

Luís Vaz de Camões, o maior poeta português de sempre e um dos vultos da literatura do Renascimento, permanece um enigma para a maioria dos estudiosos da sua obra e da sua vida. Densas zonas de penumbra impedem a caracterização rigorosa do sulco juvenil numa literatura que não prima pelo encarecimento da factualidade biográfica, afigurando-se apenas indiscutível que as atribulações de uma existência insegura desde cedo sinalizaram os destinos do homem como inapagável marca de água sem contudo obliterarem a prodigiosa evidência do seu consistente arsenal teórico. Logo aí, na adolescência, haveria que determinar as causas do que viria a revelar-se uma sólida cultura bebida nos clássicos, servida por uma intuição de sobredotado para apreender os modelos e os códigos literários vigentes na Europa erudita e disseminados no ocidente periférico pela via do latim. Dá-se por provável que este cabedal de erudição o tenha Camões adquirido em Coimbra, onde estudou     ( talvez ) sob a protecção de um tio, o frade crúzio Bento de Camões, prior do Mosteiro de Santa Cruz e chanceler da Universidade. Aí terá frequentado um curso de Artes e desistido de abraçar a carreira eclesiástica para a qual eram encaminhados os filhos dos fidalgos pobres, depois de ter tido acesso aos centros da aristocracia intelectual coimbrã - a biblioteca do Mosteiro era, só por si, uma das melhores da Europa - e convivido com mestres de superior formação humanística forjados na escola do Renascimento triunfante.

De regresso à cidade natal, Lisboa, por volta dos vinte anos, salienta-se pelo envolvimento nas mais variadas tropelias que o conduzem a desterros, à prisão, ao Paço, onde levanta os olhos para damas inacessíveis e a prostíbulos como o Malcozinhado onde confraterniza com a escória local. Daí, parte para um primeiro desterro no Ribatejo (Constância) ao qual corresponde a lenda de um amor por alguém que pairava acima das suas possibilidades, sendo que a dama em questão tanto poderia ter sido a infanta D. Maria como Francisca de Aragão ou uma das três Catarina de Ataíde, comprazendo-se os seus biógrafos em especulações ambiciosas à volta do objecto da paixão daquele que em vária flama variamente ardia. Nada há que comprove este contencioso nos termos em que a lenda o articula no imaginário popular e nas suspeitas de alguns historiadores mais dados à leitura livre do espírito da época. Daí, Lisboa, sai para a expedição a Ceuta, onde perde o olho direito numa escaramuça contra os mouros. Lisboa assiste ainda à sua partida para a Índia como soldado raso depois de cumprido o castigo resultante do famoso episódio da cutilada no funcionário da Cavalariça Real, Gaspar Borges, que lhe valeu o encarceramento durante nove meses numa das piores enxovias da capital - a prisão do Tronco. A menção, na Carta de Perdão Real de 1553, de que o mancebo pobre se oferece para servir el-rei na Índia, expediente de que Camões decerto lançou mão para acelerar o acto de benevolência régia que o colocaria fora da cadeia e naturalmente também para “fugir a quantos laços nessa terra (Lisboa) me armavam os acontecimentos”, como mais tarde dirá numa carta a um amigo, esvazia a versão do desterro compulsivo ainda que dele, desterro, se não exclua a importância da pressão das circunstâncias adversas.

O espólio epistolográfico constituído por cartas dirigidas a amigos dá do “período de Lisboa” um retrato arrasador que dificulta a construção do mito nacional camoneano nos moldes em que tantos o tentaram erguer - ao arrepio da verdadeira condição social do poeta no quotidiano do seu tempo e da natural propensão para se enredar em casos de ordem pública pouco dignificantes para a sua reputação. O carácter brigão que o celebrizava como arruaceiro roubava-lhe espaço como cidadão e provavelmente qualificava-o como ornamento cultural indesejável no Paço. Por algum motivo lhe chamavam o Trinca Fortes, alcunha de que, aliás, se ufanava, achando que, quanto às solas dos pés, de mas não verem nunca, me fez ver as de muitos. O auto-reconhecimento das nefastas consequências para a sua imagem das amizades que se acendiam em ódios que disparavam lume que (lhe) deitavam mais pingos na fama do que nos couros de um leitão é patente numa das cartas.

António José Saraiva, um dos biógrafos de Camões, comentando o livro de Aquilino Ribeiro Camões Fabuloso e Verdadeiro (1951), não hesita em corroborar a tese do grande escritor português segundo a qual “as mulheres ( de Camões ) foram não as infantas eternamente virginais mas as rameiras; por companheiros teve os arruaceiros que se chocavam em bandos na Lisboa nocturna da época, de mistura com os embarcadiços de passagem.” Mas não embarca em todas as interpretações que Aquilino, na sua ânsia de apoucar um mito recuperado e trabalhado para servir os desígnios do nacionalismo salazarista, vai buscar às cartas, apesar de concordar com a ideia de que o poeta foi um outsider relativamente aos literatos instalados, um inadaptado, um mal-amado orgulhoso mas impotente perante a acção de mecanismos de poder cujo funcionamento não percebia e cuja malignidade, ao ser escolhido para vítima, atribuía à má fortuna e ao destino.

Escreve Saraiva:

“A poesia de Camões revela uma cultura incompatível com uma formação literária superficial ou de autodidacta. Não é apenas a mitologia, a história, a cosmografia, semeadas na sua obra com segurança e familiaridade; não é apenas o conhecimento da Bíblia, de que glosou vários passos...; não é apenas o platonismo, que conheceu e meditou. É, mais do que isso, o conhecimento dos clássicos latinos, com Vergílio à cabeça. E é sobretudo a qualidade do estilo, revelando o saber experimentado do latim, a mão longamente amestrada, a mão sábia. Camões é, mais do que um homem de letras, um letrado, e o mais sabedor letrado do nosso século XVI... Ora essa mão ensinada e erudita, produto de uma longa paciência estudiosa, só se adquire na escola, desde menino... Camões cursou com aproveitamenrto as Humanidades.”

Salta, pois, à vista de todos que Camões, homem culto em cujo espírito fermentou o ideal renascentista de ressurreição das letras e das artes, viveu intensamente, na parte que lhe coube, em sintonia afectiva, emocional e cultural com ele, o período caracterizado por Jean Delumeau como promoção do Ocidente, “durante o qual a civilização da Europa ultrapassou em muito o nível que fora atingido pela da Antiguidade e pelas outras civilizações paralelas”. Inteligente e inconformista, sobrevivendo no dia-a-dia por vezes ao nível da pura subsistência mas situando-se em plano superior aos seus concidadãos nas luzes do conhecimento, na inquietação intelectual e na intuição artística, Camões cantou o Amor nas belas composições em dolce stil nuovo que denunciam a influência retardada de Petrarca e do seu epígono Bembo na exaltação da figura da Mulher, pelo menos numa fase da sua produção - a da juventude - que se presume ser a mais ligada ao paradigma italiano.

“Boa parte do lirismo camoniano é constituído por poesia amorosa do mais alto e fino platonismo, e o grande mestre dos platonizantes dos séculos XV e XVI, entre eles Camões, era Petrarca.”, diz Hernani Cidade no seu Luís de Camões, Arcádia, 1964. Trinta e um anos mais tarde Aníbal de Castro (Biblos, 1995) chama a atenção para a urgência em se promover um trabalho de investigação exaustivo “segundo as recentes metodologias da teoria da recepção e do confronto intertextual, de modo a determinar com mais precisão a complexa rede de relações que liga o texto camoniano à cultura literária do seu tempo.” Para este professor da Universidade de Coimbra, o papel da poesia catalã de um Ausias March na transmissão dos códigos do Petrarquismo e do Neoplatonismo peninsulares, reclamam uma nova e especial atenção da parte dos investigadores. Camões cantou o amor e a mulher “segundo os cânones mais rigorosos da tópica e da retórica petrarquistas”, é certo, mas, refere ainda Aníbal de Castro, “recolhendo, com um admirável sentido de ecletismo várias tradições estéticas”, para com os elementos delas recebidos operar “uma profunda metamorfose, que abrange todos os aspectos conteudísticos e formais presentes no texto literário.” Nesta medida, Camões ter-se-á apropriado do código petrarquista para o reorganizar “em função de um veemente e múltiplo dissídio dialéctico” cuja afirmação lírica passou pelo recurso “aos meios semânticos e estilísticos que a tradição petrarquista, numa dimensão bem mais reduzida, consagrara à simples expressão 'estado incerto' “ e que, na época, “já estavam confinados à condição de estereótipos formais bem pouco convincentes”.

Passando por alto que a vertente petrarquista da lírica de Camões, associada a manifestações de petrarquismo noutros autores, conhece hoje em Portugal um renovado movimento de atenção por parte de alguns estudiosos ( veja-se o texto de Rita Marnoto O Petrarquismo Português do Renascimento e do Maneirismo, U. Coimbra, 1994), fixemo-nos, para terminar, num livro precioso intitulado Viagens do Olhar, Retrospecção, Visão e Profecia no Renascimento Português ( Prémio Jacinto Prado Coelho,1998 ), da autoria de um romancista e ensaísta, Helder Macedo, e de um filósofo, Fernando Gil. Neste trabalho a duas mãos sublinha-se, em jeito de lamentação, o facto de Camões não se ter organizado para a posteridade, tal como o fizeram Dante e Petrarca, o que leva a que a questão da cronologia da lírica seja um processo permanentemente em aberto, território mal identificado, perigoso para os timoratos, sedutor para os audazes. O escritor, que se ocupou da lírica ajudado por algumas cartas, optou pela audácia. Preferiu pôr o seu olhar arguto a viajar pela obra com o propósito de conferir alguma coerência sequencial ao que se dava a ver, mau grado a inocente ausência de coordenadas de tempo e de lugar constrangerem a visibilidade do trajecto diacrónico da escrita e do seu sujeito. Helder focou a lírica numa perspectiva do desejo - apetite e razão - não muito estudada por contemporâneos e antepassados, que aponta para a reavaliação da personalidade do poeta através do recurso a métodos de psicanálise textual em que o tema recorrente do amor fornece as informações de que a investigação precisa por forma a que o veio satírico-vitalista se sobreponha à linha mais conforme às convenções literárias da época.

No ensaio de H. de M. são evidenciados alguns sinais da consciência que Camões tem da oposição entre a experiência vivida e os modelos estéticos que durante um dado período foram os seus. De certa maneira, o poeta “petrarquista” liberta-se do pai poético num processo normal de ruptura que configura o abandono de uma tutela que não encaixa já no conhecimento prático das dialécticas do quotidiano e no que desse conhecimento se torna matéria viva do poema. Camões - escreve H. de M. - “ficou a dever a Petrarca acima de tudo a aprendizagem poética que lhe permitiu tornar a língua portuguesa um instrumento capaz de cantar com italiana luminosidade.” Mas a crítica ao amor inconsequente expressa numa das suas epístolas, com alusões directas a Petrarca e a Platão, deixam poucas dúvidas quanto ao entendimento anti-petrarquista e pragmático que Camões tem do assunto amático: E eu já de mi vos hei confessar que os meus amores hão-de ser pela activa, e que ela há-de ser a paciente e eu agente, porque esta é a verdade.” Entre a passiva deificação da Mulher da lição clássica e as tarefas de agente “pela activa” que têm por objecto a submissão da paciente, o vate resolve-se pelas segundas, ou seja, pela tomada de partido pela vida, o que vale por uma revisão radical do aprendido à custa do que a experiência ensina e corrige. De facto, uma experiência de errância, de conflito com a lei, de permanente desafio da novidade, de viagem, de amores múltiplos espalhados pelas partidas do mundo onde pousou os pés, só poderia repercutir no texto poético do modo que Helder de Macedo lucidamente sintetiza: apetite e razão.

A razão da angústia existencial não lhe vem da dicotomia amor platónico / amor consumado porque essa, tudo o indica, logrou ele resolvê-la dando escoamento normal aos mais categóricos apelos orgânicos, mas sim dos desconcertos de um mundo onde o apetite de ser feliz “pela positiva” sempre se cruzou no lugar mítico da contabilização dos seus erros com o agudo remorso desses mesmos erros. Erros meus, má fortuna, amor ardente, eis a confissão l de infelicidade vinda de quem tanto desesperou para ser feliz. No fim, o universo pesaroso que anunciava a dissolução da pátria no império espanhol e a consolidação do poder emergente da Santa Inquisição associaram-se da pior maneira ao fado triste que foi a vida deste poeta maior.

[Comunicação apresentada no Congresso da Associação Internacional dos Críticos Literários de Valsini, Itália, 2001.]

 

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2. Quais são as contribuições essenciais que existem na poesia que se faz em teu país que deveriam ter repercussão ou reconhecimento internacional?
3. O que impede uma existência de relações mais estreitas entre os diversos países de língua portuguesa?

Todo este material deve ser encaminhado em um único arquivo em formato word, para o seguinte e-mail: agulha.floriano@gmail.com. Agradecemos também o envio de uma fotografia (jpg), assim como de textos críticos, livros de poesia e material jornalístico sobre o mesmo tema. O Projeto Editorial Banda Lusófona é uma fonte de informações que reflete, sobretudo, a ampla generosidade de todos aqueles que dele participam. O acesso a cada país deve ser feito através do selo correspondente.

 
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