Luís Murat, porfiosa palma
Lêdo
Ivo
De
Luís Murat, tão bem tratado por Sílvio Romero em sua história da
literatura e aí citado, ao lado de Bilac, Guimarães Passos,
Augusto de Lima e Medeiros e Albuquerque, entre os “poetas
proeminentes em 1888”, nada resta. As antologias omitem-no, não
permitindo ao leitor de hoje o conhecimento daquele “talento
pessoal e forte”. Seus livros não são encontrados. Assim, o
caminho mais fácil para um conhecimento superficial do autor de
Ondas é um dos tomos do entusiasmado Romero, que nele
enxergou títulos para uma sobrevida literária que não houve,
considerando-o divergente dos românticos e dos parnasianos,
maneira de acentuar o elemento pessoal do poeta e seu
desajeitamento diante dos cânones da confraria.
Mas o seu
nome ocorre às vezes, ao leitor, não diante de seus versos
difíceis de serem encontrados, mas de outros textos, os do
grande poeta parnasiano Raimundo Correia. E é a medo que a gente
cita o pecúlio do cantor de Plenilúnio. O esquecido
defunto de 1929, que agrediu literariamente Raul Pompeia e
Machado de Assis, pode aparecer diante de nós e, assoprando as
cinzas de uma polêmica já fria, gesticular como nos outros
tempos: “Não são dele! Raimundo Correia é um plagiário.” E, como
se estivesse diante de um aluno sedento de informações
preciosas, desfiará o sabido rosário, vinculando “As pombas” ao
“Les colombes” e ao trecho do Mademoiselle de Maupin, de
Gautier, citando o “Si a ciascun l’intimo affano”, de Metastasio,
para pulverizar os decassílabos espartilhados do “Mal secreto”,
denunciando a discreta e encantadora pilhagem.
Todavia,
embora os sólidos argumentos sobre o desfile de paráfrases,
imitações e empréstimos, a verdade é que Raimundo Correia ganhou
a questão. Apesar das comprovações, o (proeminente em 1888) Luís
Murat não se saiu lá muito bem da affaire. Terminou
esquecido, arquivado – punição desmedida para sua falta de tato
ou sensibilidade diante de uma questão de minúcia, isto é, a
complexidade e sutileza que envolvem os plágios desses artefatos
verbais chamados poemas.
Que, no
caso do “Mal secreto”, do “Vinho de Hebe”, de “As pombas”, e em
muitos outros, houve paráfrase, não há dúvida. E os três sonetos
que habitam em tantos álbuns e antologias são típicos do
processo de criação do nosso parnasiano, habitualmente voltado
para o armazém poético de seus modelos favoritos, reinventando
textos alheios e movendo-se, com os seus invejáveis timbres, na
flutuante fronteira dos versos e das versões.
Em sua
introdução às poesias completas de Raimundo Correia, esse
devotado pesquisador da vida e da obra do autor de Sinfonias
que foi Múcio Leão amplia o território das informações sobre
a faina de tradutor e parafrasta do nosso lírico. Nenhuma dúvida
de que sua fortuna muito deve a intertextualizações e
empréstimos feitos a Gautier, Lenau, Madame Ackermann, Heine,
Victor Hugo, Heredia, Coppée, Catulle Mendes e muitos outros,
uns citados, outros modestamente escondidos em indicações dúbias
ou cautelosamente omitidos, como se as peças tivessem nascido de
inspirações e ideias originais e não de impregnações livrescas.
Realmente,
o teor de originalidade não é um dos traços fortes de Raimundo
Correia; mas a verdade é que tanto as paráfrases ostensivas
quanto as ideias inspiradoras foram reinventadas, e
intertextualizadas, feitas de novo em palavras pelo nosso
parnasiano, através de uma alquimia verbal que, significando uso
inédito da linguagem, chega a tornar fatigantes os debates sobre
o assunto.
A tradução
de um poema não é a mesma coisa que a tradução de um compêndio
científico, cujos conceitos podem ser facilmente transportados
para outro idioma. Tratase, em verdade, de uma operação que,
embora procurando transplantar o sentido fiel do texto, reclama
a utilização de um verdadeiro arsenal criador; é o domínio das
equivalências sonoras, do ritmo que se muda em encantação, da
imagem que se funde simultaneamente em melodia e conceito. Além
do mais, o papel da imitação em poesia (“Car j’imite.
Plusieurs personnes s’en sont scandalisées. La pretention de ne
pas imiter ne va pas sans tartuferie, et camoufle mal le mauvais
ouvrier.
Tout le
monde imite. Tout le monde ne le dit pas” – Aragon, prefácio a
Les yeux d’Elsa) torna menos ampla a área das acusações
que Luís Murat e seus sequazes levantaram contra Raimundo
Correia. O poeta de “Mal secreto” nada fez senão seguir uma
tradição remota e válida, pela qual o conhecimento e a
utilização do patrimônio poético, no caso o de um elenco
prestigioso da poesia europeia do século XIX, se inserem numa
perspectiva cultural de inegável eficácia.
Na nota à
edição de suas Poesias, Raimundo Correia, aludindo a “As
pombas” e “Mal secreto”, os aponta como “dois sonetos que
parecem ter pelo menos a ventura de ser os mais conhecidos”.
Nenhuma palavra sobre Gautier ou o italiano, e seu silêncio é,
no caso, enraizada e inabalável convicção de autoria. Na
relação, vem “Vinho de Hebe”, “cumprindo ao autor notar aqui,
com relação a esse último soneto apenas, que a ideia contida
nele lhe foi mais diretamente sugerida por uns belos versos de
Mme. de Ackermann (Premières poésies) dos quais
entretanto o mesmo soneto não é tradução, nem paráfrase”.
A
explicação de Raimundo Correia nada tem de cerebrina; é sincera
e esteticamente correta. Nem tradução, nem paráfrase, apesar dos
cotejos, e da circunstância de o nosso lírico ter enchido sua
taça no vinho da madame.
O grande
erro de Murat, pelo que nos evidenciam os estilhaços da
polêmica, foi não ter percebido que a palavra plágio era bem
forte, apesar das evidências; tratava-se mais de uma vivência.
Transposição de temas, de imagens, de lições, tudo isso é de
pouca monta, é satélite obrigado a obedecer a novo ritmo
sideral. Gautier, Metastasio, Madame Louise Ackermann, Heredia e
quejandos entraram com as ideias. Mas não se faz poesia com
ideias, e sim com palavras, já dizia Mallarmé. E as palavras dos
sonetos que tanto irritaram o inquisidor Luís Murat eram de
Raimundo Correia. |