Memória de
um tempo e de Luiza Neto Jorge
Gastão
Cruz
No
mesmo dia da segunda quinzena de Outubro de 1958 conheci a Luiza
e a Fiama, quando, pelo menos oficialmente, começavam as aulas
no novo edifício da Faculdade de Letras, que nesse ano lectivo
se inaugurava.
Passámos a
conviver diariamente, descobrindo os nossos interesses comuns.
Soube que a Fiama acabava de publicar um livro, intitulado Em
cada Pedra um Voo Imóvel, que me ofereceu.
Havia na
Faculdade uma exposição de pintura em que ambas participavam e
fiquei, durante algum tempo, poucos dias, suponho, a pensar que
a Luiza se dedicava exclusivamente às artes plásticas: além da
pintura, desenho, cerâmica. A certa altura, alguém falou dos
poemas e contos que ela escrevia e em breve pude começar a
conhecê-los. Também a Fiama, além de poemas, escrevia contos e
peças de teatro, vindo uma destas, O Cais, a ser
representada no Anfiteatro 1 da Faculdade, com encenação do
então jovem actor profissional Armando Cortês, que dava apoio
artístico ao Círculo de Teatro. Na mesma época (59, 60), a Luiza
foi directora do Círculo, promovendo a apresentação de peças de
Ionesco ou Thornton Wilder (em Pullman Car Hiawatha,
deste último, dirigida por Fernando Amado, representei até um
pequeno papel), naqueles tempos grande novidade.
O Manuel
Baptista, que eu conhecia de Faro (donde ambos viéramos), tendo
já exposto as suas pinturas no Círculo Cultural do Algarve, e
que viria a fazer as capas e o arranjo gráfico de Poesia 61
e de vários livros, estava alojado em casa da Maria Teresa
Horta, na Avenida de Roma, e aos sábados à noite muita gente
passava por lá, pelo menos entre 1959 e 1961, tanto quanto me
recordo. Foi numa dessas noites, creio que em 1961, que apareceu
também o Herberto e nos conhecemos, já depois da publicação de
A Colher na Boca e de Poesia 61.
Na
Faculdade eu começara a ter aulas com Vitorino Nemésio, o Padre
Manuel Antunes, o filólogo brasileiro Serafim da Silva Neto.
Diz Silva
Pinto: “Cesário Verde matriculara-se no Curso em homenagem às
Letras, como se as Letras lá estivessem – no Curso”. Também nós
púnhamos alguma esperança no aprofundamento do nosso incipiente
saber literário, ao entrarmos naquela casa, descendente do Curso
Superior de Letras, que D. Pedro V fundara. Não estou certo de
que, realmente, “as Letras lá estivessem”, mas, em qualquer dos
casos, não poderíamos dela sair completamente defraudados,
depois de escutarmos, além dos professores que já citei, outros
como David Mourão-Ferreira, Maria de Lourdes Belchior, Lindley
Cintra, Jacinto do Prado Coelho ou Joaquim Monteiro Grilo (o
poeta Tomaz Kim, que vinha dos Cadernos de Poesia e me
iniciou, entre outras, na poesia de T. S. Eliot).
Toda esta
aprendizagem se cruzava com o nosso próprio convívio poético e
com a actividade que de Faro nos chegava através dos primeiros
números dos Cadernos do Meio-Dia e dos pequenos volumes
das colecções A Palavra e Sílex.
António
Ramos Rosa era a presença dominante, quer pela sua poesia, que
começara a surgir em livro (O Grito Claro, primeiro
número da colecção A Palavra, em 1958, a que se seguiria, dois
anos depois, na Ática, Viagem através duma Nebulosa),
quer pela acção crítica militante, na defesa e na divulgação de
uma nova poesia e da poesia moderna em geral – o que já fizera
nas páginas da Árvore, entre 1951 e 1953, quando nelas
igualmente publicara alguns poemas marcantes da nossa
modernidade como “Telegrama sem classificação especial” ou “O
boi da paciência”, e continuava a fazer como principal crítico
dos Cadernos, para além da sua colaboração regular em
jornais.
A
importância dos Cadernos do Meio-Dia e das referidas
colecções para a geração cujo aparecimento ficaria associado à
década de 60 foi enorme. Pode mesmo dizer-se que, para a poesia
portuguesa, a década de 60 começou em 1958. Tentando ver a
evolução da poesia independentemente do frágil conceito de
geração, verifica-se que a nova poesia não era somente a dos
jovens poetas de 60, mas havia uma plena interacção entre esta e
a de alguns poetas mais velhos que em 1958 contribuíram com
livros decisivos para esse processo de renovação: Sophia, com
Mar Novo, Jorge de Sena, com Fidelidade, Alexandre
O’Neill, com No Reino da Dinamarca, Eugénio de Andrade,
com Coração do Dia. E, obviamente, Ramos Rosa, com O
Grito Claro. Em 1957, tinha havido Pena Capital de
Mário Cesariny. E haveria, em 1960, Cantata de Carlos de
Oliveira, que só depois da sua integração em Poesias, de
1962, se tornaria uma obra verdadeiramente conhecida.
Sucede
que, com excepção de Sophia, todos estes poetas, e muitos
outros, colaboravam nos Cadernos do Meio-Dia, de que em
1958 (Abril, Julho e Outubro) apareceram os três primeiros
números (e, em Fevereiro de 1959, o número 4). Foi aí que eu e
os outros jovens poetas com quem começara a relacionar-me lemos,
porventura pela primeira vez, poemas de Cesariny, Carlos de
Oliveira, O’Neill, Eugénio, Sena ou Echevarría. E foi lá também
que, logo no primeiro número, encontrámos um “fragmento” do
Canto Nupcial de Herberto Helder, pouco depois publicado
pelas Edições Contraponto, de Luís Pacheco, com o título O
Amor em Visita, que Ramos Rosa recensearia no terceiro dos
Cadernos. A Fiama, a Maria Teresa Horta e eu
colaboraríamos no número 5 (o Casimiro aparecera no primeiro e a
Luiza deveria publicar poemas no sexto, que já não saiu).
Entretanto, as colecções prosseguiam. A seguir a O Grito
Claro, foi editado o número 2 de A Palavra: Telegramas
do Casimiro de Brito. E, depois do meu encontro com a Fiama e a
Luiza, intermediei na publicação dos números 3 e 4 da colecção:
O Aquário, segundo livro da Fiama, em 1959, e A Noite
Vertebrada, primeiro da Luiza, em 1960, o mesmo ano em que,
na outra colecção, Sílex, a Teresa se estreava com
Espelho Inicial.
A Luiza
tinha o que podemos chamar uma personalidade forte, tal como a
Fiama, com quem o entendimento era perfeito: coincidiam quase
sempre, para não dizer sempre, em convicções, opiniões e gostos,
trocavam textos, trabalhavam juntas em pintura e cerâmica (o
poema “Os meus ecos de Luiza N. J.” evoca esta actividade, na
casa familiar da Fiama, em Carcavelos). A elas juntava-se, mas
só no que à literatura dizia respeito, não nas artes plásticas,
a Luísa Ducla Soares, que viria, mais tarde, a dedicar-se quase
exclusivamente a escrever para crianças. Naqueles anos produzia
poemas e contos de uma grande limpidez de linguagem, de uma
simplicidade cristalina e extremamente original, que todos
admirávamos. As duas Luísas eram, literariamente, de algum modo,
o oposto uma da outra e talvez a Fiama fosse uma síntese das
duas, ou, talvez melhor, uma terceira via, em que a face
apolínea da Luísa e o rosto dionisíaco da Luiza se misturavam,
ou digladiavam, ou emergiam separadamente.
A Luiza
era já, quando a conheci, uma pessoa politicamente muito
empenhada. A opção interventiva, que outros, entre os quais eu
próprio, só assumiriam plenamente por volta de 61 (mas é claro
que a consciência de oposição frontal ao regime vinha de muito
antes), consolidando-a durante as lutas estudantis de 1962, já
ela anteriormente a fizera, em estreita ligação com a actividade
clandestina do Partido Comunista, do qual, creio, sempre se
manteria próxima. Recordo-me de a ver distribuir, e dela
receber, aqueles pequenos exemplares do Avante, duas
folhas impressas em papel finíssimo.
Isso não a
impedia, evidentemente, de procurar uma linguagem poética que
nada tinha a ver com os padrões mais convencionais da literatura
de combate, principalmente os de uma espécie de segunda e
terceira gerações neo-realistas, afundadas nos mais indigentes
lugares comuns, que os neo-realistas do Novo Cancioneiro
tinham, nos melhores casos, sabido evitar (é um trabalho crítico
que está por fazer, como tantos outros, neste país de ideias
feitas e pouca atenção aos textos).
Existia, a
meu ver, entre a poesia da Luiza e a sua maneira de viver uma
perfeita convergência, uma coerência e uma unidade colocadas sob
o signo da força, da intensidade. Nada nela era mole, dúbio,
autocomplacente. Talvez um pouco tímida, era genuinamente avessa
a sentir-se em evidência e exercia de forma discreta um enorme
poder de sedução, que derivava, sobretudo, de um sentido de
humor sempre inteligente e atento e do modo positivo como
encarava a vida. Mesmo as grandes adversidades, enfrentou-as sem
autopiedade e sem queixas. E, no final da vida, quando teve de
passar longos períodos hospitalizada, manteve a capacidade de
conversar animadamente e de rir com quem a visitava, falando,
por vezes, dos seus problemas de saúde com, pelo menos
aparentes, objectividade e distância.
No fundo,
a Luiza quis e conseguiu, desde sempre, agarrar uma vida que
sentia que lhe poderia escapar cedo. Isso a fez pôr em cada
momento, em cada acto, uma energia invulgar, o que foi também,
naturalmente, o caso dos poemas, actos de vida que soube colocar
no mesmo plano de todos os outros.
Quando li
os seus primeiros textos, impressionou-me essa energia,
traduzida num ritmo quase percutido (esse sentido de
percussão era-me especialmente próximo) e num acervo de
metáforas que conferiam ao seu mundo um sentido trágico ou
inquietante. Já disso falei em alguns dos textos que sobre ela
escrevi. Versos como estes, de A Noite Vertebrada, não
mais abandonaram a minha memória: “um círio me acendi espora
aguda/o vento ritmo negro assassinou-o”.
Do ritmo
avassalador de muitos dos poemas da Luiza Neto Jorge é possível
dar inúmeros exemplos, de “A porta aporta”, “O exame” ou “A
quarta dimensão”, de A Quarta Dimensão, a “O corpo
insurrecto”, de Terra Imóvel, “A cabeça em ambulância”,
de O Seu a Seu Tempo, ou “Recanto 17”, de Dezanove
Recantos: “Se não havia (nem eu) ninguém ninguém/nas
fotografias: gostas? Chora! Às armas!/as armas e os varões/no
meio da alma e no corpo assinalados/no interior no escuro
escorregavam, não podem! gritavas,/agoniante parede a tua/pele e
o sangue.”
Incluí
estes e outros poemas em alguns dos recitais que organizei e
dirigi, desde a década de 60, no Colégio Moderno e na Faculdade,
até bem recentemente. E tenho ainda na cabeça as vozes dos
estudantes e dos actores que os disseram, por exemplo a da Ana
Teodósio, na vertiginosa sucessão ascensional dos versos, no
último dos poemas que mencionei, até ao paroxístico final, que,
como todo o livro que o integra, me parece constituir o momento
mais inovador e avançado, mais revolucionário, da
poesia portuguesa dos anos 60, que o mesmo é dizer, da poesia
portuguesa até agora, 2006: “Visto que (numa criptogrâmica) há
(flor! flor!)/absolutamente tudo, despojo e redenção, batalha
contra absolutamente tudo, mandíbulas a funcionalizar/em todos
estes sítios onde cedo demais/vamos nascendo/em qualquer sítio
para qualquer parte onde a morte/(l’amort! l’amourt!) isto é, a
flor… ou seja,/as flores…//fulminadas. E eu? disse eu aos tipos.
A troco de que/raiva de que destruição?//Porque se não é o fim
pergunto por que dinheiro?/ou por que regra? se forma o plural
acrescentando um s/ao(s) corpo(s) morto(s)
de todos//salvo/em excepção?” Isto mesmo tentei dizer, na sessão
de apresentação do livro, na Galeria 111, em 1969. Era este,
efectivamente, o “novo discurso” de que a Luiza falara e penso
que só outro livro partilha com Dezanove Recantos esse
lugar excepcional de ponto mais extremo atingido, até ao
presente, pela nossa poesia, na busca de uma arte poética
liberta de todos os eventuais constrangimentos, quer o dos
realismos redutores, quer o da concatenação e da plausibilidade
lógica, e, no entanto, ou por isso mesmo, criadora de sentidos
densos e de laços fortíssimos com o mundo, com a vida, com a
natureza: Área Branca (1978), da Fiama (a que somente o
ensaio de Luís Miguel Nava “Os poemas em branco de Fiama Hasse
Pais Brandão” soube até hoje dar a atenção devida), involuntária
mas demolidora resposta aos disparatados apelos de “regresso ao
real” surgidos na década de 70.
A poesia
da Luiza Neto Jorge é, como foi a sua vida, uma experiência
levada até ao limite da exigência e do rigor, um lugar onde é
preciso viver tudo, sem concessões à futilidade (“Não me quero
com o tempo nem com a moda”) e à normalidade (“Diferente
me concebo e só do avesso/o formato mulher se me acomoda”). A
poesia, só valerá, evidentemente, a pena fazê-la, se ela for,
como nos é dito no extraordinário poema-testamento
“Minibiografia”, uma espécie de bomba-relógio: “Um poema deixo,
ao retardador:/Meia palavra a bom entendedor.” Nele se fala
também da tranquila cedência ao rapto perpetrado pela “nave” que
virá do “fundo espaço”. Depois de uma vida e de uma poesia com
excessos mas sem excrescências, será possível subir “sem medo” a
uma “cena” da morte em tudo coerente com o que foi a cena da
vida: “E se a nave vier do fundo espaço/Cedo raptar-me,
assassinar-me, cedo:/Logo me leve, subirei sem medo/À cena do
mais árduo e do mais escasso.”
Um
implacável espírito crítico, que a levava a pôr em causa, para
frequentemente rejeitar, muito do que o mundo à sua volta lhe
mostrava, conduziu-a à recusa total da hipocrisia e à adopção de
atitudes firmes e corajosas, que, coerentemente, como comecei
por sublinhar, a sua obra documenta: poemas como “O ciclópico
acto” ou “Minibiografia” são disso exemplo.
Poesia
61
saiu em Maio e foi impressa em Faro, na Tipografia Cácima, a
mesma onde tinham sido feitos os Cadernos do Meio-Dia
e as duas colecções de poesia.
No ano
lectivo de 1961-1962, a Luiza foi dar aulas no Liceu de Faro. O
Zeca Afonso, ainda quase desconhecido e clandestino como músico
e cantor, era professor na Escola Comercial. A Luiza e o António
Barahona viveram, durante esse ano, na minha casa, ou melhor, na
casa da minha mãe, onde eu próprio regressava com frequência. E
em Faro apareceria a Agripina, amiga da Luiza, para conhecer o
António Ramos Rosa, com quem, pouco depois, casaria, levando-o a
mudar-se novamente para Lisboa. Entretanto, ao longo desses
meses, todos convivíamos alegremente em volta das mesas do Café
Aliança.
Sufocada
pela atmosfera opressiva e dificilmente respirável de um
Portugal esmagado pelo salazarismo, e tentando porventura,
simultaneamente, resolver problemas dramáticos da sua vida
pessoal, a Luiza procurou em Paris, onde passaria a maior parte
da década de 60, a “cidade aventureira”, “a cidade onde vives
por um fio/de/ puro acaso/onde morres ou vives não de
asfixia/mas às mãos de uma aventura de um comércio puro/sem a
moeda falsa do bem e do mal”: a cidade de que Alexandre O’Neill
fala em “Um adeus português”, contrapondo-a a Lisboa e ao seu
“modo funcionário de viver”.
Talvez a
tenha, pelo menos em parte, encontrado. Mas regressou. E
rapidamente o país parece ter de novo sobre ela exercido o mesmo
peso, agora definitivamente desinspirador. É certo que, depois
da publicação, em 1973, do volume de poemas reunidos (com partes
inéditas) Os Sítios Sitiados, ainda veio a alegria imensa
de Abril de 1974. Porém, o fim da revolução e a dita
normalização democrática repuseram em evidência toda a velha
mediocridade endémica da pátria, hoje, como nesse tempo, tão
ofensiva na sua arrogante auto-suficiência.
No período
que mediou entre a publicação de Os Sítios Sitiados e o
ano da sua morte, a Luiza traduziu muito – romance, teatro,
poesia – e trabalhou em guiões de filmes de alguns dos
principais realizadores portugueses.
Quando, em
1976, fiz a minha primeira encenação, para o recém-fundado Grupo
Teatro Hoje (antes de ele se tornar mais conhecido como Teatro
da Graça), Os Amantes Pueris, encomendei-lhe a tradução
da peça, de Fernand Crommelynck, que foi apresentada no Teatro
da Trindade e contou, entre outras colaborações preciosas, com
um cenário do José Rodrigues e uma interpretação do Mário Viegas
(a extraordinária composição do Barão Cazou) , que teriam ficado
históricos, se em Portugal houvesse história consistente de uma
arte cuja natureza efémera se torna aqui porventura mais efémera
ainda.
A tradução
da Luiza, ainda inédita, recriou admiravelmente o
simbolismo-decadentismo do texto, que, na sua manifesta
inactualidade (mas isso é que podia ser revolucionário) suscitou
a ira de alguns críticos, defensores, naquela época, de uma
instrumentalização política directa da arte teatral – e,
obviamente, também das outras.
No que
respeita à poesia, a Luiza manteve-se quase completamente
silenciosa nos últimos dezasseis anos de vida. Sabíamos que
tinha poemas inéditos, alguns possivelmente inacabados. Numa das
últimas vezes que a visitei no hospital, tentei persuadi-la a
revê-los e organizá-los em livro. Creio que prometeu fazê-lo;
mas disse também, numa espécie de aparte: “Quando eu fizer isso,
morro.”
Colaborei
com o Manuel João Gomes na complicada tarefa da fixação do texto
de A Lume, dificuldade que se encontra bem documentada
nas páginas do original reproduzidas, em apêndice, no livro.
Nele
reaparece o tom determinado, incisivo, da sua poesia, de uma
imaginação ardente (“Escritas daninhas: pouca me sinto já/para
expurgá-las! Em lava aluem,/riscam a lume páginas estremes”)
modulada pelo forte compromisso com o real, quer se tratasse de
falar dum braço partido, como no poema “Fractura”, a que as
linhas citadas pertencem, quer de descrever o “acordar na Rua do
Mundo” (nome antigo e republicano da Rua da Misericórdia, onde
vivia). Mas também o seu, como o de todos os grandes poetas, era
um “real absoluto”, não o dos realismos que apenas abrangem o
imediato e pequenino horizonte ao alcance das suas curtas
vistas.
A visão do
mundo da Luiza Neto Jorge tem outra dimensão e outras
implicações, patentes, por exemplo, no modo alarmado,
dramático, como ela observa a simples projecção da sua sombra
sobre a “terra imóvel”; assim o esclareceu, definindo “o
poema”, logo na abertura do seu livro de 1964: “Esclarecendo que
o poema/é um duelo agudíssimo/quero eu dizer um dedo/agudíssimo
claro/apontado ao coração do homem//falo/com uma agulha de
sangue/a coser-me todo o corpo/à garganta//e a esta terra
imóvel/onde já a minha sombra/é um traço de alarme”. E num dos
mais intensos poemas de A Lume apresenta-nos uma vida
deitada em “cama/de pregos, vidros/dentes de fera”, vestida com
o “fato/que”, devorado pelo fogo, “morte e vida/irmana.” Este
poema pode bem ser visto como síntese de toda a sua poesia,
imagem de um conceito de vida que é simultaneamente uma poética.
E por isso aqui fica:
Vivo em
lama
à beira
do derrame.
Na
cratera.
Vivo em
cama
de
pregos, vidros
dentes
de fera.
Vivo em
chama.
Pegou-se o fogo ao fato
que
morte e vida
irmana. |