Marco Lucchesi, a
poesia e a diferença
Floriano Martins
1.
O
primeiro que se pode dizer deste novo livro de Marco Lucchesi, O sorriso do caos (1997) é que se
trata de uma leitura de leituras, não por labiríntica aventura,
mas sim pelo que seus fragmentos guardam de vigorosa identidade.
Decompõe-se na leitura de múltiplos livros, sem que lhe falte a
unidade essencial. Disse Calvino que “a coisa
mais importante do mundo são os espaços vazios”. É o que parece
haver aprendido, até aqui, Marco Lucchesi de suas inúmeras
leituras. E busca então preencher tais espaços com sua paixão
pela síntese. Através da prodigiosa polifonia de suas leituras
não busca senão a literatura, guiado pelo que chama de “a
instância do diálogo e a chama da diferença”. Refiro-me à
literatura como totalidade.
Este O
sorriso do caos não se evita, contudo, a aventura
labiríntica. Trata-se de uma leitura lendo outras, da sagrada
virtude das correspondências, onde - e o diz o próprio autor,
embora se referindo à obra do italiano Carlo Emilio Gadda
- “toda aventura repousa no texto”. Coletânea de artigos
publicados em grande parte na imprensa carioca, é possível dizer
dela o que já salientam suas páginas acerca de um livro de Luís
Costa Lima:
que não oriunda de suas partes seu encanto e sim do “sistema que
as configura”.
Ardente
defensor da identidade a partir da diferença, Marco Lucchesi (1963) propõe a leitura de dois princípios
essenciais: a unidade e a pluralidade. Melhor: só se alcança a
primeira graças ao banho ao natural da segunda. Por todo
o livro nos fala de aspectos que confirmam tal visão. Ao
escrever sobre Auden
destaca a “variedade temática de seus ensaios”. Diz de
Pasolini que foi “o mais aguerrido
defensor da diferença”. Sobre uma exposição de Fernando Diniz comenta o “brilho secreto e fugaz da unidade”.
Em uma entrevista com Roger Garaudy reporta-se ao “radical elogio da diferença”. Igual universo em
expansão, a malha de exemplos.
Mesmo se
nos detivermos nas particularidades dos artigos em si, não temos
senão o descortinar fascinante de um tecido múltiplo, o ritmo
com que deveria agir a cultura. Ou melhor: ação de determinados
criadores - tecendo a diferença justamente a partir da unidade -
cuja obra vai ultrapassar o front de previsibilidade que
se instalou em nossa contemporaneidade. Ardem as leituras de
Lucchesi
em sua urgência de realçar o que ele chama de “riscos plantados
na Diferença”. Ao escrever sobre Henri Michaux, Harold Bloom, Hermann Broch, Nise da Silveira, Umberto Eco e Alfred Döblin, define uma
rede de interligações entre esses autores. Trata-se de um
“sistema de sistemas”, como diz ao referir-se à visão de mundo
de Gadda.
Flagrante
a pluralidade - anárquico, busca a diferença na unidade e seu
revés -, recai sobre a literatura italiana especial atenção, o
que o leva a escrever sobre Gadda,
Alberto Moravia, Mario Tobino, Leonardo Sciascia, Pasolini, Giorgio Manganelli e Umberto Eco. Sendo resíduos fascinantes que buscam definir a
identidade a partir da diferença, serão válidos os comentários:
Caracteriza a obra de Emilio Gadda
(1893-1973) o intenso jorro metafórico, proliferando a imagem
através de vertiginosos espasmos. Operam uma raivosa tensão
entre o grotesco e o trágico, escritura furiosa que Lucchesi chama de “uma pluralidade de causas, quase um
emaranhado”. Alberto Moravia (1907) abole
as fronteiras entre o ensaio e o romance, rejeitando
violentamente códigos que limitem a ambos. Sua obsessão por um
sentido extremo de depuração crítica fez com que os traços
narrativos praticamente desaparecessem de um livro como La
vita interiore (1978). Diz Lucchesi que “a vida, segundo
Moravia, é um perfeito caos, do qual se pode extrair apenas
algum fragmento ordenado, e todavia misterioso”.
Seguindo
entre italianos: Mario Tobino
(1922-1963) e Leonardo Sciascia (1921).
Morto prematuramente aos 41 anos, Tobino foi um médico que
dialogou radicalmente com a loucura, dali extraindo um livro
magnífico, que é Le libere donne di Magliano (1953) -
talvez tenha faltado ao livro de Lucchesi
uma avaliação acerca das relações entre o trabalho de Tobino e o
da brasileira Nise da Silveira. Sciascia
merece destaque por suas parábolas metafísicas. Contemporâneo de
Calvino, sua obra entrava em choque com a
ruinosa presença do neo-realismo nas letras italianas. Calvino
resgatou a sugestibilidade da fábula e da alegoria fantástica,
enquanto Sciascia, mesclando a narrativa à pesquisa histórica,
deu-lhe inconfundível sabor.
Também nos
fala Lucchesi de Pasolini e Giorgio Manganelli, ambos nascidos em 1922. De exaustiva
discussão entre nós o cineasta e o mito Pasolini, perdemos o
prodígio de seus textos para imprensa, reunidos em Scritti
corsari (1975) e o póstumo Lettere luterane,
publicado um ano depois de seu brutal assassinato. Nada sabemos
também da fascinante estranheza de um livro como Poesia in
forma di rosa (1964). Já o surrealista Manganelli, seu
humour noir como que esfola viva a linguagem, cabendo aqui o
que Lucchesi chama de uma “selva de ramificações”, obsessão pela
precisão, que trama uma estratégica labiríntica, onde cada
passagem se multiplica em inúmeras outras.
Tais
passagens como que definem o livro, embora Lucchesi
alcance uma dimensão mais profunda para seu exercício crítico,
sempre um diálogo, jamais um julgamento. Ao escrever sobre
alguns autores pertencentes ao mundo árabe, ressalta a
“pluralidade fascinante” que constitui aquela literatura, posta
em choque com uma cultura do previsível disseminada
violentamente entre nós. Não é à toa que Lucchesi, ao dialogar
com brasileiros, mostra-se atento à obra de Nise da Silveira, Fernando Diniz, César Leal e Foed Castro Chamma. Embora raras as substituições - melhor: equivalências -,
poderíamos pensar em uma outra face da destruição intencional
de um determinado patrimônio cultural: a falta de oportunidade.
Nada se
esgota em si. O abismo sempre invocará o abismo. O centro da
diferença está em toda parte. Não se trata de uma condição
irrevogável, e sim do pleno exercício de uma multiplicidade.
Compreende Lucchesi
que o ser encontra-se acima da ciência do ser. Empenha-se em
abrir portas. Sobre os romances policiais de Sciascia
disse: “todas as pistas apontam novas e mais imbricadas
realidades”. Recordou que em Alfred Döblin
“sua base é a enciclopédia”, alertando, com Artaud,
que a anarquia - e “o esforço para reduzir as coisas,
reconduzindo-as à unidade” - é a grande chave para liquidarmos o
culto ao shopping center instalado em
nosso tempo, quando se reduz o pulso da atividade humana a uma
barra de código. Ou, no dizer de Cioran:
“o derivado substitui em tudo o original, o essencial”.
O
sorriso do caos
não faz senão sugerir algumas pistas para darmos em uma
“pluralidade de causas” que nos vá recompondo, humanidade sem
centro. Apenas a identidade, mas toda a identidade. Sugere,
portanto, aquilo que Spinoza chamava de “pequenos modos da substância
infinita”, espaço-tempo onde se alcança fundamento naquilo que
se nomeia. Em raros momentos na atualidade a crítica literária
no Brasil lê-se tão carregada de sentido em si mesma.
2.
Em seu
livro O sorriso do caos (1997), Marco Lucchesi já se referia a um “radical elogio da
diferença”. Não propriamente como citação de um ou outro artigo
que o compõe, mas sim como identificação sua com o fato de que o
exercício da totalidade não se fundamenta sem a plena aceitação
da diferença, menciono-o pela razão de que este poeta tem-se
mostrado perseguido por essa obsessão primária. E primária
justamente porque fundacional. A defesa de qualquer linguagem só
se legitima na compreensão daquilo que lhe é distinto.
Ao
publicar agora seu primeiro livro de poemas, Marco Lucchesi é recebido, logo nas orelhas do mesmo, por uma
lúcida observação de Ivan Junqueira, a de
que o poeta revela-se não somente através de seus próprios
versos mas também no exercício tradutório e ensaístico, desde
que o faça - acrescento - com absoluta inteireza de princípios.
Pois bem, dedicando-se à leitura do que tem produzido Lucchesi,
tanto nas traduções como nos artigos para imprensa, percebemos
esta sua identificação com uma escritura da diferença que tão
bem fundamenta e rege a poesia através dos tempos. Diferença que
é a celebração de uma inconfundível unidade.
A poesia
não está exatamente no verso, mas sim em tudo aquilo que é
tocado pelo poeta. A poesia de Leopardi ou
de Trakl, lida em brasileiro, foi acrescida dos
inconfundíveis traços estéticos de seu tradutor. É possível ler
ambos sem se sentir traído pela tradução. O texto não busca ser
modificado, embora saiba que não será o mesmo sem a presença
dessa ação modificadora. Também não exige ser copiado em sua
exatidão, porque sabe que ali nada encontraremos. Essa essencial
arbitrariedade contra o ego do tradutor é o que pratica com
digna competência Marco Lucchesi.
A mesma
freqüência de diálogo mantida com a tradução observamos no
tocante à crítica literária. Não impõe uma razão de ser da
crítica em seu objeto de estudo. Antes busca um diálogo, uma
raiz (imperceptível) de identificação. Não altera ou reduz,
corrige ou falseia - em grande parte hábitos vorazes da crítica.
Sabe que toda aventura repousa no diálogo. Assim é que a
variedade temática de seus artigos para imprensa podem muito bem
caracterizar um único e identificável texto em expansão, cuja
assinatura já se percebe logo da leitura de uns poucos.
O poema,
contudo, pode ou não confirmar uma estética (tanto quanto uma
ética) ambientada no ensaio ou na tradução. Neste sentido,
Bizâncio (1997) traz em si uma chave com dois códigos de
abertura. O livro é o espaço de confluência do poeta, do
ensaísta e do tradutor. Divide-se em três partes: o poema
“Bizâncio”, a série intitulada “Sonetos marinistas” e uma
coletânea de poemas traduzidos. Esta última, “Visitações”,
recorda outras aventuras idênticas, a exemplo do capítulo final
de Tarde o temprano, do mexicano José Emilio Pacheco (1939): “Aproximaciones”. No caso de
Lucchesi,
trata-se de textos de poetas russos.
A parte
intermediária do livro parece-me a mais inventiva, ao mesmo
tempo que a mais problemática. Como o próprio autor identifica,
temos ali um copista encantado com os versos de um indeterminado
poeta (possivelmente outro copista). São dez sonetos que sequer
procuram forjar um diálogo. Os dois copistas não parecem se
perceber entre si. O autor de ambas encarnações inventa uma
ponte impossível, ao pretender que um busque (em seu português
arcaico) arremedar o outro (em seu italiano atual). Diálogo
descartado, exceto no desejo do autor. E traz ainda implícito um
ardil: se podemos ler com tranqüilidade em vários idiomas, qual
a função do tradutor?
Por último
o Lucchesi onde se poderia esperar
propriamente sua estréia como poeta. O poema “Bizâncio” percorre
uma esfera diversa daquela apontada por Foed Castro Chamma no prólogo do livro. Não se trata de uma
nostalgia referenciada, e sim de um abismo provocado pelo
rompimento (moto contínuo) entre memória e desejo. Eis a
contradição reinante do poema, seu irresoluto paradoxo: não
importa que Lucchesi tenha estado em Istambul e que ali tenha
sentido saudade da Bizâncio que não viveu, o poema evidencia,
antes de tudo, o jogo de espelhos entre linguagem e realidade.
As três
partes se unem e se desunem. Têm a medida de seu autor, de sua
defesa de uma escritura da diferença, porém carregam consigo
alguns pedregulhos que a impedem de sua plena realização. Seja
como for, não se trata (ainda) de uma estréia de Marco Lucchesi
no poema, embora na poesia já tenha estreado há muito. E
refiro-me a isto porque a entrada na matéria está muito além dos
primeiros acordes, das inaugurais formas dedilhadas. Leio Marco
Lucchesi com clara identificação. E sei que ainda teremos, por
sua pena e crença na diferença, a plenitude de seu verso, com a
mesma intensidade da inconfundível voz de seus ensaios e
traduções. |