Maria Estela Guedes ou a escrita no papel do chão
Nicolau Saião
1.
Por vezes, atrás de nós, há um ruído insistente. Vamos por uma
rua, estamos sentados na gare dum aeroporto, num café pouco
frequentado, acabámos de nos levantar do banco de um jardim ou
frente ao mar numa cidade estrangeira onde nos encontramos
absolutamente sós ou, então, numa taberna de uma pequena
estância balnear que visitamos pela primeira vez.
O ruído pode ser o de uma ferramenta manejada por um operário
desconhecido, um animal enclausurado que forceja por se
escapulir, uma qualquer máquina de que jamais veremos os
contornos, o assobio intermitente de uma sirene de oficina ou de
embarcação. Mais raramente, gritos abafados, que não
identificámos ou que não sabemos de onde vêm. Talvez de simples
transeuntes, talvez de soldados em marcha ou de crianças
entregues aos seus jogos infantis.
Quem se esqueceu, quem pode olvidar a sensação de surpresa, de
estranheza, de arrepio que esse barulho, quebrando a
naturalidade do fragmento de quotidiano, despertou em nós?
Frequentemente, os poemas de certos autores são também assim:
arrastam, suspendem, distorcem por um breve instante o mundo em
que nos fixáramos, no qual excursionávamos ou que nos
preparávamos para ocupar. São inquietantes, nostálgicos,
palpitantes e, se nos sugestionam como a súbita aparição de uma
paisagem desconhecida ou abandonada há muito tempo mas
reconhecível, também criam em nós uma espécie de encantamento
provocado por misteriosos filtros ou poções de secreta
proveniência. Que poderá ter tido origem no universo da
recordação.
E afinal, para maior maravilha, tudo se passa no quotidiano que
temos ou que tivémos. Tudo se revela, existe, projecta e vive a
partir desse dia-a-dia em que as pessoas viajam, deambulam e se
relacionam como se o fizessem num universo penoso ou fecundado
pela alegria. Um universo concreto onde se viveu, onde existem
sombras e luz.
Depois, tudo começa a existir nos livros e em nós enquanto
leitores: de repente os poemas passam a pertencer-nos, tal como
as visões das maiores aventuras que eles transportam ou
assinalam. E, mais e melhor, afinal somos donos dos livros,
essas máquinas de imaginar que a cada instante traçam no espaço
rotas intemporais. Como num sonho (melhor, na realidade) somos
de novo habitantes dum país de outrora, porque também as
palavras que formam os versos, matéria aparentemente volátil,
passaram a ser tão nossas como um coração, um braço, as artérias
ou a mão alucinada com que erguemos os sinais tempestuosos que
existem à nossa volta.
Ou na memória.
2. a.
Olhei para baixo. Até onde o olhar alcançava, voando a 15
quilómetros de altura e em velocidade de cruzeiro, só se
avistava areia – a areia milenar e surpreendente do Sahara.
Deverei dizer surpreendente? Mais deveria dizer excitante,
familiar dos sonhos de adolescente, de encantado leitor de
Salgari e de Kingston que eu fora e nunca deixarei de ser. E
pouco a pouco o avião foi descendo até estabilizar nos 2800
metros. Deferencia habitual, informou-nos uma hospedeira de
bordo, do comandante quando algo de singular acontecia a quem
cruzava num jacto aquela parte do mundo.
Que olhássemos para uma fita escura que se via lá ao fundo, à
direita… E enquanto o avião descia, a pouco e pouco desenhou-se
uma fila que a breve trecho aumentou e se verificou serem
camelos e viandantes duma caravana sulcando o erg em
demanda dum oásis, duma cidadela lá para os lados do Oceano.
Horas antes fora a partida de Bissau, a saída pela costa
africana do hoje Sara Ocidental, a imensidão do mar. Cerca de
três horas depois passava-se sobre as ribas algarvias. E uma
hora depois estava de novo em Lisboa, de cujo aeroporto saíra
cerca de um ano antes para me achar - tonto de sono e
de alguma angustiada surpresa quando saí para a manhã da bolanha
que rodeava o aeródromo de Bissalanca - na cidade de Bissau, na
“província ultramarina da Guiné” como rezava o livrinho “Missão
no Ultramar” que logo nos era entregue, de capa verde ilustrada
com uma foto da cidade com, em primeiro plano, os armazéns da
alfândega do porto do Pidjiguiti que depois tão bem iria
conhecer.
Por vinte e sete meses ao todo.
b.
Como conheceria muitos outros sítios constantes no atlas dos
poemas deste Chão de Papel.
O título, como os conhecedores do lugar-onde terão percebido,
aponta para a pátria-chica do grupo étnico desta região
guineense: a tribo dos papéis, cerca de 40 mil naquela altura. É
um trocadilho, um simbolismo feliz, pois foi nesta pauta que a
A. traçou o seu mapa de viagens da incursão onde também
me revejo: a Praça onde eu ia comprar a fruta que a princípio me
admirava por ser tão diferente (e me permitiu não fazer uma
avitaminose…), a estrada para Catió onde por vezes éramos
abordados mediante uma frase em crioulo (“Qué que bô miste? Bô
miste catota ó bô miste bunda? Fala qué que bô miste!”) e que
não traduzirei por desnecessidade e discreção alentejana.
O som plangente dos choros, o ruído insistente dos
tambores na distancia e, a certas horas da tarde ou da noite, o
ba-oum das rocketadas e da artilharia a quilómetros para
lá da bolanha, que a certa altura da comissão nem nos
inquietavam já. Os passeios à civil pelo fim-de-semana e pelas
noites em que não se estava de serviço, a ida a ver as
montras, namorando as camisas elegantes para depois se poderem
comprar no fim do mês, a cerveja de garrafa de vidro grosso
acompanhando os pratinhos de camarão e de mancarra, no Café em
frente da loja da CUF, sob as grandes árvores, as andanças pelo
bairro das vivendas catrapiscando as aliás inacessíveis
bajudas cujo balançar hierático nos sugestionavam, a nós
monges guerreiros. E as idas ao mato, para cumprir as obrigações
militares…
Os filmes no Cine-Teatro, as taças de sorvete no terraço da
Pastelaria da avenida cujo nome esqueci e que era no enfiamento
do Palácio do governador até aos edifícios da alfândega, os
jagudís que à hora do almoço baixavam dos seus céus de
sobressalto e, às dezenas, esperavam civilizadamente, para
depois se banquetearem, a ração militar de restos despejados nos
bidons de folha onde, nas proximidades, se podiam
ver também, recolectando sua mantença, garotos e garotas dos
cinco, seis, sete, oito anos e mesmo mais, que a fome era muita
e a generosidade dos cozinheiros lhes dava a primeira pratada
depois de aconchegados os estômagos…
O cabo especialista barbeiro, dublé de poeta popular na
boa tradição metropolitana dos vates, que me rapava
artisticamente a trunfa enquanto me dizia quadras e endechas
confeccionadas à maneira escalabitana, o negro anão que era seu
adjunto civil por acção psicológica oficial, a lavadeira
Domingas de sua graça que me lavava e passava a roupa e ma ia
entregar sempre com um miúdo na alcofa das costas, o sargento
parecido com um chefe-de-repartição de Finanças a quem eu
emprestava livros do Simenon e do Camus comprados na
Livraria-Papelaria da rua de cima, paralela à marginal e perto
do quartel-fortaleza da Polícia militar, o da Amura de seu nome.
O vasto terreiro castanho-avermelhado da parada rodeada de
casernas antes do arame-farpado da “zona de morte”, nesse
quartel-general tão bem evocado por José Martins Garcia no seu
magnífico “Tempo de Massacre” (JMC que eu lá conheci apenas como
o “alferes maluco”, meu companheiro de jogos de xadrez
intemeratos, democráticos e progressistas – costumava
emprestar-me o “República” que lhe chegava da metrópole – e
depois, já na peluda um par de anos decorridos, em Lisboa na
sala do restaurante “Os anarquistas” da Rua da Misericórdia,
aonde eu iria ser o convidado (por carta Lisboa-Portalegre) para
almoçar com Álvaro Guerra e um amigo - e conferi
surpreendidíssimo (e ele também) que era afinal o autor dos
textos inefáveis, pelo humor corrosivo, que faziam as delícias
de boa parte do Portugal oposicionista que lia o Suplemento
Literário onde igualmente me desemburrava literariamente!
Que a Guiné tinha destas coisas, frequentemente nos
perdíamos-encontrávamos nos meandros rumorosos desse lugar de
contendas.
c.
Também eu não sei, como a A. não sabe, se a fonte de Vaz
Teixeira existe ainda. Provavelmente não, como tantas outras
coisas que os anos de independência fizeram desaparecer. “A
África começa mal”, constatava o famosíssimo título do livro de
René Dumont. E ao darmo-nos conta de tal facto, que é/foi
indubitavelmente real, não podemos deixar de sentir – nós que a
amámos por razões carnais, diria, de corpo que se fez espírito
durante e depois de uma permanencia que nos pareceu alongada
pelas vivencias ali tidas – uma funda perturbação.
Não me referirei mais a estes sucessos de internacional
política quotidiana, que aliás corroboram tão simplesmente uma
evidencia. “Hoje (as sanguessugas) são mais pequenas/E até a
alma te sorvem”, como escreve MEG num registo mais simbólico e
noutra direcção metafísica. Que estes poemas, sóbrios e belos
/um belo diário de bordo da memória/ fluido como um relato
amoroso, como disse de maneira absolutamente adequada Floriano
Martins, se tocam intensamente o que fica para além dos olhos -
de uma forma discreta, desenfastiada, aparentemente casual – é
no espaço desse olhar que cobram a sua ressonancia mais
poderosa. A isto chamaria eu pudor. Ante o sagrado das
memórias, a saudade que em certas alturas quase nos sufoca tem
de velar-se sob uma cortina de coisas simples e chãs, para que
não as fira uma excessiva exposição de sentimentos. O grande
hausto de melancolia, de reencontro, de profunda ternura por um
tempo e uma terra, está nesse intervalo apenas sugerido, nesse
discreto rumor de dentro que as palavras deixam adivinhar a quem
lê com a cumplicidade necessária.
Os poemas efectuam um périplo singular, apontam para os lugares
e os nomes familiares e mesmo domésticos, reconhecíveis em todas
as horas e acontecimentos. Marcam uma rota, definem uma emoção e
uma realidade. São como marcas num mapa cuja geografia se
prolonga em todas as direcções, neste chão de papel que é livro
e sugestão de um país que se fará permanecer mesmo que dele tudo
se vá modificando.
Como alguém disse um dia, é num livro que tudo afinal acaba.
Para que a terra não esqueça.
3.
Nestes poemas de MEG sente-se pairar a sombra de Rembrandt e da
sua mensagem lucidamente anti-lírica - se entendermos como
lirismo essa escrita impressionista (um pouco desfasada da
realidade mais legítima e soberana) que por ai vai dando
cobertura a um romantismo de pacotilha, ultra sentimental e, por
isso mesmo, refalso e, no fundo, claramente pedante.
MEG revisita Rembrandt, o pintor que nos deu um realismo
avant la lettre excursionando pela sua própria rota
interior, essa que contém os sinais de um país transterreno.
O Rembrandt das noites semiveladas e das carnes escorchadas, mas
também o criador fascinado e fascinante dos interiores repletos
de real encanto, está aqui, como se nos antolha que também ali
esteja o perfil sóbrio de Milton com todos os seus horizontes
perdidos e reencontrados.
Ali, aqui, nesta terra martirizada da Guiné, mas também na terra
encantada de uma menina de 12 anos que através da sua
sensibilidade e da sua inteligencia soube forjar as tintas com
que fotografaria a seu tempo uma grande e bela comoção posta em
poemas que nos levam de viagem pelo seu paraíso disperso pelos
anos que se evolaram.
Está ali a escrita, a paixão e o conhecimento da escrita, que é
signo maior lavrado nas paredes de um amor pelos ritmos da
memória, deliberadamente posto em equação. E está aqui também a
interrogação do ser humano, da mulher que (se) recorda, que
escreve, que do baú deslumbrante e deslumbrado do seu espírito e
da sua nostalgia soube retirar os mais belos sinais de uma
infância e adolescência para depois e para todo o sempre.
Idade de mulher… Por isso também Prometeu aqui comparece - esse
Prometeu que os grandes pintores, os grandes poetas, podem
encenar nos seus quadros/poemas diurnos ou sob a lua dos tempos
que vão transcorrendo - pois que o fogo do entendimento ela o
acalenta a cada pincelada (verso), a cada retrocesso e
reincursão, a cada nova inflexão, a cada lugar revisitado.
Neste livro/poema, cujas jornadas incessantemente se questionam
tanto quanto se afirmam - pois que é esse o movimento perene da
poesia, ir e vir como se fossem as ondas de um mar na noite ou
na claridade - a penumbra ilumina-se a dado passo para ganhar um
sentido além da devastação e da amargura. Trata-se duma legítima
e nostálgica evocação mas igualmente, ou principalmente, duma
transfiguração.
Conhecedora das mansões em que se radica a Arte Real, a autora
deixa que a sua poesia se perpasse duma transmutação forjada
pela forma e pela qualidade da escrita praticada.
Espiritualização da matéria e materialização do espírito, para
tudo dizer.
Rembrandt, Milton, Prometeu: o mistério das coisas e dos seres,
a sua representação virtual e a chegada ao conhecimento. Ou pelo
menos à busca intemerata do conhecimento (da sabedoria?) e de
tudo o que ele nos pode ofertar - como claramente acontece neste
Poema de carne e de sangue espiritual, livro seminal, secreto e
luminoso duma mulher/menina poetisa e maga em terras africanas
de outrora e deste tempo quotidiano, que é, para nosso prazer e
nossa honra de leitores, Maria Estela Guedes. |