Nicolas
Behr e as seletas laranjas da poesia de 70
Aíla
Sampaio
Se eu
tivesse que dizer como gostaria de ler ou escrever um poema nos
dias de hoje, não hesitaria: Não adianta colocar o poema num
carro alegórico. Todos vão ver o carro alegórico. Eu gosto do
estilo claro, limpo, direto. Sem rodeios, às vezes até sem
poesia.
Poesia
é pra ler com os dentes e mastigar bem. Com os dentes de Dante,
aquilo que era poeta. Nós somos apenas bardos. Ai é só engolir,
ou deglutir. Ou ruminar. E transitar sossegado entre o gado
manso, evitando prêmios e famas. E administrar esse latifúndio
literário onde os críticos berram e os leitores pastam.
Nicolas
Behr
Introdução
A poesia
produzida nos anos 70 é sintética, irreverente, crítica, e
revela a inquietação de uma juventude que vivia à margem do
sistema editorial do país. Em plena ditadura militar, os poetas
vendiam seus poemas impressos em mimeógrafo, livretos
artesanais, de bar em bar. A produção literária desse período
recebeu várias denominações, entre elas: “poesia jovem dos anos
70”, “poesia marginal” e “poesia mimeógrafo”. Nicolas Behr,
remanescente desse grupo (que nunca foi propriamente um grupo)
mantém vivo o espírito dessa poética cáustica que constitui o
motivo deste ensaio.
O que é
‘poesia marginal’?
Poesia marginal designa a produção poética caracterizada pela
experimentação estética, além do abandono, por parte dos poetas,
dos meios tradicionais de circulação das obras (editoras,
livros, livrarias). A poesia foi levada às praças, às ruas, aos
bares e às universidades. Os poemas circulavam em cópias
mimeografadas, eram pendurados em "varais", jogados do alto de
edifícios, distribuídos de mão em mão. Marcada pelo trabalho
artesanal, praticada poetas que queriam se expressar livremente
em época de ditadura, essa poética revela o espírito criativo de
jovens que buscavam caminhos alternativos para divulgar sua
poesia, mesclando, inadvertidamente, técnicas do concretismo e
do poema-processo, experiências de vanguardas anteriores, já que
defendiam o ‘fim’ do verso convencional e importavam-se com a
espacialização e os efeitos visuais.
Recebe influências claras do Modernismo de 1922, do
Tropicalismo, e de movimentos de
contracultura como o
rock, o movimento hippie, histórias em quadrinhos e o cinema,
sobretudo o cinema novo. Os textos são sempre pautados no senso
de humor, na linguagem coloquial, espontânea, e nas temáticas
cotidianas e urbanas.
Nicolas
e a poesia marginal
A geração
que fez a poesia dos anos 70, nos rastos do Tropicalismo, lutava
pelo seu espaço e criticava o momento político do Brasil – a
Ditadura Militar – que impunha censura à mídia e às artes.
Contemporâneo de Chacal, Ana Cristina César, Chico Alvin,
Cacaso, Ulisses Tavares e Waly Salomão, Nicolas Behr é, hoje, o
representante mais atento dessa turma de poetas que, em diversas
partes do Brasil, vivia a mesma realidade de 'exclusão
editorial'. Em entrevista à Revista Há Vagas, nos anos 80,
Alvin, fazendo um balanço sobre a produção literária da época,
diz que “as experiências eram individuais, mas havia um
comportamento comum em torno de uma série de problemas vitais”.
Acrescenta que é uma poesia bastante realista e que “havia uma
total indisponibilidade aos manifestos. Éramos contra as
teorias... o movimento nunca chegou a ser organizado, havia,
isso sim, uma conspiração de grupos”.
De fato, o
jocoso manifesto que surgiu, escrito por Chacal, foi em tom de
total irreverência. Ele traduz bem o espírito anárquico que os
movia. Além de definir explicitamente o que é ser um poeta
marginal – “não correr atrás de padrinhos literários”, “não
sentar em fúnebres academias para milhar o biscoitinho” -,
institui 11 artigos nos quais constam os direitos deles, entre
os quais, a “aposentadoria por tempo indeterminado de serviço” e
“abatimento no preço do papel”. Na verdade, o texto desfere
ironias às editoras, às academias e à poesia institucionalizada,
aos aparatos estéticos. Assim, como uma espécie de ‘sindicato’
para agregar os poetas fora do sistema, ele declara criada a
POBRÁS, órgão que lutaria pelos direitos reivindicados. É nesse
mesmo tom sarcástico que Behr se apropria da sigla para
intitular dois poemas seus igualmente corrosivos:
POBRÁS
-
poesia brasileira –
orgulhosamente apresenta
um
produto que vai pro lixo:
os
poetas
(Laranja
seleta p.139)
-
poesia brasileira –
orgulhosamente apresenta
um
livrinho que veio do lixo:
este
(Laranja
seleta p. 152)
A figura
do poeta, como a do livro, é vista por eles como descartável.
Nicolas Behr faz esse deboche, mas ‘não larga o osso’, continua
criando e distribuindo poesia a mancheias. Ele surgiu na poesia
brasileira, em fins dos anos 70, junto aos poetas rotulados de
‘marginais’ por estarem, como dissemos, sem editora para
publicar seus livros. Como todos dessa geração de 70, ele
imprimia seus poemas em mimeógrafos e os vendia nos bares, nas
portas de teatro, em praças públicas ou onde houvesse público
para essa produção ‘fora do sistema’. Sua primeira obra apareceu
em 1977, quando ele lançou, no Planalto, um livrinho
mimeografado intitulado “Iogurte com farinha”. Seguiram-se:
“Restos Mortais”, de 1980, que reúne os livros Iogurte com
farinha, Grande circular, Caroço de goiaba, Chá com porrada e
Bagaço, lançados entre 1977 e 1979; “Vinde a mim as
palavrinhas”, de 2005, reúne os livros “Com a boca na botija”,
“Perto do dia”, “Elevador de serviço”, “Põe sai nisso!”, “Entre
quadras”, “Brasiléia desvairada”, “Saída de emergência”, “Kruh”,
“303F415”, “L2 noves fora W3”, lançados entre 1979 e 1980. A
criação dos anos noventa aparece em “Porque construí Braxília”,
“Beijo de hiena”, “Pelas lanchonetes dos casais felizes”,
“Segredo secreto”, “Viver deveria bastar”; vieram depois: “Em
Primeira Pessoa”, 2005, “Umbigo”, “Menino diamantino”,
“Peregrino do estranho”, “Braxília revisitada”, “ Introdução à
dendrolatria” e “Laranja Seleta”, o primeiro por uma editora
convencional (a Língua Geral) e, recentemente, “Beije-me”, em
produção independente.
A despeito
de tudo o que se fala dos jovens poetas de 70, a poesia por eles
produzida não foi esvaziada ideologicamente. Embora
não se
enquadrassem no engajamento político-partidário da poesia
produzida nos moldes prescritos pelo Centro de Cultura Popular,
da União Nacional dos Estudantes (UNE), durante a década de 60,
os textos
aproximavam-se da banalidade cotidiana e tornaram-se um
instrumento de luta, de reação aos tantos impedimentos e aos
‘quadros de infelicidade’ que cerceavam a vitalidade dos poetas,
como afirmou Alvin. Saiu, pela espontaneidade da palavra
poética, o grito rebelde de uma juventude podada pela repressão
militar, que queria “destoar do coro dos contentes”, como
anunciava Torquato; além de fazerem apologia à liberdade de ser
e fazer, lançaram críticas ao momento político, eivadas de um
sarcasmo às vezes dilacerante:
e eis
que
da mão
decepada
brotaram dedos
(Laranja
seleta p.106 )
quem
teve a mão decepada
levante
o dedo
(Laranja
seleta p.130)
A alusão à
tortura é nítida, como nítido parece o poder de resistência dos
jovens submetidos involuntariamente à situação. Era a vida o que
os interessava. Nicolas Behr, na transversal de todas as
questões do seu tempo, ergue ainda uma bandeira ecológica, ao
colocar a natureza como um dos motivos constantes de sua
criação, não raro por meio de jogos ambíguos, mas sempre
bem-humorados. A referência clara aos desmatamentos de Brasília
pode, na verdade, subtender bem mais que a desertificação da
cidade; é a solidão imposta pelo lugar ermo de calor humano:
corte
essa árvore!
ela
atrapalha a vista
que
tenho do deserto
(Laranja
seleta p.117)
Independente de críticas, a relação com a natureza é
metaforicamente seu eixo como homem que se desloca numa cidade
cujo concreto não pode suplantar o afeto. Não é à toa que a
fauna e a flora são elementos recorrentes em seus versos:
Flamboyant, pé de manga rosa, borboletas, cupim, flor do pequi,
fícus, o que parece um registro de sua mundividência
ecológica. A simbiose homem-árvore denota explicitamente o poder
do verde em sua vida, como se lê em: dento de mim / vive uma
árvore // árvore interior / que me põe de pé // árvore que é
quase corpo / quase troco / quase casca // quase nada
(Laranja seleta p.106). A árvore é a metáfora do homem que ele
é. Ou seria o contrário?
O homem
e a cidade
Nascido em
Cuiabá em 1958, Nicolas Behr mora em Brasília desde 1974 e lá
fez sua trilha pessoal e profissional. Mantendo o estilo
sintético, ele ultrapassou o estigma da poesia datada e imprimiu
atemporalidade à sua poética, cujas temáticas são,
essencialmente, o homem e a cidade. O homem aparece na
recuperação do menino que, a Drummond, pinta sua infância: “a
mãe campeia dores / que o pai junta no curral / e o menino,
bezerro enjeitado, / espera a noite branca / se derramar no
úbere do céu / pra mamar a via láctea” (Laranja seleta p.29)
Há, no
homem, um menino que resiste à maturidade e que é reconstituído
permanentemente. Ele se desdobra no tempo transcorrido, incapaz
de ser recriado pela palavra (p.34), mas, ainda assim, se revela
em sua multiplicidade inexorável: “velha
infância que carrego // bato no peito e pergunto:/ tem alguém
aí? // quantos meninos correm dentro de mim?”(Laranja
seleta p.28)
“O anzol
da memória”(p.29) é permanente, bem como o perene “garimpar de
lembranças”(p.27), seja para descrever a falta de concentração
do menino na missa (A missa, p. 30-31), a rebeldia na escola
(Ficou bonito o meu desenho, professora? p.32) ou fatos
cotidianos que mostram o menino no homem, no jovem que
vislumbrava o futuro cheio de planos: “ano que vem eu me caso
/ ano que vem eu compro um fusca / ano que vem eu termino a
faculdade / ano que vem eu vou mudar de vida / e morar no andar
de cima” (Laranja seleta, p.119)
A cidade é
evocada constantemente, numa relação que demonstra seu
deslocamento espacial e existencial entre quadras e blocos,
afeto e concreto, numa relação ambígua que ora critica, ora
celebra, mas sempre a evoca, tenta entender e definir seu
significado: “brasília é a incapacidade / do contato afetivo
/ entre a laje e o concreto”. Brasília é seu lugar no mundo,
lugar de desencontros e desajustes, lugar de eixos que se
cruzam / pessoas que não se encontram (p.89). A ela, ele
declara:
brasília, faltam exatos 3232 dias
para o
nosso acerto de contas
me
deves um poema
te devo
um olhar terno
...
não te
reconheço
não me
reconheces
(Brasília
enigmática in: Laranja seleta, p.80)
O
descompasso recíproco entre o poeta e a cidade, e a inevitável
convivência entre ambos, levam-no a criar, qual Manuel Bandeira,
sua ‘Passárgada’. Assim ele explica em “Porque construí
Braxília”: “Braxília não, Braxília é sonho. A cidade que cada
um de nós pode inventar e construir, sem tijolos e sem dor. A
utopia dentro da utopia, como se isso fosse possível. A outra
Brasília, a sua, a nossa, a velha, a real, já foi sonho sim. Já
foi. Hoje esta cidade são linhas retas que substituímos por
linhas sinuosas, barrocas. A imposição da régua substituída pela
disposição do traço livre e solto”. De acordo com a análise
de Diego Pretarca, “Além de toda a simbologia que a cidade
representa, Nicolas alegoriza do seu modo (na expressão
Braxília, por exemplo) em sua maneira de se relacionar com a
cidade pela ótica atual, desde a promessa de felicidade e a
realidade que hoje Brasília apresenta”. Com efeito, essa visão
arquitetônica do lugar ideal está na desconstrução do espaço
real e na liberdade de fazer a utopia possível: chega de linha
reta! Ele mesmo (Nicolas) declara: “Construí Braxília porque
Pasárgada fica longe demais. Braxilia é uma cidade não-capital,
não-poder, não-Brasília. A utopia dentro da utopia”. Tão
presente está a cidade na construção do seu pensamento, que até
a musa é cantada nos moldes e traços do Planalto, como se lê em
“Vozes do cerrado”
(p.70):
naquela noite
suzana
estava
mais
w3
do que
nunca
toda
eixosa
cheia
de l2
suzana,
vai
ser superquadra
assim
lá na minha cama.
Os
seletos diálogos
“Laranja
Seleta”
(2007), a coletânea de que venho falando até agora, marca os 30
anos de criação de Nicolas Behr, fazendo uma síntese da sua
criação poética. Chico Alvim, na orelha do livro, diz que “Há
muitas entradas e saídas na poesia de Nicolas Behr. Como se
trata de uma poesia em que a noção de movimento, de lugar de
onde parte o autor em direção ao mundo, e de seu próprio
caminhar é fundamental, essa ideia de situações em movimento,
que se fecham e se abrem para o poeta, está muito presente”. De
fato, a noção de movimento espacial e temporal é nítida e parece
traduzir a inquietude de um indivíduo em permanente transição.
A obra é
representativa da trajetória do poeta que, embora mantendo o
estilo aparentemente simples e prosaico da geração mimeógrafo,
não tem soluções formais estagnadas, dispensa o anacronismo.
Além de evocar a cidade e o homem, seus textos refletem, muitas
vezes, o processo criador e dialogam constantemente com textos
modernistas, reafirmando o legado da poesia deles aos poetas de
70. A
linguagem coloquial e os temas banais, a poesia breve, nenhuma
dessas características tornam-nos originais. O que singulariza
essa poética é exatamente a atitude de "desengravatar" a poesia
e levá-la às ruas, às praças, às praias, aos bares, às
universidades. No ambiente ambíguo
de
contracultura que se impunha nos grandes centros urbanos, a
poesia marginal surge com a intenção de contestar, fosse pelo
““desbunde”, pelo palavrão, pela apologia do lado sórdido da
vida ... Daí ser chamada também de “lixeratura”, a literatura do
lixo, da sujeira”, como afirmou Nely Novaes. A juventude da
época, tendo as mesmas aspirações, os mesmos anseios e
frustrações,
identificou-se com a forma simples e ao mesmo tempo arrojada
como enfrentavam os padrões estabelecidos.
Nicolas
viveu intensamente essa realidade e sempre adotou um
comportamento ousado tanto em relação à vida quanto aos textos
que produzia, todos eivados por posturas
iconoclastas e demolidoras. Criativo e seguro do seu estilo,
manteve-se fiel à poética sem compromisso com discursos
elaborados e estéticas convencionais.
Poucos dos
seus poemas trazem títulos e nenhum utiliza a letra inicial
maiúscula quando ‘exigida’ pela gramática, o que reitera a
postura de vanguarda de não estabelecer hierarquia entre as
palavras.
Os
intertextos
A
intertextualidade é, também, um recurso recorrente na produção
poética dos poetas de 70, sobretudo a paráfrase e paródia,
diálogos que, respectivamente, retomam e subvertem o sentido do
texto base. Behr faz, constantemente, releituras de poemas
emblemáticos da nossa literatura, como ocorre na clara alusão ao
anjo gauche, do “Poema de sete faces”, de Drummond, que
se transveste em árvore:
quando
eu nasci uma árvore torta
dessas
que vive no cerrado
chegou
pra mim
e não
disse nada
não
havia nada a dizer
não
havia nada a salvar
(Laranja
seleta p.118)
Já em
“Drummond brasiliensis” (p.96), é o poema “José” (de Drummond),
o texto base da criação de Behr. O eu-poético usa sua voz, com
toques irônicos, para clamar por saídas, mas todas se revelam
improváveis:
“Brasília, e agora?
Com o
avião na pista quer levantar vôo
Não
existe vôo
Quer se
afogar no Paranoá mas o lago secou
Quer
falar com o presidente mas este viajou...”.
“Política
literária” (p.59) pede licença, também a Drummond (com licença,
Carlos), para parodiar o poema homônimo:
“O
poeta municipal
discute com o poeta estadual
qual
deles é capaz de bater o poeta federal.
Enquanto isso o poeta federal
tira
ouro do nariz”.
O poeta de Behr, entretanto, “tira lama do sapato” em vez de
ouro, o que demonstra certo sarcasmo em relação ao poeta
tradicional e à irreverência do poeta descompromissado com
tendências tradicionais.
Em “O
horror, o horror” (Laranja seleta p. 162 ), o poema-notícia tem
o mesmo prosaísmo do “Poema retirado de jornal”, de Manuel
Bandeira, numa recriação da linguagem jornalística que aproxima
o leitor do texto poético tanto pela ausência de formalidade no
uso da língua quanto pela simplicidade temática:
“como,
depois de ler nos jornais a notícia
da
morte do menino que foi torturado
com
óleo quente para revelar o paradeiro
do pai,
escrever um poema?
como se
olhar no espelho?
como
dividir com vocês todos
esse ar
que respiramos?
como
ficar indiferente e passar à próxima página?
como
sair na rua e desejar bom-dia
aos que
passam?
como
continuar vivendo?
E as
releituras se desdobram em recriações não apenas de textos de
poetas modernistas. Em “Vozes do cerrado”, o diálogo se dá com
“Vozes d’África”, de Castro Alves. A evocação da cidade, o
clamor para que ela se revele, é feito nos moldes em que o poeta
romântico evocou Deus para mostrar a atrocidade do tráfico de
escravos nos navios negreiros: “brasília! brasília! / onde
estás / que não respondes? / em que bloco / em que superquadra /
tu te escondes?”. (Laranja seleta p.70)
Caetano
Veloso, ícone do movimento Tropicália, esteio dos poetas da
geração mimeógrafo, tem seu discurso incorporado na paráfrase da
canção “Sampa”. Enquanto o baiano canta sua emoção ao “cruzar a
Ipiranga e a avenida São João”, Behr, mais uma vez, revela sua
relação ambígua com Brasília: ao mesmo tempo em que a considera
um deserto, confessa-se emocionado ao atravessar suas quadras: “alguma
coisa acontece / no meu coração / que só quando cruzo / a w3 l2
sul / ou eixão”. (Laranja seleta p.71)
Em “Capim
Navalha” (p.121), a confissão do eu-lírico sobre sua própria
existência é feita por meio de um quádruplo diálogo. Primeiro,
com o “Poema em linha reta”, de Álvaro de Campos, heterônimo de
Fernando Pessoa. Comparemos os versos:
“E eu,
tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil,
Eu
tantas vezes irrespondivelmente parasita,
Indesculpavelmente sujo,
Eu, que
tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho,
Eu, que
tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo...”
(Álvaro
de Campos)
“eu,
irrecuperavelmente eu
desgraçadamente eu
irrecuperavelmente eu”
(1ª
estrofe do poema de Behr in Laranja Seleta)
Depois, o
diálogo ocorre com “O guardador de rebanhos”, de Alberto Caeiro
(outro heterônimo de Fernando Pessoa), com o “Poema de sete
faces”, de Drummond, também parodiado por Adélia Prado em “Com
licença poética”. Leiamos um fragmento dos três e mais a 2ª
estrofe do poema de Behr:
“Eu
nunca guardei rebanhos,
Mas é
como se os guardasse.
Minha
alma é como um pastor,
Conhece
o vento e o sol
E anda
pela mão das Estações
A
seguir e a olhar”.
(Alberto
Caeiro)
“Quando nasci, um anjo torto
desses que vivem na sombra
disse: Vai, Carlos! ser gauche na vida”.
(Drummond)
“Quando
nasci um anjo esbelto,
desses
que tocam trombeta, anunciou:
vai
carregar bandeira.
Cargo
muito pesado pra mulher,
esta
espécie ainda envergonhada”.
(Adélia
Prado)
“eu, o
guardador de rebanhos alheios
eu, que
não consegui escrever
o poema
em linha reta
eu, o
anjo torto dos outros
eu, a
sua adélia prado”
(Nicolas
Behr)
Nessa
miscelânea de textos que se intercalam na poesia de Behr,
nota-se a capacidade da assimilação de suas leituras de poetas
tradicionais, distintos de vanguardas, e a influência que
exerceram e exercem em sua poética. Todos os textos
parafraseados servem-lhe de base para discutir seu próprio
processo criador desprovido de pretensões de originalidade ou da
prepotência de ter (ou querer ter) escrito uma obra prima.
Finalmente, um beijo em Brasília
O livro
“Beije-me”, lançado recentemente, reafirma a relação do poeta
com a cidade de concreto, que foi cenário não apenas de uma
ditadura que podou a criação artística, como já afirmamos, mas
de uma juventude que resistiu aos desencantos da censura e do
concreto armado, criou alternativas para se manter viva e,
metaforicamente, ‘arborizou’ Brasília, para que nela se pudesse
respirar.
“Beije-me” é um álbum estilizado, impresso em papel couché, com
fotos da capital federal ainda nascente. Nicolas cola sua
história à da cidade que o viu ‘adolescer’ e transformar-se num
adulto. Como ele mesmo diz, “são instantâneos de uma geração
brasiliense que ousou descer dos blocos e assumir Brasília na
passagem dos anos 70 para os 80. Flashes de uma moçada alegre,
rebelde, criativa e roqueira”.
Esse
filtro, que só o tempo concede, faz com que vejamos, através das
fotos por ele selecionadas, uma forte resistência à solidão da
cidade, literalmente construída, arquitetada para ser o centro
do poder; jovens andam em busca do espaço para ser e fazer
poesia, sob a trilha sonora de um Caetano que bradava
“Caminhando contra o vento, sem lenço sem documento... eu vou”.
Diferente, porém, quando retomamos as palavras de Jean-Paul
Sartre, incluídas por Caetano na letra, eles sempre levavam algo
no bolso ou nas mãos: fosse um spray para grafitar muros,
canetas para escrever em guardanapos, álcool e tinta para o
mimeógrafo.
Parte do
acervo iconográfico de Behr são fotografias de muros e paredes
grafitados com frases que revelam bem o espírito da moçada:
“Viva a arte em 80”, “Leia poesia”, “A poesia passou por aqui”,
“ouvira a vaia do vento”, “Sei tua sede, parede”, “As paredes
tem boca”, Vamu nessa Vanessa”, “Cadê você?”. Eros, personagem
ativo nessas inscrições, a revelar a liberação sexual, talvez,
faz questão de deixar sua marca nos muros, em cima de pichações
já feitas: “Eros esteve aqui”. Muitas revelam protestos: “Brasil
canalha”, “Terrorista é a ditadura, que mata e censura”,
“Figueiredo é...”. “Aos militares: a forca/Aos perdedores: o
medo/ Aos vencedores: o nada”. Outras mostram a busca por um
horizonte mais ameno: “esperança, cadê você?”, “Esperamos por
uma aurora”. O poema “Te amo 24 horas por segundo”, de autoria
do Nicolas, aparece inteiro escrito num muro. No final da obra,
há textos sobre a grafitagem, opiniões distintas sobre as
inscrições nos muros que, nesse período, não constituiu um
protesto vazio.
A esse
recorte de memória, somam-se imagens de cartazes, panfletos,
livros, disco de vinil e fitas cassetes, máquina datilografia,
mimeógrafo, papel ofício... registros de uma vida devotada à
arte da escrita, mesmo quando o que restava, diante da censura,
era escrever o “que desse na telha”: Há foto de telha com
inscrições poéticas, forma que Behr encontrou para reproduzir
seu pensamento, na falta de permissão que eles chegassem ao
papel.
Anos de
chumbo, anos loucos, louca juventude, poesia irreverente. O que
permitiria mais a época? Ironia, despretensão, imediatismo,
despojamento, desejo de síntese. A linguagem coloquial e eivada
de pessoalidade possibilita o diálogo direto entre poeta e
leitor. Nicolas sobreviveu e conta a história. |