Nicolau
Saião: as disposições de um espírito
Floriano Martins
[…]
mais
importantes
[…]
do que
para o espírito o encontro de certas disposições
de
coisas,
[são]
as disposições de um espírito perante certas coisas.
André
Breton [1]
Nicolau
Saião (1946) integra o 2º movimento surrealista português, cuja
atuação se situa nos anos 60 e configura um momento outro dentro
de um painel de filiações e assimilações do movimento francês
nas décadas anteriores. Trata-se de momento em que, no dizer de
António Luís Moita, já se encontrava “digerida e superada […] a
bela utopia da escrita automática a que, duas décadas antes,
outros poetas haviam metido mãos inovadoras”. [2] Pertence à
mesma geração de Luiza Neto Jorge – muito embora comece a
publicar somente em meados da década seguinte –, que eram vozes
de certa forma isoladas, em Portugal, no que diz respeito a uma
aproximação declarada do Surrealismo. Ele mesmo me diria: “Tens
toda a razão! Praticamente isolada – só me lembro, nesta praça,
do Carlos Martins e da Ana dos Santos e da adesão do Palácios da
Silva, mas eram artistas plásticos.” E em seguida acrescenta,
com mais firmeza:
Isolado
– e marginalizado, esta é a verdade nua e crua! Uns porque o
surrealismo lhes deixara más recordações (desmascarava-lhes a
prosódia); outros porque, até com certa honestidade, não
percebiam como era e queriam à viva força que o surrealismo
tivesse ficado parado no espaço e no tempo (e como o Dali estava
requentado, não queriam comer dessa loja – sem verem que o
surrealismo não é questão de escola ou jeito, mas sim uma
questão vivencial e que vai evoluindo e se modificando). Não me
convidavam para participar em nada, eu não existia… Lembro-me
que houve várias antologias, pretensamente bem-feitas e sérias,
que nem sequer citavam o meu nome (já não digo arrolarem-me…);
sucederam até coisas engraçadas: um bom poeta, que por essa
altura me leu (calhou!) escreveu-me e disse: “Afinal, gostei
muito! Pensava que… você era um epígono do…”. Eheh! Por isso só
consegui publicar os meus poemas porque recebi (foram os filhos
que mandaram sem eu saber para a APE…) o Prémio Revelação. [3]
Devo dizer, por pura verdade, que o José do Carmo Francisco,
antes de eu ser poeta em livro, tudo fez (em revistas e jornais
onde colaborava) por me tirar da “maldição” em que me queriam e
eu não queria (poeta maldito, safa!). Eu admirava-me por me
repudiarem assim, por que será que me afastam? – pensava eu,
ingenuamente, na época.
Depois
havia os dum certo sector – o partidão! – que tentavam fazer o
deserto à volta pelo que se calcula (surrealista era para eles
adepto do Trotsky…). Também havia os aderentes à igreja, que
pensavam que íamos escaqueirar o Vaticano… Ou seja, eu estava,
enquanto poeta, praticamente só, aqui. E então se deu o
seguinte: não entrei naquela geração, na altura; depois, agora,
não entro nesta (por causa da idade). Sou uma espécie de “terra
de ninguém” uma não-ilha. Eheh (riso, mas algo dolorido). Nos
anos 60, a ortodoxia surrealista abre passo para uma leitura
mais sensível e valiosa da obra de autores como Herberto Helder
e Antonio Ramos Rosa. Saião esboça sua particularidade a partir
do interesse pelo mistério e o humor negro, duas fontes de
intranqüilidade ou de subversão da realidade. De tais anotações
–
Mistério,
Imaginação, Fantástico & Aventura - uma lista para este tempo
(1974) e
Os labirintos do real - sobre a Literatura Policial
(1980) são
os primeiros livros publicados – surge uma poética inquietante,
que mais se aproxima do Surrealismo quanto menos afetada se
mostra por sua ortodoxia. Sua relação com uma prática coletiva
em torno do movimento leva-o a assinar manifestos, montar
exposições, criar um Bureau Surrealista Alentejano, na região
portuguesa para onde se mudou, porém aos poucos vai se
configurando uma aposta no individual, e é justamente a partir
daí que sua poesia melhor se define.
O olho
posto sobre a obra de Nicolau Saião, o convívio com ela, ir
tomando seu pulso a cada desdobramento de imagens, sondando como
as presenças evocadas saltam do plano poético para a plástica,
como ele rabisca imagens que depois transitam com exímia
vertigem de um ponto a outro, esta intimidade de figuras que
saem e entram a todo instante em salas aparentemente distintas,
exuberância serena com que o poeta se mostra e ao mesmo tempo
oculta partes de si, dá-nos uma prazerosa sensação de entrar no
espelho como se tratasse de um mergulho na memória. Este é o
poema
central de
sua obra: trazer de volta da transfixão da linguagem o que cada
um de nós considera único em sua experiência. Defende a idéia de
que o simulacro está ligado aos vestígios fechados, não
revelados, da existência. Isto nos leva ao palco, ao tablado
agônico das simulações, aos enredos míticos e místicos que se
esmeram em conferir realidade à fábula. Lugar sagrado onde o
poema, a criação artística como um todo, busca algo mais
substancioso do que simplesmente derrotar o intelecto. Mete-se
com o “finíssimo vazio”, onde vai explorar suas possibilidades
de ser. Absorve todos os engates e desgastes.
Não há
como fugir da criação. Ela revela de tal maneira seu criador,
que logo o desmascaramos em suas declarações à imprensa. Nicolau
Saião salta de um quadro para outro da existência, suas
observações, devaneios, recordações, fixações, tudo entra na
pauta do poema que não se desvincula dos ganhos de linguagem,
mas que essencialmente busca dar corpo instável ao objeto de que
trata – ou pelo qual se deixa tratar. A vida se excede em seus
mecanismos de indagação. A lentidão está sempre da alçada do
pressentimento e da projeção. Os inúmeros retratos que
encontramos na obra poética de Nicolau Saião indicam sua
reflexão aguçada acerca de modelos e sua atualidade. Jamais
evoca um personagem do passado apenas movido por um
sentimentalismo glorificante. Sua memória é a do desconforto, do
choque entre passado e presente. É sarcástico, não desvia o
terreno do humor negro nem busca dissimular a
vítima
de seus
retratos. Uma tática visceral de sua poética radica na
credibilidade que impõem os nomes dos personagens convocados.
Tática subversiva que elimina qualquer discussão sobre a
ocorrência anotada em relação a este ou àquele personagem.
Paul
Eluard dizia que a poesia cria, se cria, destrói e se destrói.
Cabe estabelecer os vínculos indissociáveis entre estes
elementos todos. Nicolau Saião diz em um poema que “o mundo é /
inteiramente composto / por telefones e santos”. Isto me lembra
a brilhante suspeição de Salvador Dali, de que a realidade um
dia seria entendida como um estado de depressão, uma ausência
configurada como tal. Um personagem em Nicolau Saião simplifica
este ponto: “tudo depende de como se vai vivendo”, argumento
posto em dúvida ou inaceitável quando a realidade opera sobre o
homem. O poema é o lugar da dúvida. Este é o ponto.
Toda e
qualquer forma de rebelião se chama dúvida. Não é, portanto, a
fé a remover montanhas, mas antes seu questionamento. Tais
pontos de coordenação diversa representam a realidade móvel,
esta que circula “nas ruas que não recusam nada”, somos nós,
sim, nós todos, nós somos a diferença. O poeta sabe disto tanto
quanto sabe que as sociedades secretas são uma deformação da
nossa aceitação de um estado comum de convivência.
Nenhuma
alma se salva longe da poesia. A substancial teimosia 10 de
Nicolau Saião está justamente em afirmar que o homem em si, cada
homem, é seu último refúgio de humanidade.
***
FM
Eu gostaria de saber por onde começas a criar, se pela expressão
lírica ou pela plástica. Conversemos sobre os primórdios da
criação em Nicolau Saião e a partir daí vamos construindo o
universo de nossa entrevista.
NS
Tanto quanto me lembro, sempre tive ritmos, que mais tarde
aprendi que se chamavam versos, na minha cabeça. As pessoas mais
chegadas e os meus amigos em geral sempre notaram – com alguma
inquietação, até, o que me diverte – que disponho duma memória
que me atreverei a classificar de
muito boa.
Por isso, recordo perfeitamente que, bem pequeno, já respondia
aos acontecimentos do quotidiano de maneira específica que
depois se foi configurar em poesia escrita. Creio que a
denominada “poesia da infância” vive em todos e perdura – é o
elo que mais tarde permite que haja leitores a buscar-nos e a
entender-nos – e, nalguns, encarna mais tarde numa escrita
deliberadamente construída e desconstruída.
Comecei a
ler aos cinco anos, porque o meu pai era professor pelo “método
de João de Deus”, a célebre “Cartilha Maternal” incrementada
durante a Primeira República. Eu ouvia-o ler o jornal e todo eu
me danava por não poder fazer o mesmo. Às vezes, simulava que o
lia… Tanto o atenazei que ele, com a bondade e a paciência que o
caracterizavam, me ensinou. E nunca mais parou o meu contacto
com as letras e os livros, esses castelos enfeitiçados!
Publiquei o meu primeiro poema no canônico
Juvenil,
do
Diário de
Lisboa,
andava
pelos 16/17 anos. Importa dizer que uns dois ou três anos antes,
na sala de espera dum médico, eu contatara com o surrealismo ao
folhear uma revista brasileira,
O Cruzeiro,
que dava a lume nesse número um artigo sobre diversos autores.
Fiquei encantado, porque vi que as coisas que se agitavam dentro
do meu entendimento afinal tinham nome! No que respeita à
pintura, começou assim: havia e ainda há perto da casa que
habito em Portalegre uma espécie de moradia apalaçada que tinha
na frontaria uns painéis de azulejos com flores e motivos
vegetais em diversos tons de cor. Aquilo fascinava-me e sempre
que ia para a “mestra” virava-me repetidas vezes a
contemplá-los. Nas minhas horas desenhava, mas sem muito
empenho. Aos dezoito anos, tendo já mais mundo, entrei uma vez
numa galeria de pintura e, agradando-me uma obra, perguntei
quanto custava. A quantia que me indicaram derrotou-me de
imediato. Mas eu desejava ver-me rodeado de beleza e então
pensei com os meus botões: “E se eu tentasse fazer quadros?”.
Andavam-me frequentemente na cabeça, de mistura com os versos,
traços, cores, formas… Comprei uma caixa com canetas de feltro –
e meti mãos à obra.
Há dias em
que é alucinante: uma palavra, uma música, o simples olhar duma
coisa fazem-me agarrar no papel ou nos cartões e nos materiais
de pintura e gastar todo o santo dia naquela
construção/desconstrução. Outras vezes, passo semanas sem tocar
em nada. A escrita pode aparecer a seguir, ou antes; dum texto
se passa para um quadro e daí para dias sem pintar e escrever,
inventando, arrolando, transfigurando coisas na cabeça e se
calhar no corpo todo: fico sendo um magneto, um motor alquímico,
uma panela onde se cozinham os quadros e os versos.
FM
Em teu Os Olhares Perdidos (2001), logo no prefácio, João
Rui de Souza refere-se a “uma palavra devastada e devastadora na
procura contraditória do seu espasmo e da sua luz”, como sendo
uma das características essenciais de tua poética. O que buscas
por meio da poesia?
NS
Peguemos no título que referes. Por que este título?
Simplesmente por isto: quando um editor me convidou a publicar o
anterior livro,
Flauta de
Pan,
disse-me mais ou menos assim: “Veja se não sai um volume muito
grande… Arranje aí coisa para cento e tal páginas…”. Os
editores, ao que me dizem e eu acredito, têm de ter cuidado com
certos aspectos não propriamente poéticos. Então, bom aluno,
arranjei cento e quarenta páginas de flauta… Verifiquei de
imediato que me havia ficado, do acervo que tinha, uma boa
quantidade de poemas. Olhares perdidos… Olhares que não pudera
dar à luz das montras (diz um confrade que muito estimo, José do
Carmo Francisco, que “os poemas devem ser para a luz das montras
e não para o escuro das gavetas”). Depois, com a natural
evolução dos dias, o Ruy Ventura alertou-me: “Amigo, creio que
tem aí material que dá outro livro!” 12 Tinha quase, de fato.
Acrescentados de mais poemas que, entretanto, fui fazendo, os
ditos
olhares
antes
postos em
sossego
saíram
noutra editora com o título que lhes acertava em cheio.
Portanto, creio poder inferir-se que, à partida, através da
poesia, busco olhar as coisas duma maneira reconvertida,
transfigurada. Na poesia há, implícito, um
jogo
intenso
que ao poeta permite renovar-se, dar mais vida a si mesmo ou
conservar, intacta, a que tem – antes de tudo o resto. Faço
poesia para não morrer. Ou seja, para dar vazão ao núcleo duro
de vida plena que em mim sinto e que a sociedade,
frequentemente, busca extinguir em nós ou se vai corroendo por
ação dessa mesma sociedade informe ou deformada. Também é uma
incursão no mistério, nesta coisa estranha que é haver
existência e palavras e maneiras de as fazer bailar desta ou
daquela maneira e darem com maior ou menor perfeição o cheiro
dum momento passado, a cor dum pensamento, o rebrilhar duma
emoção antiga, dum temor, duma alegria.
Repara que
aponto, sem soberba, antes com serenidade feliz, para a
sabedoria
e não para
o
conhecimento.
Digamos que a poesia é o pedacinho de sabedoria que pudemos
granjear ou a que temos direito. Se nisso fazemos concorrência
aos deuses, pior para eles. Não têm de que se queixar, é o
resíduo divino que em nós mora e que epigrafamos sem maldade…
FM
Mas o que, exatamente, procuram ser teus escritos?
NS
Interrogo-me se procuram ser alguma coisa… Quando escrevo, estou
preso ao
motivo
do que me
apareceu na cabeça, como Cézanne ante o seu quadro. O que
naquele momento me interessa
é a coisa
em si:
se servir para algo, tanto melhor. Mas isso não me preocupa
grandemente. Creio que, como dizia Gherasim Luca, a beleza é uma
doença de pele, de sangue, de nervos. Cito de memória. E cito
também um poeta que muito me interessa, Cristóvam Pavia, que num
poema escreveu: “Até as imagens me são inúteis porque
contemplo
tudo”.
Nas alturas em que escrevo entra tudo, creio: o que aprendi, o
que fui sentindo através do tempo, as alegrias e fundas mágoas,
o que esqueci, o que desejo. Nos últimos tempos, pois com a
passagem da idade adquirem-se novos olhos e novas tristezas, a
presença da nostalgia e a fidelidade aos amores mortos têm na
minha escrita um peso cada vez maior. Eu costumo dizer, com
ironia, que
“não
tenho fantasmas mas tenho muitas nostalgias”.
E os fantasmas, se acaso se apresentarem, procurarei fazer-lhes
frente com as pobres mas implacáveis armas que possuo: as
palavras, a sua organização e reorganização, as frases com a sua
construção e desconstrução. Nada mais quero, nada mais me
preocupa do que viajar por esses continentes encantados e
temerosos que são a feitura do poema e a sua introdução no
espaço e no tempo. Não sei quanto tempo eles irão durar, mas
espero que alguns dos meus versos possam tocar o coração e a
mente de algum ou alguma daqui a um considerável lapso de tempo…
Por outro lado, já do outro lado do espelho – os poemas feitos,
já em estado de papel: que sejam uma proposta de interrogação
para aqueles que os lerem
e mesmo de
confrontação
com os
mistérios da existência. Sim, amigo, estás a perceber-me bem: a
matéria poética como
matéria
philosófica.
Seria preciso acrescentar mais? Talvez isto: que os poetas
honrados (e não tenho de
honra
uma noção
burguesa ou cínica) entre si se congreguem para que os que
desejam impedir que eles publiquem não levem a sua avante.
FM
Até aqui vens tendo o cuidado de fazer referência emparelhada ao
duplo construção/desconstrução. Contudo, é possível
distingui-los em tua criação, tanto na plástica quanto na
poética?
NS
Creio que sim, já que o perguntas. Pensando bem, digamos que,
sem ser premeditado, sempre que tentei construir o fiz buscando
erguer a partir de novas bases, que assim implicavam a
desconstrução do que tinha como material – dado pela tradição, o
quotidiano que vivia, os próprios hábitos do
milieu
literário
que tinha em volta.
Devo dizer
que, mesmo depois de quarenta e tal anos de escrita, continuo
fascinado, admirado e seduzido pelas
nuances
que as
palavras possuem, pelas infinitas variações que possibilitam.
Nunca tentei
fazer
diferente
pelo
simples desejo de originalidade: tal impunha-se-me, digo mesmo
que até dum ponto de vista ético, vê lá tu… Uma das coisas que
mais me espantava, se pessoas ou críticos pouco argutos me liam
e falavam comigo sobre as minhas produções, era o admirarem-se
ante um
jeito
(uma
inflexão) para eles pouco usual (digamos assim mansamente…) e
que estava fora do tom geralmente empregue por outros operadores
menos aventurosos… Depois percebi o porquê: habitualmente,
usava-se outra
fatiota,
que também desejavam eu vestisse. Mas ela não me servia e,
portanto, tinha de a talhar mais ao meu gosto – tanto mais que
se precisava de andar à-vontade para se descobrir outros
horizontes. Ir por outros continentes. Então, já com outros
aprestos na minha sacola, podia enfim tentar criar outras
residências, outros locais de morada (a escrita e a poesia como
palácios do nosso afeto).
Mas os dois
jogos
interpenetram-se, sempre se têm interpenetrado, seja na escrita
ou na pintura. Duas grandes aventuras, que dão para preencher
diversas vidas…
FM
Publicaste, em 1999, um livro intitulado
O crime e
a sociedade,
pelas edições Bureau Surrealista Alentejano. Eu gostaria que me
falasses um pouco a respeito desse livro, de sua atualidade, e
também do funcionamento desta célula surrealista no Alentejo.
NS
O livro, um pequeno ensaio completado por recortes apropriados
tirados da imprensa portuguesa “de referência”, surgiu porque eu
necessitava interiormente de clarificar certos aspectos
respeitantes à lei e à justiça – corporizadas, mal ou bem, no
sistema judicial – que, a meu aviso, têm a ver com o cerne das
sociedades e são o que motiva a atenção que se dá ao
leit motiv
presente
na literatura policial. Que li e sobre a qual me debrucei
durante mais de quarenta anos de encanto e perplexidade… Ao ler
A. Christie, Ellery Queen, Fred Kassak, Francis Beeding,
Sebastien Japrisot etc. – todos os grandes cultores do “polar”,
do romance de enigma (“whodunit”) ao
crime
story
e ao
social-thriller
(expressão
que propus aos apaixonados pelo gênero), apercebi- me de que
eram não só entusiasmantes, mas permitiam uma radiografia
correta e mesmo exaltante das sociedades, nomeadamente aquela em
que vivemos. Esses livros, mesmo os que certa gente tentava dar
como “simples entretenimento”
et pour
cause,
estão longe de o ser. Estudando a LP (literatura policial) e
lendo os denominados “casos do dia”, meditando em tudo isso,
concluí que em certas sociedades (a que chamo “sociedades
criminais”) o dito sistema não visa ser como que uma “entidade
reguladora”, digamos, mas sim controlar o quotidiano das
populações. Ou seja: haver democracia, mas isso não servir de
nada ao povo – porque o dito sistema vela para que tudo continue
na mesma e o jogo esteja falseado sem que as pessoas possam
deitar abaixo os próceres do mando. Em Portugal, onde o sistema
judicial está quase totalmente desqualificado dum ponto de vista
ético, foi-me fácil fazer a fotografia deste estado de coisas. E
digo: um dos pontos – talvez o mais importante – em que as
pessoas sérias e que querem que o mundo melhore devem insistir,
é na necessidade imperiosa de esse sistema funcionar sem álibis
hipócritas. Ou, então, tirar-lhes a máscara – é essa máscara que
lhes permite continuar a tripudiar ilegitimamente sobre as
pessoas, sobre a sociedade em que estas coexistem. Deve
tentar-se a todo custo que os intervenientes no sistema sejam
responsabilizados (democraticamente) pelas “demoras”, pelas
imensas caquexias – que são propositadas e mediante as quais
estabelecem um clima de intimidação, de medo e de sufocação
interior.
Com
relação ao Bureau Surrealista Alentejano (BSA), no que respeita
a esse núcleo de pessoas que existiu aqui no Alentejo, era,
grosso modo, composto por mim, pelo Carlos Martins, pelo
Palácios da Silva (devido a problemas existenciais foi apanhado
pela toxicodependência e morreu prematuramente de Sida), pela
Ana Santos, pelo A. J. Silverberg, pelo companheirismo do
Almeida e Sousa, depois pelo vigor criativo do João Garção, pela
solidariedade do Ruy Ventura… Emitíamos folhetos (também feitos
em conjunto ou assinados pelo Cesariny, o Inácio Matsinhe e um
que outro mais, conforme recordo), pequenos livros copiografados
(não havia então esta máquina mágica que é a digitalização),
fazíamos exposições de colagens e pintura aqui e acolá…). A
edição
before the
fact
de
Arquitectura do silêncio,
por exemplo, que depois valeu ao Ruy o Prémio Revelação da APE,
compu-la eu dactilografada, fiz o prefácio e a capa (Ed. Folhas
do Rosto) para dar a amigos… Um circuito personalizado, mas que
deixou resíduos. O BSA era uma espécie de irmão-colaço do Bureau
Surrealista de Lisboa, que o Cesariny tinha na capital e através
do qual dava a lume coisas muito giras. Tenho dele muitas cartas
e bilhetes, no sótão da “Casa da muralha”, em Arronches, que um
dia sairão à luz do dia assim eu tenha saúde e sorte…
FM
Já participaste de inúmeras exposições de
mail art.
No Brasil, a
mail art
acabou
limitando-se a um ludismo da forma sem maiores conseqüências
estéticas. É muito raro encontrarmos entre nós um artista como o
Hélio Rola, cuja interferência a partir da
mail art
sempre se
deu de uma maneira crítica e não de mero seguimento de modismos.
Meteram-se com a
mail art
mais os
poetas afeitos a um construtivismo inócuo do que propriamente os
artistas plásticos que, eventualmente, poderiam ver ali uma
possibilidade de fusão de duas linguagens, a plástica e a
poética. Como se deu tua aventura em tal território e até que
ponto se pode vislumbrar algum contributo estético a ser
destacado em Portugal em tal área?
NS
A
mail art
é, por
definição à letra, a arte que se pode enviar pelo correio. Mas
se encararmos o seu espírito, chegaremos a definições e
conceitos mais apropriados: arte que, modestamente, aproveita as
virtualidades de se poder enviar algo de especificamente
artístico ou poeticamente plástico num simples envelope, numa
pequena encomenda. À partida, as encomendas dos que são
civilmente despossuídos ou não muito abonados, que não dispõem
de galerias para as suas trocas artísticas, para as suas
mundividências de alma de seres do lado
dos que
sofrem a História e não dos que a fazem.
Em suma: dos que procuram utilizar os meios que os outros, mais
fornecidos de dinheiro ou poder, desprezam ou não aproveitam. O
envio interior, a troca, processa-se em geral a partir de
materiais pobres, usando de maneira muito própria as
possibilidades postas à disposição do artista e, a partir daí, é
a imaginação que comanda o jogo: utilização de cartões
habilmente modificados, fotografias rasgadas e recompostas com
outra estrutura, invólucros poeticamente deturpados e
transfigurados, bocados de revistas e jornais forçados doravante
a proporcionar outro “espetáculo”, desenhos, guaches ou
aquarelas dissimulando-se nos intervalos da vida
plástico-quotidiana etc. Nos últimos tempos, assiste-se, no
entanto, a umas burlazitas: o que alguns enviam são pequenos
quadros sem especificidade. Chega-se mesmo a isto: certas
escolas dão aos alunos possibilidade de enviarem para exposições
produções suas, à guisa de trabalho curricular – com
horripilantes resultados, adulterando a verdade, a realidade e a
liberdade da
mail art.
No meu
caso, comecei por enviar coisas a amigos, sem mesmo pensar que
era uma atividade que podia desaguar em exposições. Depois, com
o Almeida e Sousa, o Carlos Martins e o João Garção, entrei no
chamado
circuito.
Procuramos sempre ser autênticos na nossa participação, o que se
pode comprovar vendo os catálogos que transportam as coisas
remetidas por nós.
Devo
salientar que muitos organizadores, ao levarem a efeito mostras
de
mail art,
visam sim
alambazar-se
com
pequenos museus mais que serem um motivo para as trocas, sempre
excitantes e por vezes surpreendentes, da arte postal.
FM
Fala-me, agora, da tua aproximação de Mário Cesariny e Carlos
Martins, da maneira como acabou resultando na organização da
exposição “O Fantástico e o Maravilhoso”. Claro que ambos os
conceitos estavam ligados e numa percepção dentro da ótica
surrealista. Mas o que a eles acrescentavam então poetas e
artistas portugueses?
NS
A exposição surgiu da maneira mais espontânea e informal que se
possa pensar. Mas já lá vamos… Conheci o Carlos na chamada vida
militar, em Leiria – numa noite com certas peripécias surreais.
Ficamos amigos quase de imediato e verificamos que navegávamos
na escuna surrealista e libertária. Estivemos depois em comissão
de serviço “por imposição”, como oficialmente dizia na
guia-de-marcha, na Guiné. Escrevíamos, principalmente, e, quando
podíamos, pintávamos - eu pratiquei mesmo cerâmica e tentei
aprender, em boas condições, tapeçaria com os nativos. Quando
viemos para casa, contatamos com os membros do “Grupo do Grifo”,
da revista do mesmo nome, que saíra por essa altura, e a PIDE
[4] logo apreendera: Virgílio Martinho, Ernesto Sampaio, António
José Forte, Pedro Oom, António B. da Fonseca, Ricarte-Dácio.
Também apareciam no Café Monte Carlo, local da tertúlia, o
Herberto Helder, o Luís Pacheco, o Miguel Erlich, a Luiza Neto
Jorge, a actriz Eunice Muñoz, o declamador Mário Viegas…
Só em 1976
conheci o Cesariny: eu estava ao pé da Estação do Rossio quando
ouvi ao lado uma voz a pedir à ardina um jornal que tivesse
notícias boas… Era o Mário. Dirigi-me a ele, apresentei-me:
ficamos até as quatro da manhã a conversar no seu
atelier.
E passamos a contatar regularmente e a levar a efeito atividades
em conjunto. A exposição surgiu por acaso: tanto o Mário como o
Carlos partilhavam comigo o deslumbramento pelas coisas do
Lovecraft, do Georges du Maurier, do “Monk Lewis”, do Bulgakov,
dos antigos e modernos cultores do humor negro, do maravilhoso e
do fantástico e falávamos muito a seu propósito. Como nessa
altura o Carlos e a Ana estavam no Teatro de Xabregas, ela como
actriz e ele como encarregado do sector cultural, pensamos em
artilhar a mostra. Eu conhecia o Miranda Calha, que estava
secretário de Estado do Desporto, e ele falou com o Coimbra
Martins, ministro da Cultura de então. Ultrapassadas algumas
dificuldades que nessa época ocorriam – o Cesariny por seu turno
falara com a secretária do Mário Soares –, articulou-se a
exposição com o apoio do movimento Phases e de autores ingleses,
brasileiros, belgas, angolanos, moçambicanos, holandeses etc.
Conseguimos também, por intervenção do Mário Soares junto de
certas embaixadas, a participação de alguns autores do Leste…
Os
portugueses (Mário Botas, Paula Rego, Eurico, Armanda Andrade,
António Quadros, Relógio, Garizo do Carmo, Areal, Júlio Reis
Pereira, Escada, Isabel Meyrelles, entre muitos mais) quando
vivos eram contatados por conhecimento próprio de uns e de
outros ou disponibilizavam-se ao saber da
coisa.
Se
falecidos, falava-se com os herdeiros. A minha contribuição de
maior vulto – além de traduzir textos e publicar poemas no
catálogo-livro e expor dois quadros – foi descobrir um
surrealista ínsito, meu companheiro de adolescência: de sua
profissão carpinteiro, meio-surdo e com dificuldades na fala,
mas muito atento e inteligente, o Manuel Mourato, nos dias em
que tivera de ficar em repouso por haver partido uma perna,
pintara um enorme quadro com as tintas da profissão:
O bosque
encantado,
título de minha lavra e que foi uma das revelações da Mostra.
Mal recebida pela crítica
au pair
(estava-se
em plena época da reação pura e dura aos que não aceitassem os
ditames
culturais
dum certo
setor), a mostra foi depois levada para a Sociedade Nacional de
Belas Artes pela mão competente e esclarecida do crítico
democrata Rui Mário Gonçalves.
FM
Este teu deslumbramento por Lovecraft o levou à tradução de seus
poemas. O que exatamente esta afinidade acrescentou à tua
poesia? Penso até que ponto nos teus retratos não se verifica a
mesma simulação, o mesmo efeito das “surpreendentes fabulações
engendradas” que percebes na poética do autor de
Fungi from
Yuggoth.
NS
Penso que tens razão, é uma observação perspicaz! O primeiro
livro que dele li foi
O caso de
Charles Dexter Ward,
editado pela Livros do Brasil em janeiro de 1956 sob o título
Os mortos podem voltar.
Eu apanhei-o dois anos depois, tinha uns doze, e nessa altura já
recebia semanada – o que me permitiu economizar para o adquirir…
O que
desde logo me fascinou em Lovecraft – depois pude corroborar
esta idéia – é que o fantástico que encena se inscreve num
realismo apurado. Lovecraft é um grande escritor realista.
Descrições dele da Nova Inglaterra são do mais apropriado que se
traçou: porque o realismo dele não é estrito, não é charro – é
transfigurador, sente-se nele um frêmito de vida, uma intensa
palpitação de coisas e de pessoas. Daí o interesse que os
surrealistas americanos (e franceses que depois o leram) tiveram
por ele, o que só mais tarde vim a saber por ter lido um
exemplar (oferecido em fotocópia pelo Cesariny) de
Cultural
Correspondence
dado à
estampa por Franklin Rosemont como editor convidado para esse
número, “Surrealism & its Popular Accomplices”. O que Lovecraft
me deu – e já agora quero confidenciar que me encantou imenso
ter sido o tradutor da edição integral e fiável do seu
“Fungi”
(trabalhei
a partir dum dactiloscrito de HPL, fotocopiado e enviado ao
Carlos Martins por intercessão de Jean-Pierre Andrevon segundo
informação dele, pelo grupo de Providence – foi a sensação de
que não estava só na caminhada empreendida. A adolescência é um
lugar mágico, e se temos a sorte de a ter pacífica e aberta à
criatividade, como foi o meu caso, a viagem fica escancarada a
todos os ventos e rotas: Lovecraft foi um admirável companheiro,
um tio afável e possuidor de um universo onde eram possíveis o
sonho e os raciocínios menos convencionais.
FM
Na tradução de
Fungi from
Yuggoth,
optas pela estrutura do soneto inglês, enquanto,
originariamente, Lovecraft modula seus sonetos em dois blocos
únicos, com 8 e 6 versos. Por que esta interferência tua na
concepção formal do autor?
NS
Porque a certa altura, quando o estava a ler aturadamente antes
de começar a traduzir, me apercebi de que não poderia/ deveria
seguir a estrutura que ele seguia. Diferenças de língua e de
cadências… Há um poema, por exemplo – trata-se do undécimo, “O
Poço” – que ficava desfigurado se eu tentasse rimar como ele
rimou. Então, notei que resultava se a terminação fosse sempre
em “ar”: ficava com um tom de balada – das baladas que ele bem
conhecia. E com aquele final de duas linhas, os poemas
afivelavam o tom dos contos de mistério, que em geral terminam
por uma revelação súbita e desconcertante… que concerta tudo
para nosso gáudio.
FM
De que maneira te sentes integrado ao surrealismo em Portugal?
Explica-me tua participação efetiva no movimento e as afinidades
eletivas.
NS
Começarei por dizer que “surrealismo em Portugal” é uma espécie
de
ave rara
que
diversos caçadores tentam abater, uns por umas razões e outros
por outras. Se ser surrealista é sentir o primado da imaginação
e da transfiguração que a liberdade livre proporciona, do
sentido que o humor negro, o amor e a lealdade aos poderes do
espírito nos concede, sou surrealista e tenho como meu albergue
a terra inteira. Ser surrealista em Portugal é, entretanto, um
negócio arriscado,
no mínimo, constantemente sujeito a deturpações, difamações,
fingimentos e desprezos subreptícios. Nesta nação nunca houve
uma verdadeira democracia – o que há agora é uma partidocracia
num país belíssimo, paisagem que o povo vai ornamentando (e com
freqüência o melhor surrealismo sai do povo espontaneamente,
feito com arte ingênua e perfurante inocência), mas dominado por
gente que se apóia nos meios de comunicação, no caciquismo e nos
maus hábitos seculares. Nestas circunstâncias, o espaço de
manobra do surrealismo é pequeno. É
impensável,
por exemplo, que a entrevista que você me está a fazer me fosse
feita por qualquer órgão de referência nacional. A imprensa
portuguesa vive dominada por uma espécie de paranóia guerreira
que existe entre os diversos quadrantes políticos, sendo
porta-voz das
trocas e
baldrocas
em que
estes vivem mergulhados. Também se alimenta intensamente da saga
futebolística e dos
talk-shows
televisivos, criando um espaço letal para a poesia e de entre
ela para a poética surrealista. Quando necessidades de maquiagem
cultural a isso aconselham recordam-se de novo, pela milésima
vez, os tempos já idos dos surrealistas Cesariny, Seixas e um ou
outro mais (António Maria Lisboa e o também já falecido Mário
Henrique Leiria, quando muito) faz-se uma excursão por esses
anos (cerca de 50 atrás…) e aproveita-se para dar a entender
que, afinal, o surrealismo, que foi giro nessa época, está
extinto,
kaputt,
passemos agora a coisas sérias e importantes – as literatices
que rendem.
Por isso o
que há, falando em grupos, é
grupos de
um
– como o
Cesariny me dizia há anos, com ironia – ou de dois ou três no
máximo, reunidos quase por acaso, ajudados por
companheiros de jornada.
De vez em quando se tem a possibilidade de fazer uma exposição,
publicar um livro… A minha participação no… movimento (?)
caracterizou-se por um lado pela feitura de poemas e pela
efetivação de mostras, os primeiros publicados em jornais e
revistas que respeitavam a sua qualidade sem repararem muito na
sua condição surreal e as segundas levadas a cabo pelas
entidades que, sendo um pouco de letras grossas, não viam bem a
epidemia
que lhes
levávamos… Quanto aos meus livros, faço questão de salientar que
foram dados a lume com dificuldade. E saíram porque subsidiados
pela autarquia da minha cidade – onde gozo/gozava de respeito
pela minha condição de democrata, que ajudou a fazer o “25 de
Abril”. Por outro lado, nos tempos mais chegados com o Ruy
Ventura e o João Garção, tenho levado a efeito palestras e
conferências
aproveitando as abertas que se podem
e sempre
escorado no prestígio pessoal como poeta e militante democrata.
Escrevendo nos jornais que me dão eventual guarida, indo à rádio
de tempos a tempos, metendo aqui e ali a palpitação surrealista…
Nunca tive, todavia, qualquer dificuldade em mostrar-me em
Espanha e em colaborar com entidades culturais espanholas, em
razão da maior abertura que existe do outro lado da fronteira.
FM
Fala-me um pouco mais destes outros nomes referidos por ti e
ligados ao Surrealismo em Portugal. Muitos desses autores vêm
tendo suas obras reeditadas, o que permite uma reaproximação.
Quais nomes, no entanto, foram deixados para trás e que
consideras importante recobrar?
NS
Certos nomes de autores chegavam até mim por meio de referências
dispersas, como, por exemplo, Manuel de Castro ou José Sebag.
Este último ainda tive ensejo de o ouvir frequentemente na
Antena 2 da rádio, pois era ali, até falecer, locutor ou
realizador, não sei bem se mais isto que aquilo. Tanto um como
outro são de considerar, acho que fará sentido serem reeditados.
Paralelo W
ou
Estrela
rutilante
são livros
de levar em conta no não tão vasto como isso campo dos
surrealistas que conseguiram epigrafar-se. Também devia, a meu
ver, fazer-se uma recolha – em estilo livro-catálogo, digamos –
das pinturas e cerâmicas de Carlos Martins, Lud e Ana dos
Santos. Cito ainda Pedro Oom, do qual não saiu nenhum livro
enquanto vivo. Faz sentido que seja de igual modo conhecido, ou
conhecido mais intensamente, entre vós. Um outro autor que me
vem à memória: Ricarte-Dácio, com estórias e crónicas entre o
real e o imaginário, com um tom muito peculiar de grande senhor
criando mansões misteriosas.
FM
Já me disseste que estou certo ao observar que és uma voz
praticamente isolada, em tua geração, no que diz respeito a uma
defesa do Surrealismo. Decerto que esta posição refletia também
certa marginalização, não?
NS
Eu diria uma clara marginalização, à qual fui sempre submetido
por responsáveis de órgãos de comunicação “de referência”. Isto
se deve, tanto quanto percebo, ao seguinte: 1. Clara incultura e
incapacidade de ler os que não sejam vedetes evidentes ou por
aí; 2. Necessidade de irem em frente com sua razão muito
própria: as estantes da literatura e da escrita serem o que eles
determinam; assim sendo, este não pode cá entrar (como é que
explicariam então o rosto do acervo que sem cessar montam ou
desmontam para efeitos de comércio mental ou mesmo social?); 3.
Intolerância/repúdio pelos que não fazem parte da equipa
(política, social, de confraria etc.) e eu não faço de fato
parte: não andei com eles na faculdade, não alinho no/s seu/s
partido/s, sempre fui dotado de uma certa vitalidade de
maneiras… (Em Portugal, a vida das literaturas também é muito
física… E eu, como fui pugilista e esgrimista, tive sempre a
segurança suficiente para dizer na cara de certos fulanos o que
de fato pensava deles sem temer levar uma sova…). Contra mim
falo: não tenho nem nunca tive, digamos, feitio para beijar a
mão a putas e putos literatos… ou gente “atravessada” – e isso é
mortal entre nós, apesar de ser um indivíduo pacífico que quase
nunca utilizou os músculos distribuídos por oitenta e tal
quilos…
FM
Ao lado da poesia tens uma produção teatral, de que são exemplos
As estrelas sobre a casa
(em
elaboração),
O desejo
dança na poeira do tempo
e
Passagem de nível.
Já me dirás se algumas dessas peças foram montadas. O que mais
me interessa saber aqui é como identificas o corpo – sua
percepção espacial, a ressonância do convívio com outros corpos
etc. – em um plano de ação. Há uma distinção entre o corpo
evocado no poema e em sua representação teatral?
NS
Respondendo em seqüência: nunca foram encenadas. Pouco depois de
sair
Passagem
de nível,
um belga que estava nessa altura numa vila para os lados de
Évora a escrever um livro, como a achou sugestiva e original
propôs-me traduzi-la e levá-la à consideração de um teatro de
Bruxelas – se o setor cultural da edilidade portalegrense lhe
pagasse o tempo de trabalho, pois não era/estava muito abonado…
Escusado será dizer que, na altura, a gerência desse setor não
se dispôs a abrir os cordões à bolsa para esportular esses
míseros 500 euros… Também um indivíduo de um grupo de teatro, de
que aliás nunca esperei muito, analisou a obrinha – parece que
era gira… –, mas o fato de ter um padre (padre Joaquim Gráfico)
pouco ortodoxo entre os personagens, diminuiu-lhes o apetite: os
próceres locais podiam levar a mal… Quanto à questão do corpo,
vejo a coisa assim: nos poemas, mais ou menos marcadamente,
aparecem pessoas, mas a estrutura do poema dá-lhes uma
existência específica, só sugerida e como que suspensa sobre os
acontecimentos, a progressão de verso para verso. Então,
escreve-se uma peça – para que haja pessoas que executam os atos
do quotidiano: comer, dormir, passear daqui para ali, tomarem
banho, dizerem ao que vêm e o que desejam…
Nas peças
que citei, mistura-se o que as personagens dizem e o que o autor
diz por elas e o que elas dizem por ele: frases que sugerem algo
que se passou sem estar absolutamente descriptado, que o leitor
(ou o potencial espectador) deve destrinçar para entrar na posse
do conhecimento completo das peripécias. Por isso, julgo, é que
João Garção, em “Algumas palavras” que dedicou à peça citada,
refere que as personagens “ora assumem um ar circunspecto, ora
se lançam em tiradas decididamente talhadas no material do humor
negro e do onirismo fingidamente quotidiano”. Essa troca, esse
percurso incessante entre real e trans-real (se me permitem o
neologismo) interessa-me prodigiosamente e espero vir
futuramente a concretizá-lo noutras obras.
FM
Diz o estadunidense Allan Graubard, também poeta e dramaturgo, o
que segue: “No teatro, o ator projeta palavras, transformando o
corpo num palco que soa. O ator incorpora a linguagem ao
revivê-la dentro da peça. O poeta joga com a linguagem sem
recorrer a um ‘jogo’. Não há nenhum personagem, exceto nas
palavras que o poeta escreve, e na ressonância a que elas dão
vida.” [5] Estás de acordo?
NS
Creio que estou. Sim, sim, é muito arguta a observação que ele
faz e a forma como o faz. Também pensei nesse duplo sentido da
expressão inglesa: jogo e representação. Onde começa e acaba o
jogo, onde se representa e onde nos representamos? Devo dizer
que para mim o teatro – a sala de teatro, assim como o circo,
que adoro – é o lugar por excelência do encanto e do segredo, o
território do maravilhamento, do mistério, das perguntas
nucleares que se nos colocam enquanto seres que por cá vivem
durante os anos que nos é dado viver. Gosto muito de cinema, mas
é na sala de teatro que volto de novo à infância e de repente
tenho centenas de anos e, parece-me, fico entendendo algumas
coisas. Talvez por isso não vou muito ao teatro, por receio de
levar com “alfacinhismos” nas narinas – quando apanho um fraco
“banquete” fico infeliz por muito tempo. Mas quando o que me foi
proporcionado é efetivamente bom, é um deslumbramento que me
suscita a vontade de fazer logo coisas a seguir…
FM
No que diz respeito ao “temperamento” da imprensa em Portugal,
isto tem sido a tônica dos organismos de comunicação em todo o
mundo, não constituindo uma particularidade portuguesa. O que
intriga é a maneira como esta forma violenta se tornou natural
com a conivência da própria casta intelectual que a deveria
combater. Meter-se com a mídia hoje é coisa para excluídos que
ainda sonham em ser incluídos. Já não se questiona a deformação
moral do que seja. Não se trata de ideologia ou estética e sim
de um naufrágio existencial.
NS
Gostaria de contar uma pequena estória que eu apelidaria, com
humor negro, de “proveito
e exemplo”
como se diz por cá: no filme do Oliver Stone, sobre o
assassinato do Kennedy, o procurador que está a investigar a
conspiração, ao encontrar-se com o operacional reformado que
pertencera aos mais altos círculos da “secreta” e lhe dar
informações, começa a falar-lhe na
filosofia
do mal
dos
previsíveis assassinos e em outras coisas transcendentes que
tais. Ele, com um sorriso, diz-lhe então: “Deixe-se de
filosofias e de ‘poesia’ e siga a pista da massinha…”. A minha
posição perante o que deixas transparecer na tua observação é
exatamente a mesma. A meu ver, não se trata de um naufrágio
existencial e sim de algo que tem a ver com a charra e crassa
falta de ética e do desejo de estar à manjedoura do poder. Há
uma parte da intelectualidade que questiona a deformação moral
que muito bem referes. Mas são defenestrados, marginalizados e
mesmo perseguidos, quando é necessário. Creio que os movimentos
sociais de ponta – nos quais os surrealistas a mais de um título
militam – devem forçá-los a definir-se – e não se julgue que é
um esforço ingênuo ou desinteressante, este. Pela minha parte,
não estou nada intrigado com os fastos que os lacaios de sempre
se auto-ofertam: os oportunistas sempre jogaram pelo seguro e
têm artes de estar sempre do lado em que há sol…
Creio que
a pouco e pouco a figura está a se reconfigurar: também os do
Leste se pensavam eternos e veja-se a implosão que os deitou
todos abaixo. Nisto, sou otimista. Também os que pensam que a
bambochata seqüente durará encontrarão o seu Waterloo mais
depressa do que julgam. Hoje, já nem os próprios gurus da
economia de mercado se atrevem a arvorar um sorriso sobranceiro,
eles sabem bem quanto as suas aparelhagens aparentemente de
precisão são falíveis. As próprias religiões reveladas, que são
outra das partes (baixas) da questão, sentem um frio mortal à
sua volta. Mesmo os chefes do Islã, de acordo com dados a que se
tem acesso, no fundo estão muito pouco tranqüilos – e por isso
tentam uma fuga para a frente mediante o fundamentalismo mais
agreste e o terrorismo como razão intrínseca duma linha que já
se perdeu na História e está prestes a perder a própria
História. Aos surrealistas caberá então uma tarefa definitiva:
colocar sempre e cada vez mais em evidência as margens do
amor
sublime,
da transfiguração imaginativa para além do simplesmente
literário ou societário. Como diziam e viviam os mestres
alquimistas, a questão que se põe é mais
artística
(ou seja,
de
paixão
e de um
realismo que sabe espiritualizar a matéria e materializar o
espírito) que técnica ou filosófica (no sentido estrito). O
próprio exagero das forças dominantes – entre as quais os
médias
se contam
– em rebaixar a ética, nos diz que eles percebem que existe
certo estrebuchar imparável. Não tenho da vida um sentido
catastrofista e, por isso, sinto certa calma que me permite
viver sem a angústia que é natural muitos terem colada aos ossos
e à alma.
FM
Qual a situação hoje do Surrealismo em Portugal? Bem sabemos da
importância do trabalho que vem realizando um crítico como o
Perfecto Cuadrado. Contudo, não te parece que se está dando ao
Surrealismo uma conotação essencialmente historicista,
minando-lhe a atualidade?
NS
Confesso, sem nenhuma malícia, que não conheço muito o trabalho
a que te referes. E isso será já significativo em si. Num país
normal, eu não poderia deixar de ter bom conhecimento disso. Mas
se calhar sou como o personagem do livro do Richard Wright sobre
o racismo, um
homem
invisível.
E como eu há mais… É claro que isto sucede porque, precisamente,
o Perfecto Cuadrado estará dando ao surrealismo isso que
referes. Ou então foi alguém que, interessado, inteligente,
agilmente manobrador, lhe deu a volta, como se diz que o
Napoleão fez a um encarniçado opositor. Mas isto são
conjecturas. Não conheço esse estudioso, não sei se é uma alma
cândida ou uma pessoa que, interessada e ardente, terá
eventualmente do surrealismo português a visão que o imperador
Guilherme tinha da Alemanha: uma dama pronta para todas as
aventuras… Sério calculo eu que deva ser. Seja como for, o
historicismo interessa a muita gente – desde logo os pequenos
aristocratas da fantasia aplicada, que são ótimos para lançar
uma cortina de nevoeiro sobre os tempos e os modos.
Só posso,
a este propósito e de boa catadura, dizer que houve uma ensaísta
que em tempos escreveu um tomo sobre o surrealismo que, lido por
mim e pelo Carlos Martins – que, aliás, lhe mandou uma carta, eu
dispensei-me de tal maçada –, nos fez rir primeiro a bandeiras
despregadas. Aquilo que lá dizia que nós tínhamos feito era, com
o devido respeito, uma traquinice pegada, não foi nada daquilo.
Depois, pelo menos eu – que tenho um temperamento dramático,
quase trágico –, gelou-se-me o riso nos lábios.
FM
Olha, o Perfecto é um espanhol que vem cuidando de recuperar a
memória do Surrealismo em Portugal. Está à frente do Centro de
Estudos Surrealistas, da Fundação Cupertino de Miranda, e vem
publicando alguns livros, tanto pela Ed. Assírio & Alvim como
pela Quasi Edições. Tem sido também o responsável por algumas
importantes exposições de artistas portugueses ligados ao
Surrealismo. A rigor, tem cuidado melhor do Surrealismo em
Portugal do que qualquer português.
NS
Fico ciente. Então ainda bem. Ou ainda mal – passe a ironia –
isso diz bem da estrutura lusitana do “panorama” envolvente.
Espero, sinceramente, que esse organismo da dita fundação não
seja uma estrutura para liofilizar o surrealismo, mas sim com
pundonor e
caballerosidad
(com
heterodoxos e competentes
cojones,
para seguir o requisito de Pavese) destrinçar as coisas que
importam ao mundo e à realidade sem antolhos e sem academismos
decentezinhos e compenetrados.
FM
Até 2005, quando então te aposentaste, foste o responsável pelo
Centro de Estudos José Régio, em Portalegre. De que maneira isto
permitia alguma aproximação entre literatura em Portugal e
demais países de língua portuguesa? O que se conhece da poesia
brasileira em Portugal?
NS
Régio era um poeta que, apesar do que certos sectores ainda
pretendem, prezava os encontros, além de ser dotado de um
espírito curioso e interessado. Tinha muito razoáveis contactos
no Brasil. A talhe de foice: Ribeiro Couto (que ele recebeu em
Portalegre numa noite memorável de que há registros), Cecília
Meireles, Dante Milano, Manuel Bandeira, Herberto Sales, José
Paulo Moreira da Fonseca, Mauro Mota, Domingos Carvalho da
Silva… Trocavam os livros, exprimiam-se mutuamente apreço e
admiração – e, como se diz, passavam palavra, procediam a
cooptações. Logo que cheguei ao Centro – e já lá vão 13 anos –,
comecei imediatamente a ler tudo o que ele tinha em acervo, não
só por brio profissional e necessidade decorrente da minha
função, mas por gosto e vontade. Aliás, há lá livros que se
calhar já só se encontram nas bibliotecas nacionais… Em certos
casos, foi um deslumbramento. Autores de que só tinha ouvido
falar, nalguns casos e, noutros, lera de raspão na, à altura,
mal fornecida Biblioteca da cidade, estavam à minha disposição!
É claro que depois passei as minhas leituras, entre outros
elementos que lhes fornecia, aos visitantes. Não é para me
gabar, mas muitas pessoas em Portugal passaram a ler autores
brasileiros com renovado interesse depois da minha
“evangelização”… E não só visitantes, mas confrades e amigos. E,
muitas vezes, quando ia ou vou à Rádio, frequentemente leio
poemas dos teus compatriotas. Porque tenho prazer nisso, porque
eles merecem – mas também porque acredito que é importante
difundir a literatura brasileira. E tenho sido “recompensado”:
tempos atrás, por exemplo, foi-me solicitado por uma senhora de
Almada que lhe enviasse fotocópias de poemas de Moreira da
Fonseca e, de uma escola do Baixo Alentejo, fui solicitado a
proferir uma palestra sobre Régio e os escritores brasileiros, o
que fiz, tendo depois escrito um pequenino ensaio. Não me parece
que se conheça muito da vossa poesia cá no país. Em geral,
fala-se em Bandeira, Murilo Mendes, Jorge Amado, Lêdo Ivo,
outros como Rubem Fonseca – mas é nas correntes intelectuais que
o conhecimento pode ser mais fundo. Estou a lembrar-me que um
poeta de categoria, C. Ronald, eu mesmo só relativamente há
pouco tempo o li. E deve haver dezenas de autores de mérito que
desconheço, o que diz de imediato que se num leitor tenaz e
intemerato como eu isso é assim… como não será noutros um pouco
mais distantes da leitura!
FM
Houve um momento em que se entendia em perfeita sintonia o poeta
e o revolucionário. Nos anos 40, o Benjamin Péret chegou a dizer
que “o poeta atual não tem outro recurso que ser revolucionário
ou não ser poeta, pois deve lançar-se sem cessar ao
desconhecido”. Depois houve certo
apaziguamento
dessa
idéia de se lançar ao desconhecido, restringindo-se mais ao
âmbito da linguagem e não propriamente de entrega total, a
analogia entre vida e obra. Também o termo
revolucionário
caiu em um
desgaste sem fim. Pensando em Péret, qual recurso tem à sua
disposição ou imposição o poeta atual?
NS
O que sempre teve: a linguagem e a escrita que ela propicia, se
a soubermos merecer. E deste termo, merecer, já decorre que o
poeta verdadeiro é sempre um revolucionário: revoluciona os
conceitos, as estruturas de comunicação. Revoluciona o real
quotidiano e o imaginário das comunidades, inclusivamente. O que
acontece é que em determinado período se começou a chamar
revolucionário
não ao
revolucionário mesmo, mas ao tipo que seguia os ditames dum
certo partido, duma agremiação de chefes e de
apparatchikis
que
estavam longe de ser novos e propugnadores do novo: eram velhos
e relhos, cínicos e até hipócritas. Ao serviço da propaganda,
elaborava-se versalhada que depois os alto-falantes se
encarregavam de promover como
o que
interessava,
estabelecendo o equívoco e fazendo o deserto à volta. Levantando
processos de intenção aos que queriam ver bem e ver livremente…
(Do outro lado estavam os boas-bocas do hábito e da conversa
frascária pseudometafísica ou, numa versão muito atual e
portuguesinha, os do “regresso ao real” que não passa
frequentemente de álibi para semi-fazedores com pouco gás).
Pela minha
parte – e fico bem satisfeito com tal fato, tive sorte e
felicito-me por isso – senti sempre a ligação entre a renovação
da linguagem e da escrita e o apelo do magnífico desconhecido.
Creio que pude conservar a disponibilidade para, como dizia o
mesmo Péret, “navegar sem norte e sem estrela/através das
tempestades/ rumo aos areais refulgentes de ágatas/onde brilham
os olhares provocantes das opalas”. Estou a citar de memória,
mas se há diferenças nos versos creio que são talvez mínimas…
NOTAS
1. Nadja [trad.
Ernesto Sampaio]. Editorial Estampa. Lisboa. 1971.
2. “A
propósito da poesia de Nicolau Saião”. Miradouro. s/d.
3. APE -
Associação Portuguesa de Escritores. Nicolau Saião recebeu o
prêmio Revelação/90, pelo livro
Os
objectos inquietantes,
que seria publicado em 92 pela Editorial Caminho, de Lisboa.
4. PIDE:
Polícia Internacional e de Defesa do Estado, a “secreta” de
Salazar. O nome, com o sucessor Marcelo Caetano, mudou para DGS
(Direcção Geral de Segurança). Contudo, toda a gente lhe
continuava a chamar o antigo nome, o que, aliás, marcava uma
posição de conhecimento da essência.
5. Graubard,
Allan. “Notas para a reintegração do gesto e da linguagem”. [trad.
Eclair Antonio Almeida Filho]. Texto publicado na revista
Agulha
# 50
[março de 2006]. Em nota do tradutor, destaca-se o que segue:
“Jogo de palavra intraduzível com
play
significando peça de teatro e jogo”. |