Um
encontro com Nuno Júdice
Floriano Martins
FM
No prefácio de uma antologia tua, a ser finalmente publicada no
Brasil, refere-se Vera Lúcia de Oliveira a uma certa polifonia
de vozes entranhada em tua poética, polifonia que acaba por
definir-lhe singularidade. Podemos dizer o mesmo no que se
refere a temas, ou acaso sente-se perseguido por algum tema em
particular?
NJ
Há três temas que percorrem a minha poesia: o amor, a morte, a
infância. Encontram-se em livros, de forma cíclica ou
seqüencial; e correspondem a um conceito do poema como
interrogação do ser e do mundo ou, se se quiser, do ser-no-mundo.
Há uma relação estreita destes temas com aquilo que foi, e é, a
minha realidade. Através desses livros, posso acompanhar um
percurso biográfico que, no entanto, é apenas um dos materiais
da minha poesia. Outro, é o meu diálogo com outros poetas, que
também se desenvolve de forma recorrente. Rilke, através de uma
referência elegíaca de que me tenho vindo a afastar; Eliot, no
seu recurso a um fundo religioso da escrita poética, e ao modelo
temporal da vida humana; Ruy Belo, Jorge de Sena, Herberto
Hélder, no tratamento da palavra a partir de uma genealogia
formal que vai buscar ao classicismo, por um lado, e à
fragmentação do discurso, por outro lado, a sua estrutura
natural. Sempre entendi, neste sentido, a poesia como um
trabalho, análogo àquele que os mestres canteiros praticavam nas
catedrais da Idade Média: a linguagem é, assim, a pedra onde
procuro inscrever, com a precisão de um “escultor do instante”,
o meu olhar sobre o tempo.
FM
Há um limite para a criação, ou seja, há um momento em que vida
e poesia deixam acaso de mesclar-se e podem seguir alheias entre
si?
NJ
Durante algum tempo segui a disciplina pessoana que, segundo uma
interpretação dogmática, estabelecia claramente o distinguo
poesia-vida. O que sucede, no entanto, é que o poema tem essa
faculdade de absorver a vida, tal como a esponja, secando o ser
que o alimenta. Há, por isso, uma necessidade de evitar essa
relação vampírica, em que o ser corre o risco de se transformar
num morto-vivo. Julgo que o percurso normal será o de uma fusão
dos dois universos – o pessoal e o do poema – ainda que, no
poema, a imagem especular adquira a vida própria da Alice no
outro lado do espelho.
FM
Como conciliar tua idéia de que “a vida é sempre o imprevisível
e o invisível” com uma outra declaração em que afirmas que “não
se descobre o que não existe”. Duas situações fora de contexto
ou uma contradição tua no que diz respeito a essa por vezes mal
compreendida relação entre poesia e vida?
NJ
Referia-me, provavelmente, à vida que o poema reflecte,
reelabora e transforma, fazendo do arquétipo (o real que está na
sua origem) algo de inacessível ao olhar do leitor. Este terá,
então, a vida que o próprio poema produz, e que tende a
projectar-se em imagens do universo do próprio leitor. Pouco
importa, então, quem foi a mulher real amada por Camões, ou
quais as circunstâncias que envolveram a génese do “Guardador de
rebanhos”. O que é importante é que, nesses poemas do amor
camoniano, vivem todos os sentimentos que o amor desperta; e que
nos campos de Caeiro passam todos os rios em que o tempo do
poema reproduz a sua perenidade.
FM
Consideras o poema em prosa uma espécie de gênero de exceção?
Quais limites podem ser estabelecido entre ele e o verso
tradicional, digamos, e de que maneira este duplo exercício
fundamenta tua própria criação?
NJ
Julgo que é um gênero que importa tratar com a máxima moderação.
Correspondeu a uma época de contestação das formas tradicionais
– do final do Romantismo até ao surrealismo; mas acabou por
desembocar em textos híbridos, em que apenas se torna visível a
impotência do romancista, por um lado, e a incapacidade de
dominar a linguagem poética, por outro lado. Prefiro, por isso,
utilizar a memória da prosa em poemas em que o verso vai até aos
limites do versículo; ou em que o poema se assume como pequena
ficção, mantendo sempre o fecho perfeito que caracteriza o
último verso. Assim, se utilizei, e hoje muito mais raramente,
utilizo a prosa na escrita do poema, isso deve-se apenas à minha
necessidade de conservar esse valor da linguagem poética, não
abdicando de ultrapassar o limite do verso quando o poema o
exige.
FM
Já disseste em uma entrevista a Maria Augusta Silva que Portugal
se ressente da «falta de um pensamento, de uma reflexão sobre
nós». De que maneira têm contribuído poetas e artistas para a
manutenção ou erradicação dessa falta de reflexão?
NJ
Se não houvesse poesia, em Portugal, faltaria com efeito uma
componente essencial do que nos funda: um pensamento daquilo a
que se chama o “ser português”. É verdade, por outro lado, que
menosprezamos a nossa filosofia; e sem dúvida existem, nos
séculos XIX e XX, algumas obras importantes neste domínio – de
Antero a Pessoa, de Sampaio Bruno a Teixeira de Pascoaes, de
José Marinho a Agostinho da Silva, de Vergílio Ferreira a
Eduardo Lourenço. Mas muitos destes autores são, também, ou
sobretudo, criadores literários; e é na sua obra que se
encontra, mais até do que nos escritos propriamente filosóficos
ou reflexivos, essa teorização de um pensamento. Isso faz-nos
esquecer, muitas vezes, que existe esse pensamento; e que é
graças a isso que não corremos o risco de perder nem a nossa
identidade nem a nossa diferença no contexto da globalização.
FM
Acaso esta ausência de reflexão interna resultaria na falta de
percepção no tocante a uma maior aproximação com o Brasil? Claro
que me dirás que esta não percepção é mútua, e não haveria muito
no que discordar disto. Como explicá-la então nos dois âmbitos?
E graças a tua experiência numa esfera institucional, de que
maneira o assunto tem sido tratado?
NJ
Contrariamente à idéia de que somos um povo aberto ao mundo,
julgo pelo contrário que vivemos demasiado fechados sobre nós e
sobre a nossa estreita realidade. Mesmo quando saímos, levamos
conosco o bacalhau, o fado e a dose de saudade quanto baste para
não sermos tocados, a não ser superficialmente, pelas realidades
que descobrimos. O lado positivo encontra-se no Brasil, e na
mestiçagem de gênio e de cultura que desembocou nesse imenso
país. Mas foi um caso isolado, que não se reproduziu nem na
África nem na Ásia.
FM
Na mesma entrevista citada dizes que, no tocante à repercussão
européia de literatura brasileira, “os grandes nomes
desapareceram; novos estão a surgir, mas ainda não ganharam
projecção”. Vinculas esta repercussão apenas a uma questão de
oportunidade editorial, ou consideras também uma perda de
qualidade estética?
NJ
Procuro seguir, na medida do possível, o que se passa na poesia
brasileira contemporânea, e também na ficção. Admito, porém, que
o abismo que nos separa, decorrente da difícil divulgação do
livro brasileiro em Portugal (o contrário parece ser também
verdade), tal como das revistas literárias, nos dê uma imagem
fragmentada, elíptica, distorcida, dessa realidade. O que
referia, porém, era a falta de nomes de referência – como o
foram, no passado, Clarice Lispector, Guimarães Rosa,
Graciliano, Amado, ou na poesia Cecília Meireles, Drummond, João
Cabral, Murilo, Haroldo de Campos, entre outros. Esses nomes
ajudam a uma melhor transmissão dos mais novos, que vêm na sua
sequência; e a sua falta faz com que um Paulo Coelho se tenha
tornado o cometa imparável de uma nova literatura, infelizmente
centrada no conceito do best-seller e dos temas em voga.
FM
Em outra entrevista, desta feita concedida a Ana Marques Gastão,
dizes que te parece que em Portugal “a poesia funciona como um
substituto da filosofia», no sentido de que postula uma «outra
forma de aproximação do conhecimento”. Mas esta não pode ser
vista como uma característica em isolado da poesia portuguesa,
uma vez que se confunde com a grande busca da poesia em toda a
modernidade. Caberia aqui um aclaramento, pois.
NJ
Julgo ter já respondido, em parte, a esta questão. A poesia vem
responder a um vazio que decorre da ausência de uma filosofia
assumida como tal, isto é, com o aspecto de uma visão pessoal do
mundo e da vida que procura, de uma forma reflexiva e
individual, dar corpo a um modelo universal do comportamento
humano, e dar expressão, sob uma forma problemática e
equacionante, à resposta à interrogação sobre o que somos, e
qual o nosso destino. O que vemos, hoje, é que essa reflexão é
produzida sobretudo num quadro acadêmico. É uma linguagem de
iniciados, longe do ensaio que implica uma aventura e um
desafio, do ponto de vista do pensamento, e que obedece às
regras de como escrever uma tese, desembocando em textos em que
o rigor científico se alia a uma ausência sistemática de aposta
subjectiva. Exceptuo, como referi, Eduardo Lourenço, e mais
recentemente Fernando Gil, cujos estudos a partir de Bernardim
Ribeiro e de Fernando Pessoa (os primeiros em colaboração com
Helder Macedo) são do mais interessante que se tem produzido
nesse domínio. |