Nuno Rebocho – Um convivente goliardo moderno
Nicolau Saião
Muitos são os benefícios de viajar: a frescura que nos traz ao
espírito, ver e ouvir coisas maravilhosas, a delícia de
contemplar novos lugares, o encontro com novos amigos e o
aprender finas maneiras.
Muslih-din-Saadi
1.
Dizia Samuel Clemens (Mark Twain), também ele viajante e
cronista devido a decisão própria e, durante algum tempo,
viajeiro por profissão, que viajar era passear um sonho.
E acrescentou que a escrita que daí resulta passa a ser o sonho
transfigurado, com o seu território de realidades e de quimeras,
de minutos que se abriram para novas visões e novos pensamentos
e doravante perduram como relatos que nos ensinam e nos
maravilham.
Andar pelo mundo e pela vida e escrever sobre isso – pessoas,
coisas, sucessos da mais diversa ordem – não é fácil tarefa, é
preciso manter simultaneamente a inocência (temperada por alguma
malícia), a perspicácia e um enorme sangue-frio, pois sem aviso
as recordações apoderam-se de nós e como que nos obrigam a
passar para outra realidade, em geral extremamente sedutora mas
que nos enfeitiça com inexactidões involuntárias, filhas do
nosso mistério pessoal. Por isso Benjamin Disraeli dizia
avisadamente que “vi mais coisas do que as que recordo e
recordo mais coisas do que as que vi”. Todavia, a grande
solução consiste sempre em entrarmos generosamente na viagem,
sem temermos a multiplicação de experiências, até mesmo de
acasos, pois sabe-se que no final a escrita e seus interiores
meandros – se dispomos da adequada dose de sensatez criadora –
acabam por depurar, resolver e transfigurar aquilo que se viu,
se sentiu e se viveu, como que por uma brusca mutação que vem
não se sabe muito bem donde.
E depois há a memória que se convoca nos grandes momentos
de fecunda solidão, de fulgurante isolamento criativo em que
somos simultaneamente objecto e sujeito porque é por nós que
passa a organização do que significam realmente as
lembranças, do que foram efectivamente os perfis das gentes que
nos rodearam, os tempos reencontrados em que revivemos
uma conversa, um ritmo vital, um passeio, em que de repente
ressuscitam perplexidades e encantamentos, fragmentos de tempo
em que a nostalgia nos visitou sem que nos pudéssemos esquivar e
que logo a seguir assumimos peremptoriamente como um dos nossos
maiores bens.
A isto, creio, chama-se compreender. Porque por detrás de
toda a alegria difusa transportada numa evocação, ou em todo o
pequeno tremor que nos assalta ao termos a sensação de que
qualquer coisa nos abandonou, há sempre um rosto ou a ideia
de que por ali paira algo de humanizado e aonde se chegou
através de um olhar mais exacto, mais treinado pelos mundos onde
se esteve por destino e pelos universos que as deambulações nos
propiciaram.
2.
Já se sabe que a arte da crónica não é nem nunca foi uma arte
menor ou muito menos mero preâmbulo para qualquer coisa de maior
envergadura. Trata-se, com efeito, de um corpo inteiro
que se joga ali mesmo, nesse continente de luzes e sombras onde
crescem deuses e demónios inteiramente nascidos da realidade que
se forja com os factos arrolados e sua representação palpável.
Ou seja, uma poesia muito própria e sem sujeições a outras
escritas aparentemente de maior porte no arsenal do autor.
Cronista e ser convivente, o viajeiro de “Estravagários” – estas
crónicas belamente poéticas sobre o Alentejo real que os sonhos
perduráveis do autor encenaram – tem parentes perfeitamente
reconhecíveis, ainda que seja seu e muito próprio o estilo que
arrola entre o alinhavo jornalístico e o desalinhavo livresco.
São os amantes dos prazeres do espírito – e dos outros que
gostosamente passam pelo corpo e a que alguns, com certa dose de
leviandade, apelidam de transitórios ou baixamente materiais. Em
todas as evocações de NR se sente perpassar uma clara alegria de
viver, ainda que cifrada por alguma melancolia; donde o gosto
pela boa mesa, por exemplo, não se ausenta nunca – e repare-se
que aquela expressão vai no sentido lato. O espírito do lugar,
que é o das pessoas que o habitam, é bem palpável com todo o seu
manancial de coisas essenciais que vivem intensamente se
tivermos olhos para cheirar, ouvidos para ver e alma para
saborear. Nas crónicas de Nuno Rebocho, colega evidente de
Goldoni, Hazlitt, Cela ou Saroyan, sente-se que as pessoas que
recorda e os acontecimentos a que dá relevo não estão ali como
pretextos fantasmais para umas tantas laudas literatas, mas para
habitarem o quotidiano deste seduzido sedutor. Caldeados pelo
pormenor argutamente observado, pelo trecho recortado com
ironia, pela frase incisiva e mediada quantas vezes por uma
indisfarçável comoção, cobram vida relatos donde pode extrair-se
um perfume de passados finalmente refigurados e limpos da
escória que o tempo lhes fez adquirir, de coisas e de momentos
que se vão esquecendo e de outros que, embora existindo ainda na
hora que passa, irão ser pasto para esquecimentos futuros.
Com estas crónicas, onde freme um tom pessoal e que possuem
aquele sabor coloquial que a profissão do autor certifica e
esclarece, mediante a maneira peculiar onde se desenha a
sua aposta e o nosso privilégio Nuno Rebocho presta
inquestionável serviço à nossa convivencialidade humana e
cultural, à nossa memória específica de povo e ao nosso aprumo
de pessoas que querem lembrar o melhor e o mais alto. |