A dupla chama do canto de Olinda
Beja
Floriano
Martins
Crescer
com a terra, ir tocando sua história, tateando suas fontes de
permanência, mesclando a palavra à vida à sua volta, em sentido
único de celebração e entrega. “Tu que me dás amor nada receies
/ que eu velarei por ti a vida inteira”. Como no título deste
poema, sua autora, Olinda Beja, leva uma vida “sem receios”. Uma
bonita lição apanhada à árvore ancestral de seu povo, a África
de São Tomé e Príncipe entranhada nas festas populares, no
teatro mágico que a todo instante reanima as origens.
Nascida em
Guadalupe, em 1946, as suas raízes estão ali, na travessia que
sempre fez, indo e vindo no tempo e na memória,
não importam as prolongadas residências em Portugal e na Suíça.
Seu canto está impregnado pela doçura cadenciada que a terra
crioula lhe doou ao coração. Não somente o canto lido, mas
sobretudo a musicalidade que sopra de seu íntimo quando a
escutamos lendo seus poemas. Bem o faz Alda Espírito Santo, esta
imensa poeta, ao lembrar que "a poesia de Olinda Beja é o
reflexo de uma cadência da insularidade do seu eu circundante
para o povo ilhéu que a viu nascer e para os hemisférios do
mundo para onde a poetisa pretende fazer ressoar o timbre das
virtualidades de uma história colectiva”, logo concluindo que “o
que a mim me surpreende e encanta em Olinda Beja é a festa
orgíaca do seu encontro poético com a África e a terra natal
consubstanciados em apelos, que não se restringem apenas às
epopéias da negritude. Na exaltação às raízes, criticamente, a
voz poética se ergue em denúncia em busca de ouvidos receptivos
ao pulmão do continente na mira de um porto de abrigo.”
É verdade,
sim, que sua voz alcança uma extensão invulgar, e surpreende que
avance pelo território da narrativa e que o faça mantendo as
raízes do canto. Exemplo disto é o romance
15 dias de regresso
(2007), cuja trajetória - vertiginosa cronologia em suas duas
semanas de descida ao passado - é marcada por uma abastança
lírica, os ritmos que vêm da poesia em sintonia vibrante com o
dístico que recolhe a título de epígrafe: “Lembra-te que a manhã
rompe sempre”. Também o romance em Olinda Beja é uma experiência
poética, onde exaltação e denúncia, como bem recorda Alda
Espírito Santo, aliam-se para que a mensagem alcance seu rito de
passagem, que as imagens esvoaçem e a terra soletre suas dores e
alegrias em cada palavra. E esta é uma de suas notáveis
riquezas, valiosa contribuição de liberar um pouco a tradição
literária de seu país dos acordes sociais repetitivos, ao
enlaçar mito e realidade, em frenesi doce e selvagem, dedicado à
sua terra, para que esta também lhe saiba aceitar.
Uma orgia
de sons que são o batuque frenético de sentidos que nos escapam,
as entranhas de uma África que hoje parece perdida, violentada
ou torpemente folclorizada. A doçura com que canta: “preciso
apenas de escutar o som longínquo / do tam-tam do teu d'jambi
frenético e ansioso / para construir meu quixipá de andala e
utopia / como abelha tonta em redor da colméia”. Identidade do
fogo, com seu duplo poder de queimar e iluminar. Denúncia e
exaltação. Nisto radica sua permanência, no apego incansável às
múltiplas estações do ser, às manifestações inúmeras da errância
do homem sobre a terra, em uma só palavra:
santomensidão, ou
como ela mesma anuncia, a partir de seu neologismo: “o poema / é
a única rota que deixa sulcos no cais / imensurável dos nossos
atropelos”. De riqueza inigualável, pois, a envolvente melodia
de sua imaginação.
O caldo em
que banha ritos e mitos, o enlace com que multiplica a
inquietude, como vai buscar os vultos da infância, o encanto dos
trovadores, as vestes da tradição, o relicário do desejo,
afinidades com outras fontes líticas, tudo isto resplende como
invenção incansável quando comparecemos à leitura de
Aromas de Cajamanga,
portal por onde o Brasil passa finalmente a ter acesso à voz
desta notável poeta. E a ousadia com que indaga: “quem ficará
para ouvir histórias / e ouvir o vento / e ouvir o mar / quem
ficará?” Pois esta é também a inquietude que norteia a obra
plástica do brasileiro Sérgio Lucena, a quem convidamos para
fazer capa e ilustrações internas da presente edição. Olinda e
Sérgio, juntos neste livro, sabem como ninguém que língua
oferecer a quem os visite, que palavras, imagens, gestos ofertar
a quantos busquem uma margem invisível onde seja possível
alcançar a si mesmo. E juntos, na voz de Olinda, nos dizem:
“estou aqui como tu / borboleta tricolor que pousa no eco das
muralhas / e morre a ouvir histórias de um país calcinado”. |