Algumas
anotações sobre os eus de Pedro Henrique Saraiva Leão
Floriano Martins
Em
documento recuperado pelo jornalista Lira Neto, Antonio Girão
Barroso (1914-1990) refere-se a Pedro Henrique Saraiva Leão
(1938) como sendo “a mais nova (e alvissareira) revelação de
poeta em nossa terra”.
Uma avaliação atual tanto confirma a expectativa de Girão
Barroso quanto nos dá notícia de um poeta responsável por uma
freqüente renovação de nossa linguagem poética, ao menos no
sentido de haver rompido com uma atmosfera pouco urbana da
poesia cearense. Próximo a Girão Barroso em torno de uma
irreverência muito afeita à tradicional molecagem cearense, iria
suplantá-lo, no entanto, por haver-se desvencilhado de uma certa
retórica modernista.
É bom
lembrar aqui que estes dois poetas, ao lado de José Alcides
Pinto (1923), empreenderam aventura entusiasta, ao final dos
anos 50, em torno do concretismo, chegando a fundar uma sucursal
concreta em Fortaleza, cujo registro, embora polêmico, não
chegaria a influir na linha evolutiva da cultura local naquela
ocasião. Não guardam, contudo, maiores afinidades estéticas,
constituindo-se em três vozes distintas dentro do panorama da
literatura cearense. Pela própria abrangência de sua obra, não
está demais afirmar que José Alcides Pinto é poeta que
encontra-se à frente de seus pares, bastando aqui lembrar
palavras de Sérgio Lima, ao salientar que este poeta
“apresenta-se fora dos gêneros e suas compartimentações,
retóricas e de estilos, a igual da maioria dos poetas e/ou
artistas do Surrealismo, fazendo jus, portanto, a esse
verdadeiro transbordamento dos sentidos que propicia o ditado do
desejo e seu reino sem medidas”.
Quanto ao Girão Barroso, seu transbordamento lírico não alcançou
forma que melhor o definisse, no que discordo da crítica que vê
ali a ocorrência de um prosaísmo deliberado. Já o caso de
Saraiva Leão, distingue-se de seus dois companheiros de aventura
concretista justamente por haver insistido naquilo que
acertadamente Ivan Junqueira situa como “orgia abstrata da
poesia concreta”.
Não há
como deixar de referir-se aqui à conhecida acusação de Ferreira
Gullar ao apontar “a ingenuidade dos concretistas, ao se
atribuírem um super poder de alterar o cenário intelectual do
mundo civilizado”.
Se não o conseguiram no âmbito desejado, o fato é que podem ser
hoje acusados de uma criminosa distorção na leitura crítica de
autores como Mallarmé, cummings, Huidobro, Girondo,
contextualizando-os a partir de uma parcela de sua obra que lhes
interessava mais diretamente. São muitos os equívocos provocados
por tal desfocada leitura, sobretudo em um país que carece de
definições estéticas e conceituais, cuja cultura encontra-se em
um latente estado de alienação.
Se é certo
observar hoje que não houve o que o persistente equívoco de um
crítico como Assis Brasil situa em termos de uma “revolução da
poesia concreta” no Ceará,
é igualmente correto frisar o empenho de Saraiva Leão na busca
de uma linguagem claramente definida dentro de uma linha
construtivista, onde as formas primam por encontrar fundamento
em si mesmas. Poeta dimensionado por uma ampla visão de mundo,
seguramente tomou contato com a representação simbólica proposta
por Klee e Kandinsky. É bastante provável que suas relações com
José Alcides Pinto tenham ajudado a tecer os elos de ligação
entre Bauhaus e Surrealismo, sobretudo na expressão latente de
uma modernidade a ser definida como tal.
Diante de
tais aventuras, definiu-se a poesia de Pedro Henrique Saraiva
Leão por um traço auto-irônico, muito embora vagando entre uma
eloqüência lírica e um fulgor construtivista. Excessos de um
lado e outro como que impedem uma articulação melhor definida da
grande chave de sua poética. Possivelmente a melhor analogia que
se possa traçar, em âmbito nacional, seja com a poesia de um
contemporâneo seu, Sebastião Uchoa Leite (1935), sobretudo se
levarmos em conta estas palavras de João Alexandre
Barbosa acerca do poeta pernambucano: “entre a ordem e a
desordem o poema cria a ilusão da estabilidade, logo
ultrapassada pelo que há de instável na linguagem com que é
construído”.
Tanto em um caso como no outro os riscos conduzem ao território
de uma auto-ironia. Contudo, há distinções no tratamento das
maquinações estéticas.
Acerca de
Uchoa Leite, acertadamente define Antonio Carlos Secchin que,
“no afã de condensar, o recurso da alusão, por exemplo, acaba
sobrecarregando os textos”.
Ao contrário, distrai-se a poesia de Saraiva Leão na obsessão de
um “incerto acerto” de sua própria tessitura, desgastando-se na
própria armação (espacial) de sua dicção. Nos dois poetas, a
mesma técnica de fragmentação da linguagem. No entanto, se Uchoa
Leite consegue burlar-se a si mesmo, o mesmo não se dá
inteiramente com Saraiva Leão, cujo lirismo transbordante o
mantém ligado a uma corrente que define a criação artística como
essencialmente vinculada à memória.
Um dos
problemas cruciais da poesia de Saraiva Leão aqui já delineado é
justamente seu excesso construtivista, quase sempre aquém do
próprio universo significante. Neste sentido, vale observar uma
recorrência estilística descontextualizada em seu uso, como é o
caso da poética de cummings. Esquece-se o poeta cearense que os
ardis provocados pelo estado-unidense destinavam-se, como bem
definiu Octavio Paz, a “canalizar e purificar a matéria verbal”.
A tessitura formal de que se arvora alguns poemas de um livro
fundamental como o recente Meus eus (1994) denota uma
influência tardia, alheia a seu próprio raio de ação.
Além das
observações já aqui tecidas, é também necessário questionar o
pouco apreço crítico de que se reveste a poesia de Saraiva
Leão no âmbito da literatura cearense - que textualmente
comprova que a este poeta nunca foi dada sua devida importância.
Resumem-se todas as referências à sua aventura concretista,
alheias ao que possa eventualmente haver sobrevivido a uma
experiência tão datada quanto esta. Há tanto de concretismo em
Saraiva Leão quanto em Uchoa Leite. Diria que seus melhores
momentos são justamente aqueles que transcendem o raio limitador
desta corrente literária. No entanto, no que pese o desgaste de
suas “inclinações lúdicas”, encontro unicamente em Francisco
Carvalho uma referência a seus “momentos de perplexidade
metafísica”.
Trata-se aqui, com certeza, de evidência do pouco aparato
crítico de que dispomos para anotações em torno de algo que
ponha em cheque nossa visão acadêmica da evolução criativa da
linguagem poética.
Se
pensarmos em sua surpreendente estréia com 12 poemas em
inglês (1960) e seus desdobramentos em livros como Ilha
da canção (1983) e Poeróticos (1984), culminando no
já mencionado Meus eus, caracteriza-se a poesia de Pedro
Henrique Saraiva Leão como notável insurgência à acomodação
retórica que se tem observado nas últimas décadas de produção
poética em todo o país.
No que
pese sua paixão adolescente pela poesia concreta e as
apropriações descontextualizadas de cummings, não se insere,
contudo, naquilo que venho chamando de esgotamento da reflexão,
circunstância atual de nossa literatura que tem feito do poema
um desenho vazio de sentido, inteiramente desprovido de
expressão. Sabe Pedro Henrique Saraiva Leão que o desgaste de
uma obra poética é determinado tanto por seus abusos retóricos
quanto por seus maneirismos estéticos. Haverá sempre um abismo a
ser cruzado, sempre um risco a delinear nossa ação sobre o tempo
e sobre a página, visto que afinal a poesia é a soma de todas as
possibilidades do ser.
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