A viagem
incansável de Raul Bopp
Floriano Martins
Ao
se falar do gaúcho Raul Bopp (1898-1984) a referência comum é de
que tenha sido autor de um único livro, neste caso o largamente
conhecido Cobra Norato (1931). A razão central disto é o
profundo desconhecimento de sua obra por parte de todos nós,
brasileiros. A própria discussão estética a seu respeito é
bastante resumida, ressalvando três casos de maior latitude e
mais ampla visão crítica: estudos assinados por Américo Facó,
Othon Moacyr Garcia e Lígia Morrone Averbuck. Outro lugar-comum
é considerar idênticos em importância os livros Cobra Norato
e Macunaíma (1928), este último de Mário de Andrade. Se
há uma consonância temática, vista tanto a partir de uma paixão
amazônica quanto de uma obsessão nômade, há no mínimo que se
reconhecer que Raul Bopp resolveu estruturalmente melhor o
diálogo proposto com o enigma voraz das terras do sem-fim. Basta
lembrar uma observação de Murilo Mendes, ao dizer que Bopp
jamais caiu “nos exageros e preciosismos de Mário de Andrade”.
Já nos
disse Wilson Martins que “o Modernismo foi uma escola ambulante
e perambulante, fascinado pela descoberta geográfica e medusado
pela descoberta cronológica”. Contudo, diversas são as razões
desse fascínio. Vão do exibicionismo de um Oswald de Andrade à
aventura anímica de um Raul Bopp. O fato é que desse entrecorte
de viagens seguramente a poesia de Bopp nos dá uma dimensão
poética mais ampla do que aquela encontrada nos versos de Mário
e Oswald. A dificuldade maior em colocar tais assuntos à mesa é
que os mesmos estão sempre assistidos por uma série de
prerrogativas acerca de um supostamente inquestionável valor dos
capitães de nosso Modernismo.
Surge
agora uma edição da Poesia Completa de Raul Bopp (1998),
que traz organização e comentários assinados por Augusto Massi.
O livro reúne, além da poesia, uma breve cronologia, uma fortuna
crítica e um estudo introdutório, além de valiosa iconografia. O
texto que abre o livro Massi o inicia indagando sobre os
obstáculos na recepção e conhecimento “mais amplo” da obra de
Raul Bopp, para conclui-lo, páginas após, com a hipótese de que
tal obra “nos transmite uma experiência da viagem e do diálogo à
qual não temos mais acesso, anestesiados pelo excesso de turismo
e comunicação”. Creio que há aí um deslocamento de pertinências.
E basta observar alguns dados fornecidos pelo próprio Massi no
decorrer de seu estudo, sobretudo nos momentos em que se refere
a aspectos como profusão imagética (“Está mais próximo da
linhagem onírica dos surrealistas do que das técnicas de
montagem e corte cubo-construtivistas praticadas por Oswald e
Cabral”) e acento estilístico (“A contrapelo da lírica moderna
brasileira, em Bopp praticamente inexiste veio confessional ou
discurso autobiográfico”).
No âmbito
do Surrealismo, o próprio Bopp referiu-se, em conferência datada
em 1944, à “frescura primitiva” do que ele chamava de
“surrealismo brasileiro”. A seu tempo, observou muito bem Lígia
Averbuck: “Como em todos os processos surrealistas, ao
proscrever a retórica usual, sua escritura mostra as coisas na
sua nudez perturbadora e no impacto subversivo de sua verdade”.
Quanto ao confessionalismo, Bopp é primoroso ao salientar o
“lirismo bojudo do poeta [Augusto Frederico] Schmidt” na carta a
Jorge Amado e Carlos Echenique, que funciona como prólogo à
única edição de Urucungo (1932).
Creio
então que estes aspectos todos que constituem a identidade da
obra de Raul Bopp, na verdade a identidade incontestável de seu
próprio autor, são suficientes para um mínimo de deslocamento ou
folclorização da importância de sua dimensão poética. Além
disto, temos algumas leituras discutíveis, tanto no tocante ao
vínculo com uma saga indianista quanto à influência exacerbada
do Futurismo. Na fortuna crítica recolhida por Augusto Massi há
referências a uma identificação de sua poética com a de
Gonçalves Dias, em menções vindas de Oswald e Carlos Drummond de
Andrade. Por sua vez, no livro A escrituração da escrita
(1996), Gilberto Mendonça Teles observa que “mesmo num poema de
cunho nacional como Cobra Norato […] encontramos a
locomotiva futurista metamorfoseada no mito indígena da ‘cobra
grande’, na região amazônica”.
Temos aí
dois exemplos de uma leitura distorcida que sofreu a obra
poética de Raul Bopp. Wilson Martins chega a dizer que Cobra
Norato “tem o valor exemplar de fechar o ciclo da poesia
indianista no interior do Modernismo”. Bopp disse haver
procurado um “verso novo que captasse uma linguagem nova, que
rompesse com o procedimento formal do verso”. Isto quer dizer
que buscou a invenção a partir de uma identificação. Seu
nomandismo não era de gabinete, assim como, ao contrário de
Gonçalves Dias, não emprestou sua voz à agonia alheia. Não lhe
interessou jamais uma mitificação de sua própria voz. Sequer há
traços indianistas em sua poética, exceto se compreendermos o
diálogo com um determinado imaginário como sua entranhável
submissão ao mesmo.
Idêntica
impertinência registra-se na acima citada afirmação de Mendonça
Teles. Primeiro porque Cobra Norato não se trata de um
poema de cunho nacional e sim poético. Além disto, a retórica
trocadilhesca do crítico goiano habitualmente tolda sua leitura
estética em torno de inúmeros assuntos. Não bastasse o fato da
cobra ser anterior ao trem, há toda uma mitologia em torno do
erotismo que ultrapassa os domínios da mera masturbação proposta
pelo Futurismo. Por sinal, vale lembrar que o trem jamais
dividiu o Brasil em dois meridianos, como anunciava Oswald. Há
portanto uma dupla ingenuidade, de ordem indianista e futurista,
no tocante à poesia de Raul Bopp.
O que
parece haver perseguido Raul Bopp foi uma realocação do eu
poético. Por sua natureza nômade, buscou fundir ao verso uma
amplitude de deslocamento, um movimento cortante. Basta ler o
estudo de Othon Moacyr Garcia, que se preocupa antes com sua
poesia em si e não com os artifícios literários. O acento
estilístico de Bopp radica na ampla utilização de perífrases e
na presença constante de gerúndios e diminutivos inusuais. Além
disto, não deixou nunca de apontar as fontes. Vinham
inicialmente do Simbolismo de sua adolescência,
consubstanciando-se na descoberta de textos como os recolhidos
por Antonio Brandão de Amorim, em 1916, para uma edição da
Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro
acerca dos mitos e lendas do Amazonas. Ele próprio disse, ao
referir-se a uma leitura do “espírito da selva”, haver percebido
ali “as profundas vibrações num clima surrealista”.
É curioso
observar, após a leitura combinada de todos os poemas de Bopp,
incluindo suas incansáveis versões, que aquela referência
inicial, ou seja, de que se trata de um autor de um único livro,
no caso Cobra Norato, possui algo de verídico. Não digo
isto em um sentido redutor, mas antes atento ao fato de que sua
poética já estava constituída desde as anotações primárias. Toda
a grandeza de seu erotismo, da corporificação do mito, sua
ambição anímica, a preciosidade de seus jogos de associação de
linguagem, a originalidade imagética, tudo, já havia antes e
pouco desdobrou-se após a escritura de Cobra Norato. No
entanto, há que lembrar um outro aspecto: Bopp esteve
incansavelmente a reescrever seus poemas. Tudo isto fundamenta
sua idéia de um mundo em perene formação. Claro, coincidia com
alguns padrões de movimento propostos pelas vanguardas na
segunda década deste século, porém sem a intenção burocrática
das mesmas. Não quis fundar nenhum novo indianismo e mesmo seu
vínculo com a antropofagia buscava justamente uma discussão em
torno da priorização de uma sintaxe sobre as demais.
Digno de
elogio, conclua-se, é o empenho de Augusto Massi pela recolha da
obra poética de Raul Bopp. Seu trabalho de recuperação dos
poemas é notável. Anota as diversas versões que tiveram a maior
parte dos poemas de Bopp, por vezes reproduzindo, em notas ao
final de cada capítulo, a versão original de alguns desses
poemas, como são exemplos todos aqueles que constituem o livro
Urucungo. Ao mesmo tempo, o livro deixa a desejar no
tocante à montagem da fortuna crítica, assim como não propõe
nenhuma discussão mais aprofundada em torno deste importante
escritor brasileiro. Acrescente-se, como ilustração final, que a
obra de Raul Bopp é constituída pela poesia - na verdade
Cobra Norato, Urucungo e poemas esparsos reunidos
pelo autor em Putirum (1969) - e uma seqüência mais
extensa de prosa crítica (ensaios, entrevistas, anotações
memorialistas). Neste segundo segmento encontramos as razões
necessárias à compreensão de sua estética e de seus vínculos com
o Modernismo. |