Roberto
Piva, sem perder o samba
Floriano Martins
Roberto
Piva quase sempre em sua vida foi um poeta, como ele próprio
disse um dia, marginalizado. Mesmo quando o elegeram um dos
marginais da poesia brasileira, pela inclusão na antologia de
Heloísa Buarque de Holanda, ou mesmo agora, mais recentemente,
quando da publicação de sua poesia completa em valioso projeto
editorial. Um marginalizado sob muitos aspectos, por suas
estranhas imagens corrosivas, pelas ações por muitos acreditadas
como virulentas, pela multiplicidade voraz dos registros de sua
poética – sobretudo por incompreensão e preconceito.
Poeta
desprezado e cultuado com talvez idêntico grau de cegueira.
Situado pela crítica em um labirinto de afinidades que não
ultrapassa os lares da literatura e das artes plásticas. Embora
correta a leitura de suas declaradas conexões com tais áreas,
resta sempre esquecida a paixão essencial e não menos influente
em sua vida que constitui a música. O próprio poeta nos dá
inúmeras pistas, que vão do rock ao jazz, de Carl Orff aos
tambores do candomblé, passando pelo samba-canção e o
experimentalismo de John Cage.
Roberto
Piva é um raro poeta brasileiro em profunda sintonia com a
música, o que inclui a canção popular, em que um dos exemplos é
o rock lancinante de Jim Morrison, o poeta compositor, figura
emblemática da banda The Doors, mas não somente ele e sim toda
uma geração lisérgica, com Brian Jones, John Lennon, Keith Moon,
conexão que Piva soube filtrar juntamente com os momentos mais
agudos da Beat Generation, sem se deixar apanhar ou adotar por
núcleo algum, ao mesmo tempo, ele, parte de todos e nenhum.
Pensemos
em Jim Morrison. Quando escutamos em Strange days o verso
we shall go on playing or find a new town, ali está
presente Piva com a São Paulo que soube desentranhar como uma
alucinação que toca o fim do mundo e as cidades sem limites
que ele evoca em seus poemas. Morrison com quem também dialoga
na poesia, como sugerem as imagens de An american prayer,
tanto em celebrate symbols from deep eider forests como
we’re trying for something that’s already, found us. Em
todos os sentidos coincide com a voz de Morrison ao dizer que a
música lhe acende o instinto. A música ali está em Piva, não
apenas como referência culta, como fonte de registros para um
diálogo poético, mas também como parte essencial do cenário de
suas tramas, presente também na vida de seus personagens, no
Barney Kessel que ele próprio escuta ao escrever um poema, nos
violinos enfadonhos que compõem a paisagem de Os
escorpiões do sol, no porno-samba que dedica ao
Marquês de Sade ou ainda no batuque dos tambores com que ele
próprio se faz acompanhar ao ler sua poesia.
A imagem,
a metáfora, a extravagância, a tempestade orgíaca com que povoa
suas cidades-poemas, nada faz sentido longe do espaço cósmico
samba-canção do nada, longe do tambor do xamã, longe
do piano ocidental que Dante afinou no buraco ameno do
purgatório, infinidade de notas que semeia nos ouvidos de
entidades, deuses, demônios, querubins, garotos perversos,
sempre queimando na própria pele de seus escritos estas palavras
seminais: o mundo vive na partitura sublinhada do meu sangue
o seu único esplendor. Sem música não há Roberto Piva.
Seriam insuficientes as pontes que ergue entre o poético e o
plástico, entre Guimarães Rosa e Di Chirico, entre as ruas que
bebe com seus garotos e os cancros que denuncia na lírica de seu
país. A riqueza brasileira que adverte em seus versos ganha
força incessante no ritmo das linhas cortadas, na afinação de
referências aparentemente díspares entre si, como uma
gafieira de abismos volumosos, tornando sua poesia o que ele
próprio define como um samba turbulento, o samba da
luminosa escuridão de Osíris, Piva no batuque de vísceras,
Sun Ra e maracatu, jazz e forró nuclear, Nelson
Cavaquinho e carnaval de rua.
O poeta
que deu ritmo frenético à poesia, revelando uma fonte de prazer
orgíaco que é a própria matriz de cantares, evocação de deuses,
festa cósmica e entrada na matéria da vida com suas estações de
erros e delírios. A poesia dança com ele em sua partitura
errante. Roberto Piva com sua macumba de sons e um samba
temperando as tripas de seu mergulho na existência.
Absolutamente música & longe de limitar-se a ela.
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