Roberto
Piva: poesia e crime ou blasfêmias eróticas heróicas &
assassinas
Ricardo
Mendes Mattos
E se o
estupro, o veneno, o incêndio e a punhalada,
Não puderam
bordar com seus curiosos planos
A trama banal
vã dos destinos humanos,
É que nossa
alma enfim não é bastante ousada.
Baudelaire, Flores do Mal
Vede os bons
e justos! Quem eles odeiam mais? Aquele que quebra suas tábuas
de valores, o quebrador, o infrator: - mas este é o criador.
Nietzsche, Assim Falou Zaratustra
1. Roberto
Piva é direto: a palavra criminal é um princípio básico para se
entender sua poesia. Sua poética exala o crime. Por ela ferve um
turbilhão assaltos, assassinatos, estupros, incêndios… ora com
feições cruéis, em que cabeças são decepadas, em meio a
flagelações… ora como perversões sexuais, à exemplo do oblato
com sexo arrancado… ou mesmo em rituais com feições pagãs, no
qual garotos são castrados. Seus personagens são vadios,
delinqüentes, assassinos, tendo poema dedicado a “todos os
garotos rebeldes & depravados”. [1]
Não é apenas
a poesia que relata o crime, é poesia feita por criminoso!
Em entrevista
concedida a Floriano Martins, o poeta paulistano vocifera seu
desejo de se dedicar ao crime, andando armado pela cidade de São
Paulo, no final da década de 50. Prisão por incêndios,
vandalismo e outras depredações. Em outra ocasião volta a
afirmar: “Quando era adolescente, eu era um delinqüente. Era uma
pessoa que vivia absolutamente dedicada às festas, brigas,
drogas, e foi muito natural perceber que era dali que se fazia a
poesia”. [2]
O
poeta-delinqüente é claro: sua poesia nasce do crime: “O
problema é que eu não consegui ser gângster. Então acabei
escrevendo poesia, que é uma forma de incentivar o
gangsterismo”. [3]
Ora, aqui
temos uma relação indissociável entre poesia e crime. É poesia
sobre crime, escrita por um delinqüente, cuja força é de
apologia ao crime, incitação à transgressão de qualquer ordem,
lei ou convenção social. A poesia mesma é crime. Não se trata de
exagero, pois o próprio Piva destaca: “Uma poesia cuja
transgressão aponta, em última instância, para o crime, e para a
anarquia generalizada”. [4]
O
poeta-bandido procura a desorganização da vida, a instituição da
desordem, a abertura violenta de brechas na realidade pelas
quais a afirmação da vida subversiva possa jorrar.
Quais os
sentidos do crime na poética de Piva? Com tal enigma tento
aliciar o leitor para fazer-se cúmplice e percorrer o emaranhado
de vielas e becos, onde viceja a vida transgressora na poética
de Roberto Piva. Nesses subterrâneos encontraremos outros
comparsas com os quais Piva foi iniciado na poética criminosa.
Encontrando leitores tão audaciosos quanto o poeta, podemos ser
até enquadrados no crime de formação de quadrilha!
2. Do delírio ao delito.
A história da poesia moderna é a história do poeta contra a
sociedade. Considerado louco, miserável, perigoso e criminoso,
ele é o solitário desesperado que atenta contra toda ordem
social.
Piva rememora
esta relação desde a consolidação da aliança da moral, da razão
e da verdade, com os decadentes Sócrates e Platão, no triste
advento da sociedade ocidental. Toda a força da tragédia, a vida
como obra de arte na afirmação da existência como fenômeno
estético, é substituída pela fraqueza da ética que domestica os
instintos humanos mais espontâneos. O poeta como mestre da
verdade, o louco possuído pelos deuses em seus delírios poéticos
é excluído da República e o Delírio eliminado da teoria do
conhecimento. Poetar é agora perigoso: o delírio é delito. A
poética de Piva é crivada por esse corte, assim como pelo
renascimento da tragédia e a hemoptise do espírito dionisíaco no
mundo.
3. Poesia e possessão.
O impacto da poética de Dante Aliguieri (1265-1321) foi tão
grande em Piva que chegou a dizer: “Eu talvez não seja nada mais
do que um personagem do Inferno de Dante, que saltou fora
da obra para deixar a realidade em completa desordem”. [5]
O poeta
punido com o desterro, em suas andanças entre os apaixonantes
personagens do Inferno, encontra toda a sorte de criminosos:
avaros, hereges, ladrões, assassinos, sodomitas, suicidas,
falsários, traidores, bruxos, semeadores de discórdia, etc.. No
olor estonteante, no suor das quentes fornalhas do Inferno sem
esperança, estava Vanni Fucci, ladrão de Igrejas, que prediz em
versos trágicos a derrota dos correligionários políticos de
Dante.
Ao falar
sobre sua poética, o poeta-blasfemo versa: “O assassinato também
pode ser a ordem do dia. A blasfêmia e o roubo. Veja o episódio
Vanni Fucci no Inferno de Dante. Gíria da pesada de malandro
medieval. Mimetismo. Para uma estética [ou literatura] da
crueldade”. [6]
Poesia,
blasfêmia, roubo e vidência. Heresia e magia. Crime como
manifestação política. Mimetismo. Piva se apropria do
personagem: toma-o para si, assalta sua identidade. Se o poeta
começa sua trajetória como louco possuído por deuses, aqui age
como possuidor, usurpador de personagens.
Eis aqui a
diferença crucial entre os poetas. Se Dante caminha por amor,
rumo ao Paraíso, se apiedando dos personagens do Inferno, Piva
encarna-os: se faz um deles. Se Dante conduziu Piva ao centro do
turbilhão de criminosos, deixou-o lá, solitário e desesperado.
Ele não continua a trajetória do florentino ao Purgatório e
Paraíso. Sua Beatriz foi esfaqueada num beco escuro. Piva faz
poesia para o crime, não sobre ele. Nesse movimento, o próprio
poeta faz-se criminoso. É com Villon que ele faz conluio.
4. Vilanias de Villon.
François Villon (1431-1463?): primeiro poeta maldito. Órfão
entregue aos cuidados eclesiásticos, filho de prostituta. Rasgou
com seu punhal as vísceras dos poetas-bobos-da-corte e
marionetes dos mecenas. Perdeu todas as proteções eclesiásticas
e régias, em virtude de seu modo de vida transgressor, traduzido
em uma poesia satírica. A partir daí Villon não mais vende sua
arte ao mecenas: bate sua carteira!
Posso vê-lo,
ferido nos lábios pela adaga o inimigo, vagabundeando errante
nas tabernas, prostíbulos, a procura de uma trapaça qualquer que
lhe renda algum trocado. Envolvendo-se em brigas, como aquela na
qual matou um sacerdote. Manipulava a pena com tanta habilidade
como seu punhal, praticando a poesia e o crime com a mesma
vivacidade. Ao poeta a prisão, a tortura, o desterro, a
condenação à forca. Poesia como sinônimo de perigo social.
Suas baladas
ridicularizam as autoridades civis e religiosas, com tanto
sarcasmo quanto descrevem cenas eróticas com sugestivas
devassidões. Poesia aqui tem ares de um crime dos mais
audaciosos e refinados. Mas as Baladas do bandido ainda são
devotas, com pedidos de perdão a Deus e demais rebanhices
cristãs – mesmo considerando a época em que foram escritas, sem
qualquer anacronismo. Perto da poesia de Piva, as Baladas de
Villon são arrependimentos em confessionário. O crime em Piva é
essencialmente blasfemo. É no fervor da carne orgiástica que
Piva prefere inscrever sua delinqüência. É uma poética erótica.
Crime, poesia e erotismo: elementos bolinados pelo sádico
marquês.
5. Poesia e apologia ao crime.
Coxas
pode ser lido como um diálogo com Marquês de Sade (1740-1814).
Ou melhor: uma orgia com Sade. Nele a transgressão é
indissociável da livre expressão sexual. Liberdade total dos
instintos mais selvagens, culminando em crueldades exibidas sem
quaisquer freios. A tribo “Osso & Liberdade”, com suas
“blasfêmias eróticas heróicas & assassinas”, é uma experiência
contemporânea da Sociedade dos Amigos do Crime, criada pelo
marquês.
Se o verbo
poético de Piva delira em seu homoerotismo marginal, o Marquês
de Sade se presta a fundamentadas argumentações filosóficas
entre uma suruba e outra. Para ele as irrefreáveis leis da
Natureza imprimem no ser humano o império dos desejos, a
efervescência de instintos incontroláveis. Fazendo tudo o que
deseja, gozando todas as paixões, o homem não faz senão
responder à sua natureza mais essencial. Quaisquer leis ou
convenções sociais contrárias a tais desejos não respondem à
natureza humana e não devem ser obedecidas. Daí o crime ser uma
designação que os “tolos” utilizam para repreender as ações
humanas que mais aproximam o homem de seu destino selvagem. Em
verdadeiros manifestos políticos distribuídos aos cidadãos
republicanos, assim como no estatuto da Sociedade dos Amigos do
Crime, Sade defende uma vida coletiva sem leis e sem regulação
pela moral cristã.
Se Dante
descreve e classifica os crimes em três categorias (contra Deus,
o próximo e contra si mesmo), Sade se utiliza dessa mesma
classificação para legitimar um a um, com astutas e audaciosas
citações filosóficas, históricas e antropológicas. Clara
apologia ao crime, incitação mesmo do ato delituoso, defendendo
a liberdade de sodomia, adultério, incesto, roubo, suicídio e
assassínio.
Tal visão é
marcada pelo extremo desprezo pela vida humana, especialmente
pela prepotência do homem em ser o senhor do Universo, quando
não passa de um elemento bastante dispensável diante da força da
Natureza. Essa crítica severa ao antropocentrismo e toda a
tradição humanista influenciou Piva, também por intermédio de
Lautreamont e Nietzsche, como veremos adiante.
A entrega a
todas as volúpias e deleites, a livre expressão de todos os atos
sem quaisquer idéias de “leis” ou “crimes”, encontra ressonância
em toda poética de Piva, bem como em alguns posicionamentos
políticos: “A única forma de salvar o planeta é a selvagização
de novo”. [7] Neste estado selvagem, pode apostar que o
erotismo como transgressão ocupa lugar central, tal como em sua
idéia de “golpe de estado erótico”, protagonizado por todos
poetas, loucos, foras da lei, drogados e rebeldes.
Distante do
antropocentrismo, da moral cristã e das leis sociais, sua
poética junta sexualidade e violência como cerne da relação
humana que busca exprimir toda sua vitalidade: “minha poesia
sempre consistiu num verdadeiro ATO SEXUAL, isto é, numa
AGRESSÃO cujo propósito é a mais íntima das uniões”. [8]
6. Crime como obra de arte.
Ainda em Coxas o poeta-selvagem cita a célebre
publicação do comedor de ópio Thomas de Quincey (1785-1859): “O
assassinato considerado como uma das belas-artes” (1827). O
grande deambulador vagabundo observa que os registros da
imprensa sobre homicídios revelam a enorme criatividade dos
assassinos, comparada a de grandes pintores e poetas. Com
características de seguidores de Sade, havia um clube de
aristocratas dedicados ao prazer do crime. Reunidos se
extasiavam em narrar os crimes que cometeram, com suas
circunstâncias e premeditações, gerando grande efusão quando os
mais originais eram considerados como obra de arte.
Se poesia e
vida são parte de um mesmo ato subversivo de amor e liberdade,
aqui a beleza do crime prescinde da poesia. O próprio delito é
belo. A poesia como crime mostra seu avesso: o crime é poético.
7. O criminoso no centro da criação poética na rebelião romântica.
Na
aurora do romantismo, o impulso antiautoritário vocifera sua
fúria na peça “Os Salteadores”, escrita pelo jovem Schiller
(1759-1805), então com 18 anos. O delinqüente juvenil Karl Moor,
misto de ladrão e herói a lá Robin Hood, exalta a liberdade
individual contra as convenções sociais. Encenada em 1782, a
peça foi um marco da rebelião romântica, arrancando gritos
selvagens da platéia, precipitando desmaios e intenso furor. Seu
autor foi punido com prisão e proibição de escrever.
Aqui há uma
ruptura da qual Piva é visceralmente continuador. O repúdio ao
classicismo com a figura do artista de gabinete que cultua a
virtude moral nos marcos de uma cultura conservadora. Uma arte
cerebral, impregnada dos bons costumes e do bom senso, limitada
no equilíbrio e harmonia da presunçosa razão. É o poeta que não
caiu na vida, o brocha, a favor do instinto de morte, submetido
aos leões de chácara da cultura e freqüentador do chá das cinco,
que tanto Piva satiriza. A eles o poeta-bruxo responde com
agressividade: precisamos de poetas perseguidos pela polícia!
Com o
romantismo, o poeta deixa de se ajoelhar à ordem estabelecida,
comprazendo-se com o elemento perturbador, que cinde, fragmenta,
desconcerta. O desajustado, o louco, o selvagem passam a ocupar
o centro da atividade artística. Em detrimento do bem comum sob
qualquer bandeira coletivista, surge a erupção violenta dos
desejos individuais. A rebelião romântica foi criada pelo
sujeito subversivo. A desodebiência incentivada, a ilegalidade
exaltada foram marcos de uma poética com feições libertárias.
Não era já o crime no centro da criação poética?
8. Corpo elétrico possuído por todos os fora da lei.
O jovem
pederasta gingando seu corpo ágil em meio à multidão citadina. A
fusão com todos os desvalidos, rejeitados e criminosos. Ao final
da perambulação, deita suas barbas longas nas folhas de relva,
dissolvido na natureza, com seu corpo elétrico entregue ao amor
com qualquer desconhecido. Whitman (1819-1892) e sua
cumplicidade com os marginais: “Nenhum
pivete é preso por roubo sem que eu o acompanhe, e seja julgado
e / condenado”. [9]
A poesia
aberta às vozes proibidas, como receptáculo de toda sorte de
sujeitos que a sociedade se esforça por esconder e eliminar.
Esta mesma cumplicidade se torna aguda em Piva:
“Resumirei para Ti a minha história: / Venho aos trambolhões
pelos séculos, / Encarno todos os fora da lei e todos os
desajustados, / Não existe um gangster juvenil preso por roubo e
nenhum louco sexual que eu / não acompanhe para ser julgado e
condenado”. [10]
Percebam:
trata-se de Piva em sua primeira publicação individual, uma
longa tira de papel distribuída nos bares de São Paulo,
intitulada “Ode a Fernando Pessoa” (1961). Aqui, antes de
manifestações similares da arte e criminalidade/marginalidade,
característica da década de 1960, o poeta já tem delineadas as
linhas orientadoras de sua poética de desorientação.
Além de
Whitman, a Ode embarca Piva no cruel convés dos piratas
de Álvaro de Campos-Fernando Pessoa (1888-1935). Sua cópula
criminal, na batida violenta de espuma e fúria, esparrama
saques, estupros, violações e demais atrocidades. O poeta-pirata
desbravou com estes césares do mar, os recônditos do “ilegal
unido ao feroz”.
9. Poesia roubada: criação como apropriação indébita.
Os Cantos de Maldoror e a “santidade do crime”. O horror de perversidades e
depravações como expressão do ódio inveterado à humanidade e sua
moral. A poética criminosa que atrela criação, loucura e maldade
de maneira inaudita. É possuído por Isidore Ducasse (1846-1870)
que Piva escreve esta atrocidade: “as nuvens coçavam os bigodes
enquanto masturbavas colérico sobre o / cadáver ainda quente de
tua filha menor”. [11]
O criminoso
como dotado de um “poder superior” se traduz pela monstruosa
metamorfose de todos elementos rumo ao caos. A mesma metamorfose
se opera em várias direções, coabitando o mesmo núcleo: o crime
que subverte a ordem, ao lado da loucura que se apossa do poeta,
vinculada à subversão da própria linguagem.
Lautreamont
expande a afirmação da poética do crime como subversão do real
pela poesia. O crime é criação com o roubo, o plágio, a perversa
paródia de textos e frases de outros autores. A criação poética
é crime autoral. São deliberados furtos de textos, inversão de
enunciados e mesmo falsificação de passagens consagradas,
criando um sentido novo: metamorfoseado e inusitado.
O estudo da
intertextualidade em Piva é um grande enigma, entrevisto por
diversos estudiosos (vide Cláudio Willer e Marcelo Antonio
Milaré Veronese, por exemplo). Vários versos são apropriados de
outros autores, com acréscimos de sentidos ou mesmo expansão de
criações, como a passagem acima de Whitman-Piva. Não seria
novamente o crime como motor da criação poética que move Piva,
grandemente influenciado por este Anjo Negro que revolucionou a
criação poética? Ou o poeta ladrão encarna com tanta vivacidade
o que lê, transforma com tanto vigor a letra em sangue, que já
não se sabe bem quem é seu verdadeiro autor? Ou seria, por fim,
como Lautreamont: sinal da derrocada da autoria individual, o
assassinato do autor?
10. Vidência do grande criminoso: tempo dos assassinos.
O grande
vagabundo do Oriente, aventureiro do paradoxo, caminhando em
andrajos no meio de mendigos, entre abissais porres de absinto.
O multiplicador do desconhecido, em seu elemento mais natural: o
escândalo - como aquele em que recebe tiro de Verlaine, em uma
de suas discussões amorosas.
Há poucos
poetas como Rimbaud (1854-1891) que conseguiram criar uma poesia
tão original e sistematizá-la em método/sistema tão explícito.
Em sua famosa passagem sobre o desregramento de todos os
sentidos, muito referenciada por Piva, acrescenta: o poeta “se
torna entre todos o grande doente, o grande criminoso, o grande
maldito – e o supremo Sábio!”.
Estes são os
toques do inferno que Piva perseguiu em toda sua criação: “O
poeta é o violador da língua, das leis, dos comportamentos
estereotipados. É o grande doente e cheio de saúde ao mesmo
tempo, anunciador de tempestades, ladrão de fogo celeste e
aliado dos deuses, bandidos, bandido, bruxo, bêbado, drogado
pelo ‘espírito santo’, companheiro de farras do Satã,
onipotente, eterno adolescente, macho/fêmea, vidente e grande
desequilibrado”. [12]
Sua alquimia
do verbo, a sagração da desordem de seu espírito, era já a
disseminação da desordem no espírito de seu tempo. Era já o
tempo dos assassinos.
11. Poética pagã: ave de rapina que semeia discórdia.
O jovem Piva
precipitado no abismo. Estupefato e febril. Esta é sua descrição
da leitura de Genealogia da Moral. A tresvaloração de
todos os valores, enxergando com desconfiança tudo o que se
considerava bom e enobrecendo instintos dantes tidos como
malditos. Piva foi acometido por um profundo impacto: os duros
golpes da filosofia do martelo consolidaram no abrasado poeta
sua força e intensidade. Sua vontade de poder, o paganismo para
além do bem e do mal, sua poética do prazer no destruir. Aqui
também a infração no centro da criação, o assassinato necessário
para o nascimento do novo: “Viver é… ser continuamente
assassino?”, indaga Nietzsche.
A perspectiva
histórica de Nietzsche (1844-1900) a tudo vira do avesso. O
bem-estar, a igualdade, o bem comum e grande parte do que é tido
como “bom” passa a ser visto como vergonhoso e desprezível: é a
moral do escravo, da negação da vida, que reduz o homem ao ser
domesticado e civilizado.
Em detrimento
da moral do escravo, Nietzsche afirma a moral do senhor: o
guerreiro, ativo, audacioso e violento. Seu símbolo é a ave de
rapina, que vadia selvagem, rebelde, livre e nômade. Por onde
passava deixava seus rastros vorazes de “assassínios, incêndios,
violações e torturas”. Mergulhada na aventura, esta estirpe de
homens nobres gozavam a vida em terrível intensidade e volúpia,
dedicando-se a festas e danças, venerando os deuses pagãos que
fortaleciam sua liberdade. É a “violência de artistas”: o ato
espontâneo de criação furiosa advinda desse instinto de
liberdade.
Diante do
infrator, os operadores da lei se mostram tacanhos: “Raramente
os advogados de um criminoso são artistas o bastante para
reverter a seu favor o belo horror do seu ato”. [13]
Certa feita,
Piva perguntou ao filósofo e amigo Vicente Ferreira da Silva
sobre quais os resquícios atuais do mundo pagão, dada nossa
dificuldade de sequer olhar de soslaio para esse universo.
Vicente respondeu: o erotismo e o carnaval, ao que Piva
acrescentou: no candomblé (vide filme Assombração Urbana,
direção de Valesca Dios). Hoje podemos sem dúvida colocar na
lista a poética pagã de Piva: “Molha a alma no sangue da
rebelião / volta a adorar os deuses semeadores de discórdias”. [14]
12. Metralhadora em estado de graça.
Breton mune a
metralhadora: “O ato surrealista mais simples consiste em sair à
rua empunhando revólveres e atirar a esmo, tanto quanto for
possível, contra a multidão”. [15] Piva dispara: “Eu sou
uma metralhadora em / estado de graça”. [16]
Se não é o
medo da loucura que fará o surrealista hastear a meio-pau a
bandeira da imaginação – Artaud que o diga! - não é o medo da
prisão que o fará hastear a bandeira da agressividade a
meio-pau. Roberto Piva respondeu à altura a incitação
surrealista da intensidade da vida sob a forma da violência. Sua
bandeira não mais tremulou no mastro, mas extrapolou-o, vadeando
solta pelo ar tal como aquele papagaio empinado pelo adolescente
moreno e antropofágico.
Mas,
parafraseando o Segundo Manifesto Surrealista, Piva também
escreve: “em matéria de revolta eu não preciso de antepassados”.
[17] É assim que a poesia criminal de Piva só pode ser
entendida como uma revolta pessoal não vinculada a qualquer
movimento coletivo, seja artístico ou político. Mas há
estilhaços da explosão surrealista na furiosa poesia de Piva,
similar ao que ocorreu na geração de “franco-atiradores” do
surrealismo português, tal como denominada por Antonio José
Forte. Veja a poesia criminal que arde nos dedos queimados de
Herberto Helder: poesia contra todos: abriu ele fogo contra o
surrealismo?
13. Poética da transgressão: elogio à lei?
A presença de
Bataille (1897-1962) na poesia de Piva remete à transgressão, à
poesia fora da lei. Essa feição de subversão inerente à poesia
exala o suor efervescente da liberdade, do desfilar sarcástico
do elemento caótico. Liberdade e desordem que dependem,
paradoxalmente, da lei e da ordem. O avesso do interdito. O par
necessário da proibição: a violação. A existência da lei se
justifica pelo prazer da transgressão.
Em outras
palavras, a lei é apenas um artifício malicioso arquitetado pelo
crime para amplificar seu gozo. O crime mais violento, o
assassínio e a morte, tudo o que põe a vida em perigo, traz
consigo o prazer mais intenso. A vida é tão mais intensa quanto
mais rigorosa é a lei que transgride.
É assim que,
para Bataille, o “sabor criminal” tem seu prazer alcançado
somente no contraste com a virtude, o Bem. Pois este último, com
sua moral, lógica e formalismo, não abarca o humano. A aventura
humana não prescinde do crime, do irracional, do imoral. Aí está
o cerne da poesia: o transe originado do arrebatamento das
paixões irresponsáveis. A vivência do crime/transgressão
alimenta o jogo da vida como luta e contraste. Se a lei impõe o
limite, o crime em Piva é esse movimento de gozar do (com o)
limite. Não a vida ilimitada, o que não seria possível, mas
levar a vida no limite mesmo do impossível.
14. Tesão pelo crime.
Órfão aos cuidados do Estado, rifado em reformatórios e
crivado pelas torturas de diversas prisões. O Diário de um
Ladrão remonta os vazios da fome, a face indigesta da
miséria, o vadiar a esmo do mendigo em andrajos. Piedade?
Compaixão?
Jean Genet
(1910-1986) não as tem para nós. Sua carreira na bandidagem é
seu caminho para a perfeição moral, a santidade. Suas peripécias
no roubo, na prostituição ou no tráfico, são seus sinais de
grandeza. São magia. São poesia.
A vivência no
mundo do crime por puro tesão. Pois o crime alcança a ignomínia
e a turbulência de sentimentos somente similar ao estado que o
amor precipita os homens. O erotismo e a vibração trazidos pelo
perigo, o gozo que advém audácia, a excitação dos corpos brutais
e selvagens dos criminosos. A estes “faustos da abjeção” Genet
ofereceu tudo o que tinha de mais precioso: sua homossexualidade
e traição.
A poética do
crime que nos deixa espreitar é criação de um mundo, uma moral e
uma estética apartada do “mundo de vocês” – como Genet se
refere. Aquilo que a sociedade despreza é motivo de orgulho. Uma
moral inversa, ébria de abjeção. Todos os sinais de sordidez, os
atos mais ignóbeis e monstruosos são signos de vigor moral
naquele mundo que “fede a suor, esperma e sangue”. [18]
Genet, grande
criminoso e vítima de criminosos, toda uma vida e arte que
alcançam no crime sua força de criação. Aqui o crime se equivale
a uma “espécie de obra de arte ativa”.
O gosto pela
pederastia e traição, já presente na Ode; o tesão pelos
garotos dos subúrbios, seja os roqueiros que o poeta revelou
quando era promotor de shows, seja os jovens alunos que
aliciava em sua época de professor nas periferias da cidade,
passando pelos seus famosos relatos da sauna gay que
freqüentava. Como Jean Genet, Piva também não se entregava
apenas à poética do crime, mas ao próprio criminoso.
15. Hipsters com cabeça de anjo.
Piva e sua transa com a Geração Beat. Perigoso
coquetel: juventude, poesia, erotismo e delinqüência. A crítica
burra dos beats “iletrados”: sinal de medo. A puritana
sociedade norte-americana cagava nas calças em pensar na
virulência desse modo de vida transgressor, tachando rapidamente
a beat como sinônimo de delinqüência juvenil. Ledo
engano. Tal associação apenas incentivou mais a juventude ávida
da grande aventura, do gozo sem limites, estampado nas
vestimentas e comportamentos. O hino desta geração, o grande
Uivo, versa as extremas situações sublevadoras: as detenções por
porte de drogas; as internações manicomiais; a cabeça
estilhaçada no pilar do metrô ao colocar a cabeça para fora do
vagão, triste fim de William Cannastra, o mesmo que se gabava de
ter mordido um policial na orelha; entre tantas outras.
Herói da
Beat, Neal Cassady, ninfomaníaco tremulando por sexo a
quinhentos por hora. Gaba-se de roubar o primeiro carro aos 14
anos e ter acumulado mais de 500 com pouco mais de 20 anos. A
brincadeira de Guilherme Tell, com qual William Burroughs matou
sua companheira. A própria expressão beat, atribuída ao
delinqüente e traficante Herbert Huncke. A poética beat
tecida com os fios fortes do crime.
Veja Gregory
Corso, delinqüente criado em orfanatos. Menino de rua que entrou
em cana por roubo. Na prisão identificou seu modo de ser com a
poesia, decidindo ser poeta. O mesmo Corso que, ministrando
oficinas na Jack Kerouac School of Disembodied Poeics, na
Naropa University, criada por Ginsberg, levava os
estudantes para “conseguir grana” e comprar drogas. O
“aprendizado” da poesia indissociável do crime.
16. Crime e criação.
Crime e poesia em Piva: diversidade de sentidos. Poesia
sobre o crime, para o crime e pelo crime. O próprio crime e o
criminoso como poéticos. A criação poética como crime autoral:
assassinato do autor. A espontaneidade criadora levada à
intensidade no perigo, na contravenção.
Resta ainda
dizer algo sobre o crime e a poesia. Vadiar pelos sentidos do
crime na poesia de Piva é trilhar alguns caminhos e desconhecer
outros tantos. Nesse jogo gratuito daquilo que se revela e do
que se oculta, a face do enigma permanece fabulosa, embora com
outros traços. Encarar estupefato a esfinge. É disso que se
trata. Ser devorado pelo monstruoso leão e alimentar em suas
entranhas a beleza do Mistério.
Aos viajantes
vagabundos, alguns enigmas.
Que relação
há entre as investidas de Piva com as figuras anti heróicas do
modernismo brasileiro, especialmente sua fornicação com
Macunaíma e as “luzes do Cambuci pelas noites de crime”?
O que dizer
da década de 1960, que teve na criminalidade/marginalidade seu
espaço transgressor de experimentação e criação de uma arte que
espancou furiosamente os valores burgueses e a primazia do
mercado?
Pense nas
figuras subversivas do Cinema Novo com seu elogio ao banditismo
no cerne da formação cultural brasileira. O tremor da terra em
transe ou a transa de Deus e o Diabo na terra do sol. Ou mesmo
os anjos do cinema da Boca do Lixo, ambiente que Piva freqüentou
e sobre o qual escreveu, com seu elogio ao sexo, crime e
malandragem. Já no final de 60 vemos, como exemplo, o “Bandido
da luz vermelha” (Rogério Sganzerla, 1968) e o polêmico “Matou a
família e foi ao cinema” (Júlio Bressane, 1969). Isto para não
dizer dos mais recentes bandidos no cinema: Lúcio Flávio (1977)
ou Madame Satã (2002).
Nas artes
plásticas o marginal e anárquico Helio Oiticica alia de maneira
explícita o heroísmo à bandidagem em sua “Homenagem a Cara de
Cavalo” (1966). Na defesa da violência como revolta, jamais como
opressão, grita: “O crime é a busca desesperada da felicidade
autêntica, em contraposição aos falsos valores sociais”.
No teatro,
pense em “Dois perdidos numa noite suja” (1966), de Plínio
Marcos, ou no polêmico “O Balcão” (1969), com a presença do
próprio Jean Genet acompanhando os trabalhos de Ruth Escobar.
A presença da
malandragem na música brasileira é sacanagem. Tal como o
ambiente de libertação do jazz norte-americano (penso em sua
relação com os beats), o samba e suas ramificações dão
conta de traços de criminalidade inerentes à nossa tradição
musical. Veja, por exemplo, os audaciosos versos de Wilson
Batista (Lenço no Pescoço, 1933): “Meu chapéu de lado / Tamanco
arrastando / Lenço no pescoço / Navalha no bolso / Eu passo
gingando / Provoco e desafio / Eu tenho orgulho / Em ser tão
vadio”. Bezerra da Silva, as homenagens ao malandro por Chico
Buarque, na música e no teatro, e por aí em diante.
Até no âmbito
da luta política: veja a proliferação das guerrilhas de esquerda
durante essa década. A gênese do próprio Comando Vermelho
tributário dos manuais de gerrilha urbana.
Na poesia,
literatura, cinema, teatro, música e artes plásticas,
especialmente na década de 1960, crime e criação artística são
cúmplices inveterados. Se Piva não teve um papel pioneiro nessa
cumplicidade, pelo menos participou ativamente do processo.
Seria a década de 60 o ápice da “criminalização” da arte ou da
estetização do crime? Qual papel teria tido a poética de Piva
nesse contexto?
E o que
podemos dizer do momento atual, em que Piva via a massificação
da criminalidade em torno dos valores burgueses?
Se Piva não
foi marginal, mas marginalizado, tendo sua poética criminalizada
pela sociedade de então, fez dessa criminalização o combustível
de sua criação poética. Mas sua poética do crime não possui
apenas esse lado reativo, de contra-golpe: “Delinqüência sagrada
dos que vivem situações-limite / É do Caos, da Anarquia Social
que nasce a luz enlouquecedora da Poesia / Criar novas
religiões, novas formas físicas, novos anti-sistemas políticos,
novas formas de vida / Ir à deriva no rio da Existência”. [19]
Não apenas o
crime como criação artística, mas como invenção de novas formas
de vida.
PS: Alcir
Pécora entende que a poesia de Piva precisa de mais estudo e
menos torcida, mesmo tendo o próprio poeta incentivado o leitor
a verter em sangue sua poesia, além de entender que uma pesquisa
acadêmica mataria sua virulência. Dilacerar a pena no próprio
corpo e escrever com a tintura do sangue ainda fresco das
experiências pessoais subversivas, como fazia Sade, talvez seja
um caminho. |