A lírica de Ruy Espinheira Filho
Floriano Martins
Em
uma entrevista com Juan Calzadilla, disse o poeta venezuelano
que não pode o poeta “ter uma visão normal de homem e uma visão
de poeta como se tivesse duas vidas, duas maneiras de ser”, e
acrescenta: “Na vida dos grandes poetas a poesia está refletida
em todos os instantes vitais”. Embora haja aí uma declarada
obviedade, o fato é que esta pouco se coaduna com a realidade
brasileira, tão afeita aos burocratas do verso ou mesmo a torpes
caça-prêmios. Por sua profundíssima identificação com o humano,
com as forças a um só tempo singelas e potentes do ser, o poeta
encontra-se com igual caráter tanto em seus versos como em seus
mínimos gestos e atitudes. E trata-se mesmo disto: a expressão
de um caráter.
Desta
pequena verdade são feitos os versos e toda a poesia que define
a existência de Ruy Espinheira
Filho. E vêm daí justamente o memorialismo e a força lírica de
sua poética, entranhada no recorte de cenas que lhe compuseram
os dias, os sonhos, paixões e angústias. Ao longo de três
décadas, o baiano Ruy Espinheira Filho vem tecendo uma enérgica
e emocionante obra, transcendendo quaisquer limites impostos
pela moda e outros maus hábitos de nossa fútil
contemporaneidade. Sim, a história mais recente da poesia
brasileira é pautada por um misto de servilismo e empáfia - dois
caprichosos disfarces da vaidade, afinal - que a inscrevem em um
círculo de futilidades. E contra esta degradante realidade é que
se fixa e amplia a poética de Espinheira Filho.
Nascido em
Salvador, em 1942, foi cronista do jornal Tribuna da Bahia,
durante um largo período: 1969 a 1981 - alguns desses textos
foram coligidos em livro: Sob o último sol de fevereiro
(1975). Jornalista de profissão, tornou-se professor, nesta
área, na Universidade Federal da Bahia. Por ocasião de sua
conclusão de curso, publicou um valioso estudo sobre Jorge de
Lima. Iniciou-se na poesia com a publicação de Poemas
(1973), em parceria com outro importante poeta baiano, Antonio
Brasileiro. No ano seguinte, publica Heléboro, já aí
definida a sutileza entranhável de seu lirismo. Em 1981 ganhou o
Prêmio Cruz e Souza, com o livro As sombras luminosas.
Sua
contribuição à imprensa, em Salvador, é bastante considerável,
pela força de uma voz que se insurgia severamente contra a
hipocrisia reinante em nossa cena cultural. Publicou ainda os
seguintes livros: Julgado no vento (1979), A canção de
Beatriz (1990), Memória da chuva (1996) e Livro de
sonetos (1998). Além disto escreveu ainda novelas, romances
e contos. Também saíram algumas antologias poéticas, a exemplo
de Antologia breve (UERJ, 1995) e Antologia poética
(Fundação Casa de Jorge Amado.
Parte
disto é o que encontramos agora sob o título de Poesia
reunida e inéditos (1998). As informações mínimas que traço
acima deveriam constar da edição do livro, o que infelizmente
não acontece. Se o selo Record garante uma boa circulação e a
poesia de Ruy Espinheira Filho basta a si mesma como expressão
consolidada e sugestiva, o leitor comum - aquele que buscam
todos os poetas - fica desassistido diante da absoluta falta de
dados acerca do autor que tem diante de si. Não é mínima esta
falha quando temos finalmente a oportunidade de um importante
poeta brasileiro circular nacionalmente.
Ruy
Espinheira Filho iniciou a publicação de sua poesia pelas mãos
de Ênio, um dos raros editores brasileiros a considerar
esteticamente os originais chegados à sua mesa. Ciente disto,
recorto aqui uma observação do próprio poeta: “nossos editores
parecem não perceber o grande mal que seu radical pragmatismo
está fazendo à cultura do país”, ao que acrescentava: “Não só
escritores já provados estão sendo desconsiderados, como está
havendo um sério comprometimento da renovação”. Seguramente a
razão disto atraca em nosso passado colonial. Entre outras
idiossincrasias, perdura entre nós a de um capitalismo sem
risco. Talvez isto explique tanta forma sem conteúdo e mesmo um
rarefeito conteúdo carente de forma.
Quando da
publicação de As sombras luminosas (1981), Ivan Junqueira
referiu-se ao apuro lírico da poesia de Ruy Espinheira, que
tratava, segundo ele, a metalinguagem tão-somente como recurso e
não como essência poética - por sinal, ardil que tem levado por
terra muitos poetas brasileiros. Quinze anos depois, com a
publicação de Memória da chuva (1996), Alexei Bueno
destacou a confirmação absoluta desta expressão lírica. O
próprio Espinheira Filho considera-se seguidor de uma tradição
lírica da poesia brasileira afeita ao mergulho “na humana
angústia, na humana alegria, na humana perplexidade, no humano
desespero, na humaníssima esperança”.
Celebrada
coerentemente por críticos como Fábio Lucas, Carlos Felipe
Moisés, Cláudio Willer, Ivan Junqueira, Rubens Figueiredo, a
poesia de Ruy Espinheira Filho alcança agora um momento decisivo
em sua difusão. Poesia reunida e inéditos configura-se
como um esplendor do sentido poético que buscou imprimir o autor
à sua obra. Uma mesma e digna densidade lírica atravessa todas
as páginas, toda uma vida. A exemplo do que diz o próprio poeta:
“em carne rubra e cicatriz, / entrego à cor profunda que me
espera / estes despojos em que sou feliz”. Assim com toda a vida
e a poesia de Ruy Espinheira Filho. |