Salvato Telles de Menezes: A parede do céu
Júlio Conrado
O
que surpreende neste livro de versos de Salvato Telles de
Menezes é, principalmente, a facilidade de assimilação da coisa
poética por alguém aparentemente pouco inclinado a
arrebatamentos líricos que tornem irreprimível a sua
exteriorização em letra de forma. O que sei, em termos pessoais,
da escrita deste autor, conceituado tradutor e reconhecido
especialista em literatura norte-americana, não consentiria
prognósticos favoráveis à ideia de vir a intrometer-se num
percurso intelectual coerente com a indumentária do estudioso
austero e do analista rigoroso, o prodígio de uma poesia
comprometida com o mundo das sensações. Só quando me foram
apresentados os primeiros trabalhos me apercebi, não sem
espanto, que também morava ali um poeta. A partir de então fui
convivendo com a realidade de ver crescer um criador cuja
produção achou ter atingido apuro suficiente para a publicação
em livro. São sempre para mim momentos gratíssimos aqueles que
me permitem poder assistir ao despertar de uma vocação e
participar na proeza do seu voo inaugural.
A poesia de STM é essencialmente uma poesia de aproximações e de
proximidades. E o que torna essa poesia íntima de nós é a
relação de contiguidade, mais do que o descritivo da posse e do
domínio, que na maioria dos poemas se estabelece entre a causa e
o seu alvo final. Vejamos, para começar, o encaixe, nas
referidas coordenadas, de uma posição tão vincada, no que
respeita às influências, como aquela de que o autor se reclama.
Creio não ser despiciendo agrupar em quatro grandes módulos
temáticos os poemas reunidos neste volume: a questão das
influências, o amor/erotismo, os lugares, e um território
híbrido onde cabem outras categorias de afectos, rimas populares
e duas ou três composições de cariz filosófico. É uma evidência
o referencial de quem possui uma sólida cultura clássica
requintada por outros saberes que a experiência vivida naquela
foi dissipando. Não se defende aqui a trivialidade da palavra
nem a vulgaridade do conceito. Nem se descarta o apelo à lição
dos mestres. A viagem que Salvato Telles de Menezes propõe a
quem se sinta intimado a lê-lo, assenta num itinerário que,
embora sem recusar a erudição, aspira à lisibilidade da paisagem
humana e à clareza semântica que a torne transparente no acto da
recepção. Todas as premissas desta poesia, sejam as de carácter
metafórico, alegórico ou de ilustração simbólica das
“verdades naturais” que inspiraram um ou outro poema mais
“hermético” visam, como objectivo superior, criar as sínteses de
universos particulares em que cristalizem a límpida marca de um
tempo, uma situação específica ou uma identidade.
São deste modo convocados para o festim lírico vultos da cultura
universal proeminentes no imaginário do autor – Shakespeare,
Borges, Carlos de Oliveira, Donne – e personagens não
menos relevantes – Penélope, Ofélia – que se movimentam em A
Parede do Céu, menos como influências com intervenção
directa no comportamento dos textos do que em subtis alusões
apelando a cumplicidades volvidas em público tributo de
STM aos míticos precursores que reverencia.
No entanto, estando esses vultos influentes de visita, não é
inflacionada a sua presença nem ornamentados especialmente para
o efeito os aposentos onde repousam o olhar sobre os méritos do
discípulo inusitado. Talvez uma mais sentida saudação a Carlos
de Oliveira, venerado pela bitola de Mestre, constitua a grande
excepção.
Salvato, ao contrário de muitos – da esmagadora maioria, talvez
– dos seus pares, não esconde as influências. É uma evidência
que põe questões interessantes. Ao arrepio do que é usual numa
praça onde o disfarce prepondera, a ausência de disfarce e, mais
ainda, a confissão de uma preferência, o acto de assumir o
estigma de uma referência inelutável, convergem para que fique
no ar certo odor a escândalo em resultado do comportamento de
quem tão abertamente se expõe à censura pública. Que história é
esta de venerar explicitamente a fonte onde se vai beber? Que
desplante é este de se lhe referir o nome e tudo? Que
imprudência impele alguém a declarar um epigonismo que valeria
talvez a pena deixar tacticamente em banho-maria? Vamos por
partes: essa dependência nem é de conteúdo subserviente nem é
esteticamente um desperdício. Não estamos perante um vulgar
gesto mimético. Também não estamos ante uma qualquer variável
paródica do mimetismo, isto é, uma brincadeira em que o traço
caricatural cicatrizado no texto pudesse alterar o quadro
humoral do discurso poético. Parece-me mais justo falar de jogo.
Um caldeamento de aquisições culturais fortemente assimiladas,
temperado pela humildade do discípulo e pelo gozo deste último
em dar voz adulta ao cruzamento de sensibilidades que formaram
uma personalidade intelectualmente rica. Uma mistura. Mas uma
mistura produtiva. Uma mistura, como veremos, da qual emergirão
proveitos para leitores e criador.
O estímulo pedagógico do Mestre vem a gerar uma fala metamórfica
que se singulariza tanto mais quanto menos simulado é o convite
à aventura de alargar os horizontes da escrita até que se torne
bem clara no texto uma estrutura autónoma. Aí se determinará, no
hóspede, o grau de influência do estilo anfitrião.
Por ora, o que temos é o agradecimento do discípulo ao pai
poético:
Esta palavra
de letras infirmes
dor
ardendo
no vale do peito
lavrado a escopro;
fogueira
esquecida do tempo:
Mestre,
este poema
tão imperfeito
Todavia, parte substancial da experiência humana que o poeta
considera digna de ser contada diverge em muitos pontos da do
autor-referência, o que, sem deteriorar o pano de fundo
sentimental da homenagem, implica que numa dimensão
lógico-simbólica as diferenças se acentuem de maneira a
consolidar-se o que no processo é irrecusavelmente singular. O
fenómeno das influências, tão nítido, define-se a partir de
situações concretas de convizinhança: o facto de Salvato e
Carlos de Oliveira terem vivido na mesma rua; a participação
diária, ou quase, na tertúlia em que o Mestre pontificava; a
cultura de objectividade reciprocamente perfilhada, são tudo
razões cuja bondade é susceptível de ser chamada a terreiro em
abono de uma literatura que se quer perto do que a fomenta,
invulnerável a truques já rodados por outras mediações
exemplares, genuína na expressão de motivos e assuntos.
Nesta medida, a sentida saudação a Carlos de Oliveira e o
ostensivo reconhecimento da improbabilidade de atingir patamares
de engenharia poética em grau semelhante aos desempenhos do
renomado autor de Micropaisagem, deixam passar a ideia de
quão vulnerável se mostra STM ante o esplendor da obra
celebrada, assumindo-se ele sem reservas como discípulo
“imperfeito” de CO. Salvato cultiva, aliás, à semelhança do
Mestre, o verso livre de sintaxe curta e sentido compacto,
dedicando esmerada atenção ao “pormenor”, à “micropaisagem”. Ao
contrário da poesia que louva os bons velhos tempos e tende a
transformar os momentos excepcionais do vivido numa liturgia de
sagração crepuscular desses instantes, aqui, temos o momento
intacto, a acção interagindo com a emoção em directo, quer no
passado presentificado, quer no presente agilizando a sua
própria urgência ao encontro do fascínio do que palpita e
respira nas imediações e de onde o leitor recebe a emoção de que
precisa para se solidarizar com o que lê.
Nas composições de registo erótico, a poesia de STM afasta-se do
aprendido quando exprime a partilha amorosa através da exaltação
do feminino em níveis de explicitude e ousadia jamais
encontrados na poesia de CO. O discípulo “liberta-se” do
precursor ilustre convocando um vitalismo invasivo que catapulta
o significado para representações realistas de figurino
passional. É neste domínio que o poeta mais coerentemente se faz
ouvir enquanto produtor de um recado original, banindo do corpo
do poema soluções de eficácia duvidosa quanto à caracterização
do apetite primordial e das iniciativas de fascínio que o
sustentam.
Nenhuma das disciplinas do enamoramento está ausente do livro. A
abordagem, o coup de foudre, as técnicas de engate, a
promessa, a plenitude, a decepção, e até uma ousadia epistolar,
estão calibrados para se entremostrarem segundo uma hierarquia
de experiências que o autor vai desvendando sabiamente com
grande destreza verbal, de tal maneira lhe é intrínseca a
necessidade de valorizar perante o mundo o seu reportório de
sedutor, sempre com a mulher no centro geométrico de toda a
actividade amadora.
A desenvoltura no trato da sensualidade surge amiúde valorizada
por elementos “naturais” embutidos no verso para encarecer o que
é genuíno e resistente: “água de metal”, “fulgurantes pedras”,
“leito de leite”, entram na composição do poema Corpo
como aditivos vitalistas capazes de dar à natureza da relação
amorosa a fisicalidade do que na natureza tout court é
matéria confiável, garantia simbólica, porventura, da
perpetuação do afecto, ou a pureza aristotélica do alimento
perfeito.
Noutros casos, p. ex. no poema Mais, o momento captado
dispensa adereços puros ou outros: é todo ele um plano
cinematográfico rodado com escrúpulo pelo cineasta respeitador
do guião, uma imagem que dispensa palavras a mais e vale pelo
mostrado, sem que o traço subjectivante dos dois últimos versos
altere a forte visualidade do poema, inquestionavelmente um dos
mais belos da colectânea.
Estendo a mão
projecto de carícia
na penugem da tua nuca.
Afastas o pescoço
sem pressa
arqueias os ombros
colocas
os seios
contra a minha boca ávida.
Não sei nomear isto:
mas é mais do que ternura.
O efeito de proximidade (mas não de consumação) é, pois, muito
evidente nos poemas de amor. Expressões como “ao calor da minha
mão”; “toco com estudada parcimónia”; “derrama-se dos dedos para
o meu peito ferido”; “cruzaste-me as mãos sobre o coração”;
“traçaste com a mão tão trémula”; “Num frémito de cor os teus
cabelos velaram-me os olhos”; “o corpo torna-se fluido,
esquivo”; “a saia desce até ao tornozelo”; “Procuro… sob a mesa
a doce curva do teu joelho”. “As tuas pernas, as minhas mãos
toscas sobre a pele do nylon” – captam vibrações nos arredores
do objecto da paixão como uma teia onde ele certamente acabará
por se deixar fazer prisioneiro mas depois do poema e muito para
lá do poema. De momento – enquanto fruidores do texto – não
somos convidados a aceder ao que a paisagem esconde de
conclusivo mas tão só a demorar o nosso voyeurismo no modus
operandi que não é ainda, por conseguinte, o do conquistador
com a praça tomada e sim o do aspirante a essa proeza revelado
pela contínua pressão exercida sobre os mecanismos de activação
do desejo. À ideia subjectiva de aproximação corresponde quase
sempre um movimento físico de aproximação. Em vários dos poemas
há um efeito de deslocação que se resguarda como cosa mentale
reflectida intensamente no que na escrita é exercício do olhar e
linguagem gestual, tendo sempre por fito o estabelecimento de
situações concretas de proximidade. Seja no domínio da
persuasão, seja em franjas de um erotismo voluntariamente pouco
alusivo, seja no que respeita ao grau de verosimilhança
ambicionado para a mensagem da memória estimulada pelo
referente, a itinerância rumo ao outro para lhe vencer a
resistência suspende-se no momento da realização, o que não quer
dizer que esta não venha a ocorrer. O tom optimista do enleio
sugere-o, sem dúvida. Aproximação e proximidade são duas noções
complementares que apesar de se articularem bem, não conduzem
necessariamente à intimidade da posse – no texto poético.
Enfim, pode dizer-se que neste livro há intriga amorosa para
todos os gostos, desde um erotismo exacerbado até à exaltação da
delicadeza e da sensibilidade com que são oleados os motores da
paixão, com pleno domínio da escrita depurada e rigorosa, mas
nem por isso menos repleta de vibrações, que dá unidade a toda a
obra.
A terceira grande linha de força – os lugares – acaba por estar
relacionada com as demais, quer porque a componente afectiva é
determinante na definição do grau de importância que cada lugar
ocupa no imaginário do autor, quer porque a diferenciação
geográfica manifestada nalgumas páginas se prende em boa medida
com o uso que o poeta faz das subcategorias dessa componente.
Assim, a aldeia natal, no Alto Minho, colhe das reminiscências
da infância uma fatia substancial de magia que provém igualmente
do mergulho na história familiar e onde entronca a homenagem a
pais, filho e irmãos; o Alentejo tem a ver, naturalmente, com as
origens da “moura encantada” da dedicatória de um dos poemas; o
Guincho aparece por via do estatuto domiciliário e ainda por
razões de trabalho, amor, amizades particulares, evasões (como a
descrita); Moscovo remete para solidariedades cinéfilas (Ana
Padrão, Nikita Mikalkov); as festas da Senhora da Agonia, de
Viana do Castelo, são evocadas para trazer a terreno os
zabumbas, “Atroando os ares com a batida / das tensas peles dos
bombos.” São os locais que a memória do poeta privilegia para os
reabilitar e lhes destinar o seu verdadeiro “lugar” – de eleição
– no memorial de que são parte.
Assim, no registo autobiográfico é curioso acompanhar o modo
como um poeta marcado por forte ligação ao real objectivo
funciona quando tem de lidar com a reminiscência, a recordação,
a evocação, trabalhando para que estas não se convertam em
conteúdos hostis à materialidade do que as justifica. É então
conferido ao referente realce nuclear. A sensibilidade forja a
sua linguagem a partir de elementos de uma outra linguagem que é
a que o olhar apreende ao buscar significações no vestígio
iconográfico. Repare-se, por exemplo, no poema “Fotografia
familiar”, no qual se pressente a lição de Roland Barthes: a
triagem dos aspectos das quatro pessoas fotografadas, incluindo
os adereços que até certo ponto as identificam são precedidas de
um mal-estar, de uma inquietação, que o poeta procura resolver.
Uma secreta intenção – só nas duas últimas linhas desvendada – o
move. Procura detectar as marcas que poderiam trair uma tensão
entre os componentes do grupo. Ora a investigação conclui pela
inexistência de qualquer tensão na busca realizada “no meio de
tanta folhagem”.
Conquanto não seja lícito retirar-se da lição de Barthes uma
relação directa de causa/efeito, ou no sentido de que possa ter
havido conexão intertextual, o certo é poder concluir-se pela
existência de algumas afinidades na abordagem da fotografia
entre a perspectiva do intelectual francês e a do poeta, ainda
que aquelas conduzam a destinos diferentes. A afinidade
principal é a de que ambos pretendem animar os seres
imobilizados expostos à sua curiosidade, procurando um puctum
(segundo Barthes: aquilo que fere), que fundamente o interesse e
coloque as respectivas leituras no plano de um “valor superior”.
No entanto, Barthes procura criar uma teoria a partir de
informações nas quais previamente localizou “aquilo que fere”.
Isto é, ele opera intelectualmente segundo uma realidade em que
o pormenor inquietante já está controlado ao ponto de poder
dissertar sobre ele como uma “demonstração”. Salvato, ao invés,
sendo porventura portador do saber teórico, usa-o para uma
investigação inédita e aproxima-se da foto para encontrar nela o
seu punctum, o detalhe forte cuja premonição o
desassossega. Ou seja: o que para Barthes é uma certeza (um
factor de distúrbio identificado à volta do qual tece um
conjunto de considerações), para Salvato é uma suspeita: a
possibilidade de no decurso do exame minucioso dos traços
caracterológicos das figuras imobilizadas na foto achar um ar de
stress, uma torção de semblante, um franzir de testa, um
descuido não encenado de indumentária, capazes de levarem à
identificação de mal dissimulados conflitos entre os membros
daquela família. O que, naturalmente, conferiria ao retrato um
superavit de subjectividade não descortinável à vista
desarmada. Mas nem à vista armada tais avisos de fractura são
detectados. O que prevalece é uma paz, uma tranquilidade, uma
cordialidade em relação ao mundo, que o indagador regista no fim
do texto com algum alívio e sem dúvida comovido. A mensagem
iconográfica veicula uma imagem de geral bonomia, uma imagem
feliz. O resultado da aproximação acaba por ser de certo modo
decepcionante em função do défice de intriga apurado mas
compensador pela representação de harmónico equilíbrio
psicológico e de conforto existencial que o que é dado a ver
transmite. Ao sentimento de desconfiança levemente insinuado
sucede o íntimo regozijo por nada na foto corroborar o
sobressalto de uma qualquer nuvem de mágoa emergindo de
contenciosos subliminares. Para o leitor/fruidor que experimente
fazer a recepção deste poema como uma fotografia, o punctum
encontra-se na ansiedade subjacente à averiguação, o que
pressupõe a participação do próprio poeta no grupo fotografado,
uma vez que não deixa qualquer indicação de que ele próprio seja
um dos quatro – ou o contrário. Todavia, esta hipótese cria uma
nova ambiguidade: o poeta está “dentro” da fotografia quando a
observa ou está “fora” e só entra nela quando o leitor/fruidor o
empurra para dentro do grupo? Os quatro fotografados são
acrescentados de uma quinta pessoa, ou não há quinta pessoa mas
tão só o desdobramento de uma delas? E será este puctum
inesperado o causador da angústia do receptor ou antes um jogo
de espelhos cujos parâmetros de significação consagram outras
categorias de entendimento do que está verdadeiramente em causa?
Poderíamos especular um pouco mais sobre este planeta novo
descoberto na órbita do poema, tentando encontrar respostas para
questões por ele levantadas, mas o importante agora é realçar a
riqueza intrínseca da semântica do texto. Este, ao conter na sua
génese um potencial de enigma superior ao que à primeira vista
seria suposto lá estar, aponta para a complexificação da
mensagem muito provavelmente acima, também, do patamar de
expectativa do mensageiro.
Gostaria ainda de ir buscar ao território afectivo mapeado duas
ou três nótulas com as quais começo a pôr fim a esta breve
análise de alguns aspectos de A Parede do Céu. É no plano
da vinculação do indivíduo à sua geografia sentimental que no
livro se nos revela o intimismo mais sincero. Acede-se, então,
ao mais despojado testemunho que faz da terra da infância e da
adolescência vividas em família o cerne da formação do carácter
e a preparação do homem futuro. Vejamos a recorrente presença da
chuva, de quase todas as vezes em que a memória do poeta se
detém no Minho natal em termos evocativos, e o também recorrente
e explícito apreço pelas influências literárias. É ponto assente
que no Minho chove copiosamente. Ou melhor: quando o enfoque do
poeta se demora na sua “realidade” minhota, chove a valer. O
ponto de partida para o culto da chuva associado ao binário
infância/adolescência parece ter sido o célebre poema de T. S.
Eliot A Terra devastada. Nesse famoso poema, a chuva tem
uma função regeneradora quando em contacto com a terra enquanto
ventre materno fértil, mas é-lhe igualmente atribuído pouco
valor ao correr inutilmente sobre a rocha improdutiva, voltando
a ser desejada sempre que a sua escassez ultrapassa os limites
do razoável, contribuindo tal carência para a não renovação a
tempo e horas da energia essencial à vida e a consequente
descrença no seu poder vivificante. Sensível à destreza
imaginativa e ao matizado reportório vocabular da composição
eliotiana (presente, por exemplo, no poema “Mar”: Boa-noite,
boa-noite, doces damas), Salvato reserva à chuva, na sua
poesia, um destino positivo, dando-lhe um enquadramento oposto
ao que a “fonte” inspiraria – uma persistente toada céptica - se
fosse tomada literalmente a rigor. Em Salvato a evocação da
chuva está ligada às noções de descoberta e de crescimento
indissociáveis do seu próprio processo de gradual reconhecimento
do mundo. O louvor da água importa a quem se sente parte de um
todo em que o elemento fundador induz recordações ora agrestes (Agora
só a memória desse terror infantil num lugar não muito distante)
ora amáveis (É este que recorda essa época, tão anacrónica,
de maravilhosos achados no perfeito intervalo das nuvens)
mas sempre cúmplices como exorcismos lúdicos de índole afectiva.
Enquanto que no poema de Eliot a tónica dominante é a criação de
uma atmosfera depressiva a que a chuva e o vento conferem
amplitude, nos poemas de Salvato a aspiração a um estado de
serenidade – recompor o (íntimo) movimento da infância –
dirige aquilo que procura, associado a outros referentes da sua
particular devoção como a figueira-da-índia florescente, o
castanheiro ou a colmeia onde é sentida a azáfama no interior
das alças.
Esta poética procura alcançar um estádio de serenidade e de
harmonia com os valores da tolerância e da cordial
inteligibilidade do mundo pela mediação fantasmática do que terá
sido uma infância feliz. Quando o consegue, proporciona-nos
momentos de comprazimento puro. Bastará demorarmo-nos nos poemas
evocadores desse período fundamental da formação do homem para
que se torne claro o seguinte: mais do que a lição dos mestres,
a lição da descoberta da vida e dos fios com que é tecida, é
pessoal e intransmissível. Não há seara alheia que lhe faça
sombra.
Quanto ao quarto grande bloco de poemas, aquele em que
encontramos o homem culto que Salvato é, a sua diversidade
corresponde à aquisição de saber feita ao longo de “cinquenta e
cinco anos” em várias instâncias de conhecimento, que tanto
podem ser literárias (veja-se o poema Saga inspirado na
versão borgeana de uma batalha na Inglaterra), como esotéricas
(leia-se o poema ORDO AB CAOS), ou decorrentes da sua atenção às
artes (repare-se nos poemas dedicados a João Jacinto, José
Rodrigues, entre outros) e da curiosidade com que interroga o
mistério da escrita poética em fase processual (no poema
Segredo, p. e.). A par desta erudição o poeta convive
salutarmente com a trova popular, com a cantiga de maldizer e
com certos mundos de dor colectiva que trazem à superfície a
qualidade de cidadão interventivo que em si nunca se perdeu.
E em jeito de autoretrato:
Interroga-se. Quem é ele para se atrever a ponderar o peso da
areia do tempo?
Talvez haja, num recanto mais escondido do seu espírito, algum
pesar; coisa muito leve: um arfar de frustração tão subtil que
não chega a ser sopro.
Nunca foi sôfrego e soube ser tolerante, é o seu consolo.
Viveu.
Com esta chamada de atenção para quatro linhas de força, na
poesia de Salvato Telles de Menezes, que me parecem realmente
significativas, espero ter transmitido com suficiente clareza a
ideia de que A Parede do Céu é um excelente livro. Muitas
das suas páginas constituem, sem dúvida, reptos tanto para
aqueles a quem mais seduza o lado encantatório de certos poemas
como para os que prefiram a especulação intelectual que vários
outros propõem.
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