Leveza,
rigor e luminosidade – Sobre a arte de Saúl Dias e de Julio
Ruy
Ventura
1.
Júlio
Maria dos Reis Pereira (1902-1983) constitui um caso
interessante no campo dos estudos da onomástica artística. Em um
movimento pendular entre autor empírico e autor textual
(considerando nós a sua pintura e os seus desenhos como textos,
produtos – como os poemas – de uma tecelagem muito matizada,
mas, a nosso ver, coerente), foi sendo estruturada uma
identidade repartida que, colocando fora da esfera textual o
primeiro, desdobra a substância do segundo.
O cidadão,
com identidade civil, irmão carnal (e espiritual?) de José Maria
dos Reis Pereira (o poeta, ficcionista, dramaturgo e desenhista
José Régio), apaga-se para deixar nascer duas outras
personalidades: “Julio” (sem acento) e “Saúl Dias” (com acento).
Se em José Régio, João Falco, Miguel Torga, Cristovam Pavia,
Nicolau Saião ou noutros autores estamos perante casos de
pseudonímia artística ou literária, com substituições totais ou
parciais da designação atribuída pelo registo civil ou baptismal,
no caso vertente a estratégia onomástica vai além disso. Não
atinge, é certo, o extremo heteronímico talhado por Fernando
Pessoa no seu “teatro em gente”, com Alberto Caeiro, Álvaro de
Campos, Ricardo Reis, António Mora, Alexander Search, Barão de
Teive e outros. Não elabora uma ficção totalizante, como Boris
Pasternak, ao atribuir a Jivago poemas que lhe pertencem
enquanto autor empírico que dá propriedade literária ao romance,
dada a inexistência de um pacto ficcional entre autor e
leitores.
A sua
atitude perante a identidade poética (artística e literária) é
mais próxima da que, nos anos 1970, o pintor António Quadros
assumiria, ao dar à sua obra plástica selos onomásticos
aparentemente próximos do artista empírico (António Quadros e
António Lucena), guardando para a sua importante produção
poética personagens como João Pedro Grabato Dias, Frey Ioannes
Grabatus ou Mutimati Barnabé João. “Julio” e “Saúl Dias”
semi-heterónimos de Júlio Maria dos Reis Pereira? Como Bernardo
Soares, de Fernando Pessoa? Temos suspeitas, mas as dúvidas não
nos permitem uma afirmação peremptória. Ao contrário do poeta
nascido em Lisboa, no Largo de São Carlos, que deixou
declarações explícitas (partes, também elas, de uma ficção
autoral) indicando pontes de aproximação e de afastamento entre
as personagens dessa dramaturgia totalizante e o autor empírico
que as ficcionou – no autor da série
Poeta
(conjunto
de desenhos e de pinturas que tem como tema a personagem que lhe
dá título) não conhecemos qualquer texto claro sobre o assunto.
Há indícios tênues semeados por toda a sua obra que não devemos
pôr de lado, mas todas as conclusões serão sempre provisórias,
incluídas no campo da indeterminação, como é apanágio da poesia.
De tudo quanto lemos e observámos de Saúl Dias Julio ficounos,
no entanto, a convicção da existência de algo de borgesiano
neste(s) autor(es). Ao separar-se do engenheiro nascido em Vila
do Conde, a personalidade poética de Reis Pereira parece dizer,
com Jorge Luís Borges: “talvez eu seja também uma personagem
imaginária”.
Há, em
nosso entender, uma sobreposição de trindades poéticas e/ou
identitárias. Se tivermos em conta quanto temos vindo a expor,
temos em primeiro lugar uma triangulação da identidade em que o
vértice A potencia dois vértices distintos, B e C, que por sua
vez dialogam entre si, em movimento biunívoco (o que também
sucede, empiricamente, entre A e B e entre A e C, havendo por
detrás dos quadros e dos poemas uma mão que escreve, que pinta e
desenha).
Podemos,
de seguida, figurar um triângulo onomástico – pseudonímico ou
semi-heteronímico – em que a base de sustentação é constituída
pelos dois vocábulos do nome literário e o vértice superior pelo
designativo atribuído ao autor plástico. Esta figuração é
permitida por um pequeno, mas importante, pormenor de índole
ortográfica. Decerto conhecedor de que nada existe enquanto
memória se não existir primeiro enquanto expressão (verbal ou
não-verbal), Júlio Maria dos Reis Pereira introduziu nas duas
identidades-entidades em que se apagou para se dividir uma quase
imperceptível modificação: suprimiu o acento da esdrúxula
“Júlio” e acrescentou-o à aguda “Saul”. Há um passo de um texto
seu de 1980 (Nos
dois pratos da balança)
que nos parece significativo:
[…] embora
as artes plásticas me tenham ocupado muito mais tempo do que a
poesia, a verdade é que foram os versos que mais alegria me
deram (refiro-me à alegria interior que se sente quando uma obra
realizada ou em realização nos sai bem). Não sei explicar isto,
mas assim tem acontecido.
Subvertendo as regras da Língua Portuguesa e da sua gramática, o
autor empírico retirou ao acento gráfico a sua funcionalidade
prática, transformando-o em um sinal deíctico, um dedo que
aponta para “Saúl Dias”, desviando a atenção de “Julio”, aquele
nome que mais aproximaria o(s) seu(s) ser(es) poético(s) do
cidadão Reis Pereira e levaria os leitores dos seus poemas e os
observadores dos seus quadros a formarem com ele um pacto
autobiográfico, que aparentemente desejou afastar.
Embora
tenha passado mais tempo a pintar do que a escrever, tal como
declara no excerto acima transcrito, a personagem em que mais se
revê (isto é, a parte da sua obra em que mais se realizou
enquanto eu-próprio-outro) é a do criador literário e não a do
criador plástico. Ao contrário do que se tem proposto ao longo
de décadas e por muitas vozes, Reis Pereira não é assim um
pintor que escreve, mas um poeta que também pinta. A poesia
assume-se enquanto edifício largo, totalizador, de que a pintura
é apenas uma das fachadas (ou, talvez, um dos pilares). Há um
domínio maior, assinado pelo “fazedor” Saúl Dias, o da poesia,
do qual fazem parte tanto a obra versificada quanto a pintada e
desenhada – processos diversos, linguagens diferenciadas que
contribuem para o mesmo todo, embora os poemas se situem no
patamar criativo mais importante.
Perante
estes dados, não erraremos muito se considerarmos que toda a
obra criada por Júlio Maria dos Reis Pereira foi por ele
enquadrada numa ficção autoral. O autor empírico apagou-se logo
de início, afastou-se para que a sua personagem, Saul Dias,
vivesse. Pseudónimo ou semi-heterónimo, em um processo de
inversão identitária, enquanto na realidade material “Julio” é o
homem e “Saúl” a sua invenção virtual, na escrita, o jogo
transfigurador inverte os termos: é “Saúl” o ser vivente que
assina os poemas e, em simultâneo, pinta sob o nome de “Julio”.
2.
Se a
ficção autoral apenas se vislumbra nos indícios deixados na
fixação onomástica, a figuração do poeta enquanto personagem
dentro do poema e da pintura está bem presente em toda a
produção de Saúl Dias Julio. Mais evidente na justamente célebre
Série Poeta
encontra-se também presente ao longo da sua poesia. Excluindo os
dispersos e inéditos recolhidos postumamente nas suas poesias
completas, não podemos menosprezar o facto de que, em todos os
seus livros, encontram-se textos em que, de forma mais
desenvolvida ou mais elíptica, se reflecte sobre o fazer poético
ou sobre a figura idealizada do poeta.
O primeiro
poema do seu livro inicial,
…mais e
mais…,
de 1932, é uma declaração de princípios, um prefácio a toda a
sua obra, um programa de vida para essa personagem dupla, Saul
Dias Julio, que produzirá, durante mais de cinco décadas, uma
obra ímpar na literatura de expressão portuguesa e nas artes
plásticas lusas.
Uma obra
chã, próxima do húmus terreno e humano, nasce da contemplação e
do confronto com essa trindade identitária e vital, triangulada
em verbos que procuram resumir toda a vivência psicológica de um
ser arquetípico, que se torna personagem de uma
história
(como
refere Júlio Reis Pereira no artigo citado no capítulo
anterior):
Aquele
triângulo, ali, / pintado a rubro no chão, / desperta em mim a
obsessão / de que tudo o que eu senti, / amei, chorei ou sorri /
era pintado no chão.
Não sem
antes se situar esteticamente perante a literatura e a arte do
passado, defendendo implicitamente, na senda dos manifestos do
Segundo Modernismo Português, assinados por José Régio na
revista
Presença,
uma “literatura viva”, mais autêntica (ainda que, para ele, a
defesa da “sinceridade” levada a cabo pelos presencistas como
valor artístico e literário se configure antes, ao longo dos
seus poemas, como uma procura da veracidade e de outros
fundamentos que adiante descortinaremos). Há um claro corte com
o passado:
Eram
outras as guitarras / e as melodias intensas… / Partiram-se as
cordas tensas / que eram enormes amarras, / a separar-me das
charras, / medíocres existências!…
Um corte
que se faz, sobretudo, pela escavação interior, na consciência
de que a exploração de um “corpo” exterior poderá revelar a
sujidade de uma alma, até aí escondida. O psicologismo
(decorrente, talvez, de leituras de Dostoievski e das intuições
especulativas de Freud) é evidente, assumido enquanto caminho
para o encontro com a verdade ontológica:
A
inconsciente devassa / cujo corpo é uma tulipa, / esguio como
uma ripa, / airoso como o da garça!… / A perturbante comparsa /
transmudou-se em suja pipa.
A proposta
do poema inicial de Saúl Dias é, no entanto, consequente. Não se
dirige aos outros, mas a si próprio. O lirismo da incessante
escavação/desvendação interior é assumido pelo sujeito poético:
Que os
meus versos sejam líricos / e me desvendem!… Ascendam / e –
maravilha! – se acendam / quando a noite toda em círculos, /
como o falar dos ventríloquos, / de ignoto brota… se estendam!…
// Que eles sejam o reflexo / de tudo o que me embriaga: / esta
ânsia que me alaga, / e as exigências do sexo, / e os
pensamentos sem nexo, / e aquela hora toda chaga… // e esses
minutos todos / ferindo-me quais punhais, / e risos, lágrimas,
ais, / e rios de oiro e de lodo, / e esse vago, estranho modo… /
isto tudo… e mais e mais…
O
resultado expressivo, vertido em textos versificados, é no
entanto o da incompletude. Fragmentos poéticos resultantes de um
ser fragmentado, imperfeito, são assumidos pelo autor textual
enquanto excrescências também imperfeitas. A ironia remata o
poema, como forma de desconstrução da solenidade que, por vezes,
rodeia o ideal romântico do poeta, enquanto figura superior,
aureolada. O triângulo poético pinta-se no chão, lembremos. Não
é apenas uma humildade ritualizada, feita de falsas modéstias.
Trata-se de um sarcasmo auto-crítico, que deseja destruir a
vaidade de ser poeta:
Os meus
poemas bizarros / quase nunca os acabo. / São um luxo de nababo
/ p’r’os meus nervos afiados. / Inacabados, quebrados, /
lembram-me galos sem rabo.
Saúl Dias
irá aprofundar (por vezes modificando pequenos pormenores) estes
propósitos ao longo da sua obra curta, quase bissexta. A escolha
da onomástica literária não é alheia a este poema-prefácio. Saul
foi o primeiro rei de Israel escolhido por Javé, destronado por
David, devido à sua ignomínia. A unção (real ou poética), parece
dizer-nos, pode ser revogada a qualquer momento se a soberba
pretender elevar a criatura acima do criador. Dias parece ser,
simplesmente, os dias vividos, o quotidiano passado conservado
na memória, que o sujeito poético – seguindo as teorias de
Bergson – pretende restituir ao presente, iluminando-o,
dando-lhe assim capacidade para se projectar no futuro. Assim
no-lo indica um soneto publicado no livro
Ainda,
como cólofon:
Eu não
quero esquecer os dias que viveram. / Por eles escrevi estes
versos mofinos; / escrevi-os à tarde ouvindo rir meninos, /
meninos loiro-sóis que bem cedo morreram. // Eu não quero
esquecer os dias que enumeram / desejos e prazeres, rezas e
desatinos; / e, em loucuras ou entoando hinos, / lá na Curva da
Estrada, azuis, desapareceram. // Eu não quero esquecer dos dias
mais felizes / a bênção branca-e-astral, lá das Alturas vinda, /
nem tampouco o travor das horas infelizes. // Eu não quero
esquecer… Quero viver ainda / o tempo que secou, mas que deixou
raízes, / e em verde volverá, e florirá ainda…
Rei
destronado à procura dos dias perdidos? Assim parece ser. Ente
desdobrado, “os dias consome / a cantar ao desafio, / ao desafio
consigo” (Essência).
Saúl Dias não parece considerar-se sequer poeta. Se fala com voz
própria quando trata de reflectir sobre a estrutura muscular e
óssea do poema, esta personagem criada por Júlio Maria dos Reis
Pereira (talvez imagem espelhada de si próprio) pronuncia-se
sobre o poeta (e dirigese ao poeta) sempre como de alguém
exterior a si, como de uma terceira pessoa. Descreve-lo como um
ser ideal, fora do mundo, asceta e mendigo, vagabundo, louco,
visionário, humilde, recolector de imagens visíveis ou
invisíveis, transmissor de emoções, de sentimentos e de
experiências, solitário, temerário, eternizador dos instantes
“Uma palavra quente! / Uma palavra para todo o sempre!”, ao
lutar contra “o Tempo / irreversível e eterno”, com “a pretensão
/ de que [um] intenso clarão / [é] um sinal lá dos céus, / e de,
no meio do assombro, / [pressentir] a mão de Deus / tocar-lhe,
amiga, no ombro” (Essência).
Um ser distante de si – como se revivesse o cenário bíblico de
um Saul impotente e transviado, substituído por David, o
verdadeiro rei e poeta.
Nisto
tudo, há a procura da leveza, expressão do pensamento essencial
que só se concretiza no extremo rigor da exactidão de uma
palavra:
Na tarde
longa / imaginei um longo poema. / Depois, / fui-o encurtando /
e reduzi-o a pequenos versos. // Quisera que os meus versos /
fossem duas palavras apenas, / aéreos como penas, / leves / como
tons dispersos… |
Sangue,
1952
Ao longo
de toda a sua busca, Saúl Dias vai encontrando “receitas”,
expressas em diversas artes poéticas que tenta concretizar. À
maneira de Rainer Maria Rilke, pensa que “Versos / escrevem-se /
depois de ter sofrido. / O coração / dita-os apressadamente. /
E a mão tremente / quer fixar no papel os sons dispersos. // É
só com sangue que se escrevem versos”
(Sangue).
O poema, “estranha rosa / rubra e preta”, abre-se “na alma do
poeta”, porque é a fixação de ‘uma pena’, de quem sente
“estoirar / o calabre / do coração, / nostálgico do Éden… e deve
deixar o coração sangrar” (Gérmen).
Sujeito à
transitoriedade da existência, o texto poético, nascendo da
meditação (ascética?) nos domínios da imaginação, é “Um esquema
dorido. / Um teorema / que se contradiz. / Uma súplica. / Uma
esmola que transmite as dores do Homem, vividas umas, sonhadas
outras… / (Inútil destrinçar.)” (Essência).
A Saúl
Dias interessa, sobretudo, a capacidade fertilizadora do texto,
matéria orgânica que alavanca o crescimento do mundo e a
ressurreição da vida. Como as rosas, que não devem conservar-se
em uma jarra, porque murchariam:
Joga-as
fora! / A valeta / que dessora / húmida, quente, / fá-las-á
reviver / em húmus, sangue, lume… // E, rosas outra vez, / serão
cor e perfume, / abraçando o jardim / de lés a lés… | Poema
inicial de
Gérmen
Na hora da
morte (isto é, no final da narrativa que se inicia com o
primeiro poema de Saúl Dias e termina com o último publicado em
um livro em vida), o autor textual – que vê na Poesia um
vislumbre de alegria, mesmo na doença e na dor “Mesmo na dor / a
sua alma é contente / se uma rima fugace / poalha de harmonia /
um verso recortado…” (Essência)
– sabe que o poeta, cessante enquanto ser biológico, não cessa
enquanto ser virtual e verbal que é. Como José Duro nos versos
finais de
Fel
(1898), sabe que “enquanto escreve / vive ressuscitando fugidias
horas / mudadas em auroras…” (Essência),
porque a permanência de um escritor, ser feito de palavras, se
deve à actividade revivificadora dos leitores, multiplicadores
de sentidos.
O
testamento de Saúl é, no entanto, mais uma manifestação do
sentimento de incompletude de um caminho. O poeta, até aí um ser
ideal a alcançar na sua eminência, passa a coincidir com o
sujeito da escrita. Poeta-desejo, sente que nunca alcançou a
meta desejada “Dias e dias / a tentar um verso, uma rima… / um
pobre verso, uma pobre rima…” (Vislumbre),
conseguindo manter a alegria da ingenuidade infantil “no coração
do Poeta / há música, foguetes / e bandeiras ao vento… / como
outrora, na infância, nalgum dia de festa…” (Vislumbre).
No fundo,
sabe que a poesia é um interminável exercício de depuração
interior, manifestação da “sabedoria da linguagem, […] uma
aventura de linguagem” (Ruy Belo, 1970). Um poeta ideal ou
idealizado chegaria ao fim. Na sua humildade, Saúl Dias tem a
convicção de que ficou a meio do caminho. Numa estrutura
circular, o poema final da sua obra retoma, meditativo, um
sentimento semelhante ao expresso, de forma irónica, no início:
Só
conheço, talvez, uma palavra. // Só quero dizer uma palavra. //
A vida inteira para dizer uma palavra! // Felizes os que chegam
a dizer uma palavra! | Vislumbre
3.
Júlio Reis
Pereira afirmava que a Série Poeta contava a mesma narrativa
presente nos poemas de Saúl Dias. Podemos afirmar que os
desenhos e as pinturas do conjunto pictórico mais conhecido de
Julio legendam (lêem e interpretam) os poemas. E não apenas esse
ciclo coerente, mas muitas outras obras plásticas que, ao
contrário do que poderá parecer, não ilustram um texto, mas
iluminam-no, desverbalizando-o, de modo a torná-lo, talvez, mais
universal.
Praça onde
confluíram várias avenidas da arte européia do século XX, foi
José Régio quem – em nosso entender – melhor compreendeu essa
centralidade do pintor. Não existem influências, se as
entendermos enquanto processo epigonal. Como refere o autor de
Davam grandes passeios aos domingos…,
num texto de 1967, na pintura de Julio:
[…] cabem
manifestações tão diversas como a de um Expressionismo violento,
alimentado por uma tendência caricatural, dramática, satírica; a
de uma espécie de Dadaísmo muito pessoal (ou Ultra-realismo)
gerado no pendor tão instintivo como consciente para certos
achados da arte infantil ou popular; a de um Realismo mágico –
feliz expressão que gozou em tempos de certo prestígio –
transfigurador da realidade por meio das semialucinações do
sonho; a de um decorativismo fundado na cor e na construção; ou
a de um moderno Classicismo banhado no lirismo congénito […].
Em um
artigo de 1935, o mesmo autor já diagnosticara:
Do
Futurismo, do Cubismo, do Dadaísmo, do Expressionismo, do
Super-realismo […] resulta, embora não sistematicamente, o que
nesses quadros e desenhos é mais característico de uma certa
época de pintura. Neles perpassam ecos das vozes dos seus
principais criadores ou intérpretes, e efeitos da vasta
literatura especulativa ou crítica sobre tais escolas e mestres.
[…] / […] Nada, porém, […] se refere propriamente ao íntimo da
obra de Julio. […] A aceitação de quantas inovações e liberdades
trouxe à pintura moderna não aparece na obra de Julio senão como
meio da mais completa expressão. Por isso se não poderá dizer
dele que seja um futurista, um cubista, um super-realista, ou
qualquer ista puro – ainda que dos vários ismos se aproveite a
sua arte. E dizendo que ela se aproveita deles, disse tudo.
Ao
olharmos para a globalidade da obra pintada e desenhada pelo
pseudónimo de Saúl Dias, mesmo para aqueles quadros nos quais
mais se nota uma expressão sarcástica, a primeira e principal
impressão com que ficamos é a da permanência em todo o lado de
uma extrema leveza. Italo Calvino, em um ensaio dos anos 1980 (Seis
propostas para o próximo milénio,
1990), considerava a leveza um os valores fundamentais a serem
transmitidos como herança ao futuro (que já começámos a viver).
Em conjunto com a exactidão e com o rigor (propostas também para
este novo tempo), a leveza e a luminosidade da arte verbal e
não-verbal criada por Júlio Maria dos Reis Pereira faz dele não
só um autor universal, como o “proprietário” de uma obra que o
futuro ganhará em observar, ler e legendar.
O irmão de
José Régio contou certo dia um sonho que tivera, no qual se via
avaliado no dia do Juízo Final. Perante o peso dos seus pecados,
colocou na balança das virtudes quanto criara de belo na
Série
Poeta.
A balança começou a pender para o lado da salvação. Em 1980,
“dez anos passados sobre essa antevisão”, assaltava-o uma
dúvida: “terão ainda esses desenhos peso suficiente para forçar
a descer o prato”? A pergunta ficou sem resposta. Não sabendo
nós responder – por não conhecermos totalmente a cotação junto
de tal juiz das boas obras artísticas (apesar de vermos hoje
beatificado pela Igreja um pintor como Fra Angelico) –,
resta-nos uma convicção interior. Podemos até estar enganados;
acreditando nós que a Justiça não será cega no futuro,
parece-nos contudo que nesses tempos se julgará toda a obra de
Saúl Dias Julio (não só a
Série
Poeta,
mas a sua pintura inteira e toda a sua poesia) como virtudes e
valores a preservar e a transmitir. |