A passagem
de uma quimera: Sebastião Cícero dos Guimarães Passos
Lêdo
Ivo
A
fundação da Academia Brasileira de Letras, em 1897, foi
iluminada pelo esplendor do Parnasianismo. Entre os seus
fundadores figuram grandes artistas do verso, como Olavo Bilac,
Alberto de Oliveira e Raimundo Correia, e grandes artistas da
prosa, como é o caso de Machado de Assis (também excelso artista
do verso, com a sua ardilosa competência formal e emoção
contida), Joaquim Nabuco, Rui Barbosa e Coelho Neto. São todos
eles integrantes de uma grande geração literária e política que,
com a nitidez de seus talentos pessoais e o cunho específico de
suas manifestações artísticas, se vinculava à doutrina vigente
na época – uma doutrina em que a arte se convertia numa espécie
de religião e impunha aos seus sequazes um compromisso com a
durabilidade. Os sonetos marmóreos de Bilac, Alberto de Oliveira
e Raimundo Correia e a prosa em que Machado de Assis se esconde
de si mesmo, e a si mesmo, num esplêndido processo de
emascaramento pessoal, hão de simbolizar, para sempre, esse
tempo ditoso da literatura brasileira, em que esta, após as
explosões e efusões do Romantismo, exprimia o seu
amadurecimento, dentro dos preceitos de um Parnasianismo e um
Realismo regados pelas águas de incontáveis riachos obscuros.
É nesse
cenário magnífico que o leitor de agora deve acolher o poeta
alagoano Sebastião Cícero dos Guimarães Passos, nascido em
Maceió, a 22 de março de 1867.
Hoje,
transcorrido um século de criação da Academia Brasileira de
Letras, ele é apenas um nome – ou menos que um nome. De tudo
quanto escreveu, em verso e em prosa, com acentos tristonhos ou
jocosos, havia restado um soneto, o popular “Teu lenço”, parada
obrigatória nas antologias, até que essses preciosos escrínios
deixaram de ser adotados nos colégios. Mas o leitor que se
aproximar do grave e reflexivo “Guarda e passa” obterá a medida
exata do seu talento, de sua capacidade formal e espelho de
todos os sonhos que ele sonhou.
No dia 28
de janeiro de 1897, Guimarães Passos está presente à sétima e
última reunião preparatória destinada à instalação da Academia
Brasileira de Letras. É, assim, um dos seus fundadores. As cores
do contraste realçam o império de uma hierarquia literária que,
pelo que tenha de incômodo ou refutável – ou mesmo de
arbitrária, dada a sua eventual infixidez –, não deve ser
desprezada. E, ao redor dela, de seu caprichoso jogo de luzes e
sombras, a ronda dos passantes literários inscritos na lista
negra da posteridade ratifica a existência da literatura como um
sistema – uma escola de esboroamentos e olvidos.
O poeta
alagoano, que morreu em Paris, a 10 de setembro de 1909, e
desapareceu com a sua morte, não pode e não deve ser colocado ao
lado de Olavo Bilac, Raimundo Correia e Alberto de Oliveira, a
gloriosa tríade do nosso Parnasianismo. A sua estatura é bem
mais modesta. O convívio acadêmico de que usufruiu tem a
justificá-lo não só a aceitação e tolerância de que gozam os
passageiros do mesmo barco da contemporaneidade, cercados de
afetos e solidariedade geracional, como ainda a singularidade de
sua condição.
Na escola
que impunha aos seus senhores e vassalos a doutrina da
impessoalidade e da durabilidade – e também de uma impassividade
muita vez transgredida belamente – e exigia que eles fizessem
poemas como quem esculpe e cinzela, conferindo-lhes a perduração
das joias e estátuas, Guimarães Passos ficou a meio caminho. Os
poemas e sonetos de Versos de um simples (1891) e
Horas mortas (1901) quase nunca alcançam o páramo pétreo.
Decerto,
quando menino, em Maceió, ele se lambuzou muito de açúcar e
comeu muito doce de coco. A sua textura lírica aponta para as
matérias moles e fofas, e, com o seu parnasianismo dulcificado,
ele é quase um romântico retardado – um romântico que, sob a
férula da nova escola triunfante, fosse obrigado a colocar os
seus versos molengos e correntios, e até diáfanos, numa forma ou
numa fôrma imponente ou hierática, assim como as
dissimuladas ou austeras damas do Segundo Reinado colocavam os
seios à Renoir na prisão dos espartilhos.
A esse
propósito, vem a talho de foice a observação de Paulo Barreto (
João do Rio), seu sucessor na cadeira n° 26 da Academia. Em seu
discurso de recepção, o grande prosador de Dentro da noite,
que enriqueceu a nossa literatura com uma nota nova, assentada
nos mistérios e errâncias das noites inconfessáveis, estabelece
uma diferença entre a geração boêmia de Guimarães Passos e a sua
própria geração. “Quem o substitui trocou sempre a quimera pela
curiosidade, o entusiasmo pelo fato, o próprio sentimento pela
sensualidade dos sentimentos alheios.” Para ele, Guimarães
Passos, “o último romântico”, foi um ator, enquanto lhe cabia, a
ele João do Rio, a condição de espectador – “o espectador
incompleto dessa sociedade que se constitui”. E numa certeira
identificação de si mesmo, considera-se “aquele que fixa
tumultuariamente alguns aspectos do esplêndido espetáculo”.
O
esplêndido espetáculo era a fervilhação e a renovação urbana do
Rio de Janeiro no começo do século, com as avenidas que se
abriam, os dias considerados vertiginosos, o vício e a graça
unidos no mesmo segredo. A observação de João do Rio é
sustentada pelo conceito estético da modernidade. O espectador
de Os dias passam, com a sua prosa poética e nervosa
concentrada nas torpitudes humanas da grande cidade, e a sua
nova e insólita maneira de ver e de olhar, avulta na história
literária brasileira como o nosso primeiro e primoroso voyeur;
e ainda como o incansável e misterioso flâneur que, no
conto “O bebê de tarlantana rosa”, revelou a modernidade
perversa do Rio Janeiro, com o seu dia tornado noite pelo
cinematógrafo e a sua noite equívoca povoada de pederastas,
prostitutas e drogados – uma noite que, mesmo em sua moldura
tropical, se afeiçoa às longas noites de Restif de la Bretonne,
Baudelaire e Gerard de Nerval.
No novo
ambiente cosmopolitizado que fustigava a boêmia literária, e
sublinhava outros valores e condutas, não é de admirar-se que
Guimarães Passos tenha sumido completamente, como fantasma de
castelo inglês.
O perfil
boêmio de Guimarães Passos suscitou largo anedotário, que,
iniciado em sua vinda para o Rio, quando tinha vinte anos (o
navio aportado em Maceió em que se encontrava, para despedir-se
de amigos, se fizera ao largo sem que ele notasse), grassou até
a sua morte, em Paris. E essa foi uma morte romântica: de poeta
tuberculoso; uma morte na solidão de um quarto de hotel, após
tanto rumor e efusão, e o riso suscitado por tantas peripécias
miúdas. Mas, com o fluir dos dias, a torrente anedótica cessou.
E vieram o silêncio e o esquecimento, anulando as ocorrências e
figuras daquele tempo admirável, em que Machado, Rui, Joaquim
Nabuco, Coelho Neto, Bilac e Raul Pompeia não se limitavam a ser
grandes artistas literários, e eram também homens de jornal e de
revistas, ao alcance do público, numa presença matinal como a do
pão.
A edição
das poesias de Guimarães Passos, promovida pela Academia
Brasileira de Letras e estabelecida pelo filólogo e pesquisador
Adriano da Gama Kury – que, com o seu plácido saber e empenho em
buscar e descobrir o mínimo e o despercebido, tem algo de um
microbiologista –, destina-se a devolver ao sol e à noite de
hoje um poeta que, vivo, usufruiu de uma popularidade convizinha
da glória. Um poeta que foi companheiro de Machado de Assis e
Olavo Bilac – e, em parceria com este, publicou um Tratado de
versificação e um Dicionário de rimas. Um poeta menor
e secundário, seja, pronto a espelhar a sua dor bem doída e suas
lágrimas nem sempre evaporadas. Mas há em sua menoridade e
secundaridade uma emoção continuada, uma astúcia formal e uma
singeleza e melancolia que enxotam do nosso espírito a gorda
exigência estética e a exclusão desdenhosa. Há um certo encanto.
Ó tu,
que turvas o palor da neve,
Tu, que
as estrelas escureces, deixa
Meu
coração dormir. Pisa de leve. |