Os fios encantados
da poesia de Sérgio Campos
Floriano Martins
Somente
a paixão é suficientemente cruel para nos trazer de volta à
vida. Celebrá-la é dar-nos a ilusão de que podemos reconquistar
os prazeres perdidos. A representação, neste sentido, tem o dom
de nos reconduzir ao caos original, ao palco de trevas em que
fundamos todos os deuses, à casa da ardilosa solidão que nos
multiplica em seres doados aos mistérios vorazes do mundo. No
pulsar cíclico das representações, na convulsiva ordem de seu
canto, caminhamos ao encontro da poesia. Sempre a ilusão de
retorno a um tempo que jamais viveremos. Reside aí uma paixão
solene que nos leva às palavras, sem que através delas jamais
alcancemos desvelar nosso destino. Um teatro sombrio do ser
entregue às mãos da poesia. Esta encantação sutil e dolorosa é o
que nos revela, em particular, a obra poética de Sérgio Campos.
Nascido em
1941, o brasileiro Sérgio Campos nos traduz a imagem de um poeta
obstinado na criação como atividade reveladora do espírito.
Rigor e substância encontram-se nele empenhados na leitura dos
mínimos gestos que nos delimitam. Compromisso sólido, mas
sobretudo uma paixão. Como ele próprio assegura: “Diria que a
experiência com as palavras define o poeta. Ele precisa ter uma
relação especial, única em relação a elas. Precisa delas como do
próprio ar, de ouvi-las em busca de novos sons, poli-las,
redescobrindo sob o azinhavre a legenda dos mitos, dispô-las em
conjuntos para observar seus conflitos e conciliações, povoar
delas seu pátio de utopias.”
O mais que
se diga soará como uma sala de ecos. Os fios encantados da
linguagem movimentam a usina de sentidos em que urdimos o
cenário de nossa precária existência. A poesia é nosso prato de
sonhos e também a lanterna perdida cuja luz sutil o acaso nos
aponta. A grave contingência de tudo quanto idealizamos. Em um
poema debruçado sobre a mítica górgona, Sérgio Campos assim
desfia sua voz: “Nossas imagens oscilam / somos o risco de nos
perder / entre homens deuses e animais”. A poesia é um
inestimável amuleto em nosso trânsito incerto pelos reinos de
Hades. Em outro poema nos revela uma imagem que é a própria
súmula de sua poética: “Orfeu regendo os remos de Argos”. O
poeta em seu ofício de sombras, erguendo com seu canto uma outra
dimensão do abismo ulterior de que nos alimentamos.
Os poemas
são movidos pela memória, são sua expressão coerente, constituem
o fundamento do tempo que inauguramos a cada experiência, corpos
de linguagem que são. Ruptura e integração: através de tais
margens instauram uma consciência crítica, erguem a síntese de
suas investigações. Sua razão sustenta-se em constantes
interrogações. Não vivem da imagem encontrada, mas sim do abismo
entre a origem e seu testemunho. O curso temático da poesia de
Sérgio Campos, ao eleger como recursos uma predileção de ordem
helênica e o que Ivan Junqueira tão bem situa como “delicada
fiação de enredos que se diriam domésticos”, o faz acentuando
esta fundação da palavra a partir da memória. Contudo, se o
mundo verbal é, como em Góngora, uma negação do mundo real, aqui
também se poderia falar em afirmação de uma realidade outra,
enriquecida pela memória e o curso incessante de seus
descobrimentos, como se dá na poesia do cubano José Kozer
(1940). Além disto, Sérgio Campos prima por uma concisão verbal,
sendo por tal concisão pautado seu esplendor. Para ele o excesso
consiste em um exercício absoluto de economia de meios. Seu
duplo curso temático instaura uma tensão que nos conduz a uma
aventura de natureza ontológica. Se até Móbiles de sal
(1991) essas duas vertentes temáticas apenas compartilham o
curso existencial dos livros, experimentam em A cúpula e o
rumor (1992) uma audaciosa e feliz comunhão. Mitologia
doméstica - elogio crítico da casa e seus elementos, recantos e
cintilações -, aliada a um ideário épico de exílios e
conquistas: eis aqui sua lúcida jornada imaginário adentro,
caminho que o aproxima cada vez mais do sentido essencial de uma
religiosidade cósmica - fonte inaugural de toda poesia -,
inseparável de uma exaustiva exigência de procedimentos,
recursos, ordenações. San Juan de la Cruz, Hölderlin, Perse,
José Ángel Valente - seus vigorosos companheiros de viagem.
A
tendência helenizante aqui referida - cujo registro se faz
sobremaneira com os recursos da parábola e da alegoria -
torna-se singular na poética de Sérgio Campos exatamente por sua
grande potência lírica. A presença quase constante de um
narrador, e seus recontares a bordo de um abismo pessoal - o
confessional só se realiza em seu transbordamento, em sua
voragem -, destaca-se pelo lirismo inquietante com que tece sua
trilha. O próprio poeta melhor situa tal virtude ao referir-se a
ela como um “lirismo fabular”, aventura enriquecida ainda mais
por sua paixão etimológica, seu notável empenho de restauração
da dignidade da palavra, dever natural de todo grande poeta.
Desta maneira, há que se por em destaque uma profunda
arqueologia da forma - sem, contudo, sobrepor-se à sua alma
gêmea: o conteúdo -, expressa em notáveis utilizações de
sonetos, tercinas, sextinas, e com acentuada inclinação rítmica,
cumprindo assim um desafiante percurso polarizado pelo
classicismo e a modernidade. Trata-se portanto de uma poética de
múltipla abrangência, cuja revelação em curso nos traduz um dos
caminhos mais valiosos da poesia brasileira em todos os tempos.
Em
permanente estado crítico, Sérgio Campos publicou em 1992 uma
plaquette intitulada Ponto & contraponto, lugar de
diálogo com um ensaio do espanhol Antonio José Trigo,
configurando-se naquilo que o próprio autor denomina de
“subsídios para uma poética”. Ali situa suas convicções e
inquietudes, a opção “por uma poesia que incorpore elementos da
modernidade, na dinâmica geral dos conteúdos, com extremo rigor
formal”, a lembrança sempre necessária de “que a poesia é arte
da palavra, que a palavra é o ser da poesia”, a primordialidade
do tempo da leitura, a defesa de uma escritura poética de
natureza ontológica que estabeleça uma projeção do humano, que o
sublinhe como elemento fundante de toda poesia. Por tais e
encantados fios conduz sua palavra.
Pouco
antes de sua morte, em 1994, Sérgio Campos publicaria o livro
Mar anterior. Poesia selecionada e revista 1984/94. Mais do
que simples seleção de poemas de outros livros, aqui podemos
falar de um livro outro, onde os poemas, além de revistos,
apresentam nova disposição, atendendo aos temas que se
mostraram, ao largo de dez anos de produção, mais entranhados em
sua obra. Lendo agora Mar anterior confirma-se o que já
havia assinalado anteriormente, ou seja, a incidência de uma
epopéia íntima, como característica fundacional dessa poética. O
próprio autor assim o comenta, em nossa correspondência pessoal:
“realmente, o epos se coloca em in-tensão no poema que,
no entanto, não é heróico, mas em essência lírico, o que lhe dá
essa sensação de intimismo”. |