Teixeira de Pascoaes nas palavras de Mário Cesariny de
Vasconcelos
António Cândido Franco
– Conheceu pessoalmente Teixeira de Pascoaes?
– Estive com ele em Amarante, em 1950.
– Decidiu ir a Amarante, conhecer Teixeira de Pascoaes, sem
mais?
– Quem me levou foi o Eduardo de Oliveira, o autor de
Monólogo, um tipo extraordinário, fora do vulgar, que parece
que foi de bicicleta para Paris. [1] Conheci os Oliveiras
(O Eduardo e o Ernesto) através do Eugénio de Andrade, que era
muito amigo deles. O Pascoaes fazia uma conferência no Teatro
Amarantino sobre Guerra Junqueiro. [2] Deu-me no fim a
conferência impressa em livro com a dedicatória, “Ao meu querido
confrade…” e seguia-se o meu nome. Conheci portanto o Pascoaes e
ouvi-o falar durante mais duma hora. Mas nessa altura eu não
sabia ainda quem ele era.
– Que lera de Teixeira de Pascoaes, quando o conheceu, no ano
de 1950?
– Apenas o Regresso ao Paraíso. [3] Era pouco, mas
dava para perceber a importância dele. De qualquer maneira,
estava muito longe naquela época de perceber a verdadeira
importância do Pascoaes. Pressentia apenas que se tratava dum
poeta invulgar, mas pouco mais.
– Quando se deu conta que Teixeira de Pascoaes era Teixeira
de Pascoaes, quer dizer, para si, um poeta mais importante que
Fernando Pessoa?
– Isso foi muito mais tarde. Eu li e leio na velhice o que devia
ter lido aos dezasseis anos. Olhe, o René Daumal, por exemplo,
só agora o vou ler. Tenho ali há anos o Mont Analogue e
nunca tive paciência para o ler. Com o Pascoaes passou-se o
mesmo. Só o descobri a sério já haviam entrado os anos sessenta.
– A edição crítica da obra de Teixeira de Pascoaes – cinco
volumes de versos e seis de prosa, publicados entre 1965 e 1975
– começada a publicar nessa altura, organizada por Jacinto do
Prado Coelho, teve para si alguma importância nessa descoberta?
– Muita. Tenho-a toda. E sabe que nunca lhe pagaram nada por
aquele trabalhão todo? Nada, nem um tostão. Nem a ele, nem à
família do Pascoaes.
– E o livro de Alfredo Margarido, dedicado a Teixeira de
Pascoaes, publicado em 1961, não ajudou em nada à descoberta do
Pascoaes?
– Ajudou. Tenho dois exemplares do livro. Foi lá que dei com a
máscara do Pascoaes pintada pelo Columbano. É reveladora.
– E o livro do Olívio Caeiro, Albert Vigoleis Thelen no
Solar de Pascoaes, dedicado às relações de Teixeira de
Pascoaes com o seu tradutor alemão!
– Também. Mas esse só veio vinte anos depois, em 1980. [4]
– Quando foi a primeira vez a São João de Gatão, à casa de
Pascoaes, que o Olívio Caeiro chama solar mas que
Pascoaes chamava apenas casa?
– Em 1950, com o Eduardo de Oliveira, [5] na altura da
conferência sobre Guerra Junqueiro. Os Oliveiras eram muito
amigos de Pascoaes; já o pai deles, o médico Vasco Oliveira, o
era. Vinha de família a amizade. Fomos a Gatão e a impressão que
me ficou foi conventual. Não havia um único móvel na casa. Foi
aí que o Pascoaes me assinou o exemplar da conferência. “Ao meu
querido confrade…”, escreveu ele. Voltei nos anos sessenta e
fiquei muito amigo do João Vasconcelos e da Maria Amélia, que
tinham a casa com eles. Depois disso voltei muitas vezes. O João
morreu em 1985 e a Maria Amélia ainda lá vive. [6]
– Como conheceu o João Vasconcelos, filho de João Teixeira de
Vasconcelos, irmão de Teixeira de Pascoaes e herdeiro da casa de
São João do Gatão?
– Isso passou-se há quarenta anos. Não consigo lembrar-me. Tudo
o que sei é que o D’Assumpção, que também visitou muito a casa
de Gatão e lá trabalhou às temporadas, o conheceu depois de mim.
– Os seus companheiros do grupo “Os Surrealistas” conheciam
Teixeira de Pascoaes?
– Enviei ao António Maria Lisboa o Regresso ao Paraíso,
que tinha e que lera. Há carta dele notificando o envio. [7]
Fomos os dois aos Fenianos, no centro do Porto, ler o
Erro-Próprio, manifesto-conferência do Lisboa. Tenho pena
que o Teixeira de Pascoaes não estivesse na assistência. Se
estivesse, tinha começado aos saltos. O Seixas [Cruzeiro
Seixas] também leu o Pascoaes por meu intermédio. Publicámos
os dois os Aforismos, numa colecção em que saíram três
cadernos. Não tenho nenhum. Nem um exemplar.
– Publicou em 1972 com o Cruzeiro Seixas os Aforismos e no
mesmo ano a Poesia de Teixeira de Pascoaes. Como é que
esta segunda antologia aconteceu?
– Foi um convite da Natália Correia, que estava então na editora
Estúdios Cor.
– Os surrealistas do café Gelo, que se manifestaram no fim da
década de cinquenta e na seguinte, conheceram e leram Teixeira
de Pascoaes?
– Deve haver referência do Ernesto Sampaio ao Pascoaes. [8]
Mas mesmo o Ernesto Sampaio não leu o Pascoaes todo. A geração
do Gelo tentou ser surrealista debaixo duma ditadura fascista. O
abjeccionismo deles está mais próximo do existencialismo que do
surrealismo. Se petiscaram alguma coisa do Pascoaes foi por aí.
O mesmo para o Alfredo Margarido.
– Qual o livro que mais lhe interessa de Teixeira de
Pascoaes?
– O São Paulo é forte, mas o São Jerónimo é ainda
bem melhor. Foi com esses dois livros que ele conheceu o Albert
Vigoleis Thelen, seu tradutor na Alemanha e na Holanda. Sabe que
o Pascoaes tinha uma redoma em vidro para assistir às
tempestades? Aquilo é que lhe dava a energia mental fantástica
que ele tinha.
– E o que diz, Mário Cesariny, de Santo Agostinho, a
última hagiografia, de 1945?
– A Santa Mónica bêbeda, não é? Nunca consegui acabar o livro,
porque aquilo é cá uma saraivada de granizo… Ficamos cheios de
buracos e o meu corpo já não aguenta tanta pedra. Devia-o ter
lido na sua idade ou mais novo ainda. Agora é tarde. Li-o no
entanto o suficiente para me aperceber da sua importância. O
Pascoaes deve-o ter escrito numa altura em que magnetizou várias
tempestades.
– E o Duplo Passeio?
– É um livro raro. Mas o melhor do Pascoaes é o Bailado.
Tenho-o na primeira edição, encadernado e tudo. Foi o livro que
me revelou a força poética que havia no Pascoaes. É o livro dele
a que estou mais ligado.
– Recorda-se na segunda parte do Duplo Passeio da cena
da catedral onde São Jerónimo desce duma tela e vem dançar feito
esqueleto, de cálice na mão, com uma prostituta?
– Sim. Nunca conseguiram converter o Pascoaes ao catolicismo
romano, ou mesmo tão-só ao catolicismo. Foi sempre um herético.
Por isso é que preferem o Leonardo Coimbra, que foi muito amigo
do Pascoaes mas se acabou por converter à Igreja, coisa que
nunca aconteceu com o Pascoaes.
– Refere-se a quem?
– A Mário Garcia, por exemplo, que sabe muito sobre Pascoaes. O
livro dele é bom, [9] mas no fim o Leonardo parece sair
mais valorizado que o próprio Pascoaes, a quem é dedicado o
livro.
– Não valoriza a Filosofia Portuguesa?
– Não valorizo, nem desvalorizo. Prefiro chamar-lhe a filosofia
dos portugueses. [10] Como movimento não me interessa;
enquanto obra de personalidades independentes, sim. Olhe o
Agostinho da Silva é forte, apesar daquilo vir também de outro
lado qualquer, que ainda não se percebeu onde fica. E os estudos
de António Telmo são muito bonitos. É o mínimo que se pode
dizer.
– Foram eles que mais falaram do Teixeira de Pascoaes quando
todos se calavam?
– É verdade, apesar dalguns deles falarem muito do Pascoaes,
para depois virem dizer, como o Mário Garcia, que o Leonardo é
melhor.
– Leu o Leonardo Coimbra?
– Sim, o Criacionismo, onde ele fala do Pascoaes. Tem
coisas boas, mas não me convenceu. Pelo menos não me convenceu
tanto como o Pascoaes, que foi uma revelação tremenda.
– Por que razão o Mário Cesariny, tendo conhecido Teixeira de
Pascoaes em 1950, só vinte anos depois é que se apercebe da sua
importância?
– Eu comecei como neo-realista e o neo-realismo era uma escola
de preconceitos muito rígidos. Não nos deixava ler isto e não
nos deixava fazer aquilo e aqueloutro. Era uma orquestra de
proibições. Fui muito marcado por isso.
– Mas o Mário Cesariny depressa se libertou da influência
neo-realista…
– Houve coisas que ficaram no subconsciente. O aspecto reactivo
ao Pascoaes deve ter sido uma delas, tanto mais que vinha de
antes. Foi das coisas mais duras de roer ao longo da segunda
metade do século XX em Portugal. Ainda hoje você sabe como é.
Pascoaes é persona non grata. Ainda bem!
– Sabe que Óscar Lopes (v. entrevista ao jornal Público,
a propósito da décima sétima edição da História da Literatura
Portuguesa) [11] já deixou de considerar o Mário
Cesariny um poeta irregular, para o juntar agora a Teixeira de
Pascoaes, a quem considera um escritor provinciano, de terceira
classe, uns furos abaixo do Malheiro Dias?
– Desconhecia. Mas sinto-me muito honrado com a companhia. Não
podia estar melhor.
– Há quem diga que o Cesariny, hoje com 74 anos, se parece
fisicamente cada vez mais com Teixeira de Pascoaes, que
desapareceu deste mundo aos 75 anos?
– Só posso atribuir isso a um fenómeno surrealista, o acaso
objectivo, a que nós aqui, em português, chamamos
coincidências alarmantes.
– Por falar em “fenómeno surrealista”, que é feito do
surrealismo hoje?
– O surrealismo é sempre de hoje, nunca de ontem. Nada é tão
mistificador como falar da actualidade ou da inactualidade do
surrealismo. O surrealismo é de hoje, mas inactual, tão inactual
como um índio o pode ser. A actualidade é pequenina e
sempre de ontem. Viu, há pouco, o livro do René Guenon, que o
António Barahona me deu para eu perceber como se pode
ultrapassar o Breton por cima? A única coisa que vi é que o
Breton é inultrapassável.
– A propósito do António Barahona, conhece o opúsculo dele,
Os Dois Sóis da Meia-Noite, publicado em 1990, e dedicado
a Pascoaes e a Camões?
– Talvez o António tenha começado a ler o Pascoaes há mais de
trinta anos, no tempo do Gelo e da edição das Obras da
Bertrand, por indicação minha. Mas hoje aquilo é dele.
– Como se manifesta hoje o movimento surrealista?
– Existe um grupo em Paris, este um bocado fantasma; outro nos
Estados Unidos e outro em Madrid. Este de Madrid não é fantasma,
é fantástico. Tem uma publicação regular, de excelente
qualidade, apesar das relações com a imprensa estarem
obstruídas. O surrealismo está vivo, mas oculto, como acontece
de resto com Teixeira de Pascoaes. Daqui a cem anos será
diferente.
– Teixeira de Pascoaes e Fernando Pessoa?
– Pessoa tinha uma mesa de café para escrever e a rua com os
carros. Pascoaes tem um castelo e uma serra de bronze, mesmo em
frente. O que é que você escolhe?
– Compreendo. Quer dizer mais alguma coisa de importante
sobre Teixeira de Pascoaes?
– É preciso arranjar uma fotografia do Zé Cobra. O Zé Cobra foi
o criado particular do Pascoaes. O Pascoaes foi padrinho duma
filha dele, a Adelaide, que chegou a herdar terras e manuscritos
do padrinho. É uma figura até hoje sem rosto. [12]
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