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2000-2010
 

 

 

 

BANDA LUSÓFONA | PORTUGAL

Teixeira de Pascoaes | (1877-1952)

Teixeira de Pascoaes nas palavras de Cruzeiro Seixas

António Cândido Franco

Vi-o pela primeira vez numa livraria de Lisboa, Benfica, ano de 2005. Antes apenas trocáramos cartas (recordo uma das primeiras, talvez em 2001, com fotografia sua do Luís Miguel Nava, na casa que tivera em São Braz de Alportel). Parecia um príncipe da Renascença, um humanista de Florença do século de Petrarca ou de Lourenço de Médicis. Tinha um porte nobre e soberano. Prendeu o público durante quase uma hora com os versos que disse de memória. Era belo e tinha além disso uma memória prodigiosa. E isto aos oitenta e cinco anos. Imaginei o que aquele homem teria sido aos trinta ou quarenta anos, quando o Sol lhe aureolava a cabeça e nenhuma sombra lhe passava pelos olhos fosforescentes. Que beleza perfeita! Que águia solitária e altaneira! 

Entre os versos que recitou com uma segurança de fazer inveja a qualquer actor recordo-me dos de Mário Sá-Carneiro. No fim não resisti a abraçá-lo, balbuciando a medo o meu nome e entregando-lhe algumas palavras minhas sobre Teixeira de Pascoaes. Um ano depois enviei-lhe a Viagem a Pascoaes. Foi duma generosidade inexcedível. Logo me enviou desenhos seus, manifestando o desejo de me encontrar. Só em 2008 o encontro se realizou, já ele recolhera, quase cego, a uma residência de idosos, no Estoril. Tinha felizmente a visita regular da Maria João, filha da Maria Amélia e de João Vasconcelos, da casa de Pascoaes, que vivia perto, em Caxias. Almoçámos num restaurante de Cascais, sobre o mar. Falámos de Teixeira de Pascoaes, Mário Cesariny (que lhe deu a conhecer a poesia do autor de Duplo Passeio no tempo dos “Surrealistas” e o levou depois, já nas décadas de sessenta e setenta, à casa de Gatão, onde passou a ser presença regular) e António Maria Lisboa. Melancolizava, quase em lágrimas, por dentro, ao falar (ou ouvir dizer) deste. Olhava em retrospectiva o passado do surrealismo português e afirmava como ele teria sido outro e melhor, arrasador mesmo, se o autor de Erro-Próprio não tivesse partido para sempre tão cedo, quase adolescente, com quase tudo por fazer e dizer.

Não havia naquele homem o mais pequeno resquício de tóxico escolar (faltou muito às aulas e livrou-se depressa, segundo então me disse, da António Arroio). Sob a acção livre da luz, que tanto ansiava e em que sempre vivera, todo o escuro carbónio académico, livresco e adusto, se fixara e retraíra na matéria verde da sua carne. Os  desenhos, as pinturas, as colagens, os objectos intervencionados, de que as mãos não desistiam, mesmo cego (ou quase), nada mais eram que o oxigénio, o ar puro e limpo que ele dava a respirar ao mundo, como a sua liberdade irredutível era a clorofila que lhe permitia a operação mágica em que a sua arte magna se tornara. Mais que um príncipe da Renascença, aquele homem era afinal um aventureiro (do espírito), um viajante marítimo (que de feito fora, durante anos e anos, visitando na geografia da Terra todo o antigo Oriente e aportando por fim a Luanda, onde ficou quatorze anos), um visionário dos picos rarefeitos do futuro.

A certa altura, parou de comer e de falar, olhou o mar e exclamou de olhos abertos, com um encanto infantil:

– Repare, meu amigo, que cores fabulosas foram precisas misturar para obter o azul deste mar…

Tempos depois escrevi-lhe. Pedia-lhe resposta por escrito a três perguntas: como conheceu a poesia de Teixeira de Pascoaes; que importância essa poesia teve e tem para o trabalho de Cruzeiro Seixas; que significado houve e há para o surrealismo em português. Pouco depois chegou-me a reposta em forma de carta corrida, batida numa máquina de escrever das antigas (salvante cabeça de entrada, despedida e data, em pé de página, estas três manuscritas), teclado gasto, emendada à mão, com a mesma tinta preta das partes manuscritas. Tem a data final de 14 de Junho de 2009, tendo sido carimbada um dia depois em Lisboa. Dou-lhe a partir daqui a palavra. O que se ouve é a fala solene dum homem de oitenta e oito anos, a espantosa voz dum Sagitário mitológico, sem idade, que chega das origens do mundo para nos deixar uma mensagem de beleza e liberdade.

 

amigo António Cândido Franco

Não me sinto à altura de escrever duas linhas sobre Pascoaes. Há muitos anos fiz um desenho à pena de homenagem que o Cesariny pôs em circulação, [1] mas que a mim sempre me pareceu insuficiente. Mesmo assim correspondo ao seu pedido, mas se nada ou pouco lhe parecer aproveitável, acho isso tão natural como para si ou para o Cesariny foi natural escrever os admiráveis textos que escreveram. Por certo seria preferível ficar calado, mas a fala é uma das grandes tentações. Aquela obra vastíssima está impressionantemente viva, naquela estranha casa gémea de Gatão, onde se espera sempre que algo aconteça. E aquela tão vasta obra de pintura da alma, que vejo nas pareses [paredes] do “Palais idéal”, pois jamais é de ingenuidade que se trata. Estes desenhos e aguarelas seriam muito mais do que é possível, pois tantos pertenciam a uma secretária, creio que francesa, [2] amiga do Jorge Vieira, que este, meu amigo, me deu generosamente os que possuo. Escrevo escrevo escrevo – passei a vida a fazer aquilo que não sei, e não o escondo. “Satan consome o fogo dos seus dias/ cuidando com amor do martírio das Almas.” [3]Hoje será difícil conseguir os 3 cadernos que o Cesariny e eu publicámos, com capa de papel mata-borrão-rosa, em Junho de 72, o que foi para nós então, sempre desendinheirados, uma grande aventura. Pouco depois fui levado pelo Cesariny àquele estranho solar de arquitectura “gémea”, que estende aquele infinito corredor até ao Marão. Dormi ali num quarto onde, durante toda a noite ouvia a palavra líquida dos golfinhos de granito. [4] De resto, ali, as palavras circulam em tamanho natural. “Olhos profundos para dentro olhando”, diz Pascoaes. E o ano passado fomos jantar a casa do João. [5] Quando saímos, já tarde na noite, havia um rápido clarão avermelhado para o lado de Pascoaes. Logo se compreendeu ser um fenómeno natural, mas durante um minuto todos empalidecemos. Foi terrível – e é terrível pensar que tudo está ali em condições em que tudo pode ser possível. “Portugal ou purgatório”, diz Pascoaes.

Espera-se geralmente que um pintor escreva, e menos, a um escritor que pinte. Sobre Pascoaes há certamente ainda muito a ser dito, para além do que já foi dito de forma sábia e sensível pelo Cesariny, por si, pelo Amigo insubstituível que foi para mim o António Quadros, [6] etc. Nos anos 40, a qualquer hora da noite, havia sempre uma luz velada no quarto do Cesariny; foi assim certamente que começou a sua evocação de Pascoaes. Foi pois por intermédio do Cesariny que conheci Pascoaes. Eram muitas as minhas solicitações então; e de resto, nunca consegui sentir-me muito bem na designação de “pintor”. Além disso, em 50 refiz com paixão as rotas dos navegadores por Goa, por Macau, por Timor, etc., etc., acabando por me fixar em África. Durante 14 anos de permanência ali, redescobri Pascoaes, pela mão dum homem que dirigia uma livraria de Luanda, [7] vigiadíssimo pela PIDE.

Pascoaes não dedica muito tempo as [às] imagens poéticas. O seu espaço é o da imaginação livre, onde o pensamento tem TODA A FORÇA da poesia. Parece-me que já todos os disseram que a poesia em Pascoaes ocupa todo o espaço do seu quotidiano. Tudo é claro – tanto quanto é possível a clareza onde esteja o homem.

Não poucas vezes as afirmações de Pascoaes têm a ver com as afirmações de Breton [8] e de alguns dos seus próximos. A imaginação é ali a realidade. É, condicionada pela minha inteligência e pela minha sensibilidade, pelos meus medos, pelas minyas [minhas] formas de desobediência, e pelo estranho meio silêncio em que esta obra vive, que vivo. [9]

 

NOTAS

1. Não indico na bibliografia final este trabalho de Seixas, porque não o localizei em qualquer lugar ou catálogo. Ao invés de Cesariny, de que localizo quatro pinturas dedicadas a Teixeira de Pascoaes, nenhuma conheço de Seixas.

2. Pergunto-me se se tratará de Suzanne Jeusse, de que nada sei, a não ser que em 1930, Paris, publicou em língua gaulesa uma antologia de versos de Teixeira de Pascoaes e um ano depois, na mesma língua, na editora Messier, a tradução francesa do Regresso ao Paraíso.

3. Citação dos versos de abertura de Regresso ao Paraíso (Canto I) de T. de Pascoaes. Assim a primeira estrofe, quatro versos: Satã consome o fogo dos seus dias,/ Cuidando, com amor,/ Do martírio das almas, que aos Infernos/ Chegam da Terra, em ondas e tumultos.  

4. Há porém fotografia de Cruzeiro Seixas (com Mário Cesariny) em Pascoaes, rabo no chão, em 1967, anterior portanto à edição de Aforismos. A fotografia aparece reproduzida em livro (v. infra “Anexo”).

5. Filho de João Vasconcelos – sobrinho de Teixeira de Pascoaes  – e de Maria Amélia.

6. Grabato Dias ou Mutimati Barnabé João [pseudónimos de António Augusto Melo Lucena e Quadros (1933-1994)], não o escritor António Quadros (1923-1993), autor de Portugal, Razão e Mistério, capilarmente ligado à Filosofia Portuguesa (v. nota 40). Mário Cesariny recolheu dele, António Quadros (Grabato Dias), colaboração pictórica na antologia Surreal Abjeccion(ismo), 1963 (reed. 1992). Teve convívio aturado com Artur Manuel do Cruzeiro Seixas.

7. A livraria Lello de Luanda.

8. O mesmo (na ligação de Teixeira de Pascoaes com André Breton) em Mário Cesariny. Transcrevo: O seu [de T. de Pascoaes]  livro O Bailado, impresso em 1921 e não mais reeditado, pude eu já defini-lo como “rimbaldiano sem Rimbaud e surrealista sem o surrealismo”, tal o encontro interior com as teses de Breton. [“Para uma Cronologia do Surrealismo em Português”, in As Mãos na Água a Cabeça no Mar, 1985, p. 261 (v. “Uma Bibliografia”)]

9. A carta tem anexo [passavam então sessenta anos certos sobre a primeira exposição do (anti) grupo, os Surrealistas, que sucedeu acontecer em Junho-Julho na antiga sala de projecções do Pathé-Baby, rua Augusto da Rosa, Lisboa]. A Galeria Perve, seis décadas depois, reinventava a Exposição, no mesmo lugar e espaço (não vi, com prejuízo meu). Diz como segue: Recomendei à Galeria Perve que insistisse em o ter aqui no dia 18, no mesmo espaço onde expusémos em 49./ Quanto à imposição da Ordem de Santiago de Espada… que o Cesariny tenha acedido a próxima distinção, contribuíu [sic]  para que a aceitasse. Disse no entanto numa entrevista o seguinte: Por natureza e por esforço, a minha obra quereria afirmar-se no sentido subversivo. É pelo menos inquietante que a sociedade contra quem me insurgi, venha agora premia-la [sic]…/ O forte abraço do Artur/ 14-6-2009 Escrevi (a 27 de Maio) texto para a Galeria Perve, “Ontem é Amanhã”, que deve navegar (ou naufragar) nas ondas cruzadas do virtual. Termina(va) assim: A I Exposição dos Surrealistas foi acção dum grupo de mágicos, para reconstruir, a partir do maravilhoso, nas ruínas criminosas de Hiroshima, o mundo. (…) Sessenta anos depois o grupo de magos não acabou ainda de alimentar a luz do Sol.” Quanto à Ordem de Santiago de Espada (melhor a comenda de Grande Oficial da Ordem de Sant’Iago da Espada), Cruzeiro Seixas recebeu-a nesse ano, depois de muita hesitação [há referência ao facto em entrevista de Cruzeiro Seixas ao Jornal de Negócios (31.12.2009)]. Pesou, para o sim, o facto de Cesariny (decerto no tempo de Mário Soares) ter metido pescoço e peito a colar e laço (nunca vi). Mas, ao que parece, até o Al Berto, o dos craveiros subterrâneos, lá foi buscar o penduricalho. Quem não foi em ordens, prémios, doutoramentos honoris causa, viagens, bolsas, congressos e outros similares, não que os desmerecesse mas porque de todo se esqueceram dele, não o chamando, foi o Luiz Pacheco. Ficou-se por umas esmolas [até de Mário Soares, o president-soleil, como depois (carinhosamente) lhe chamou] e foi tudo. Ainda tentei que lhe dessem o preminho Vergílio Ferreira, em Évora, recompensando mais de cinquenta anos de escrita desabusada e criativa (purgativa mesmo), mas tudo o que consegui foi magno desarranjo. Tenho carta dele comentando o tumulto do júri, quando deu com o nome dele entre os candidatos.  

Capítulo do livro Teixeira de Pascoaes nas palavras do surrealismo em português, de António Cândido Franco (Editorial Lincorne, Portugal, 2010). Reprodução autorizada pelo Autor.

 

 

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Todo este material deve ser encaminhado em um único arquivo em formato word, para o seguinte e-mail: agulha.floriano@gmail.com. Agradecemos também o envio de uma fotografia (jpg), assim como de textos críticos, livros de poesia e material jornalístico sobre o mesmo tema. O Projeto Editorial Banda Lusófona é uma fonte de informações que reflete, sobretudo, a ampla generosidade de todos aqueles que dele participam. O acesso a cada país deve ser feito através do selo correspondente.

 

 
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