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J O R N A L   D E   P O E S I A   |   F O R T A L E Z A l C E A R Á l B R A S I L
COORDENAÇÃO EDITORIAL   |   SOARES FEITOSA | FLORIANO MARTINS
2000-2010
 

 

 

 

BANDA LUSÓFONA | PORTUGAL

Teixeira de Pascoaes | (1877-1952)

Mário Cesariny e Teixeira de Pascoaes: relatório e fim

António Cândido Franco

Depois desta conversa encontrei muitas vezes Mário Cesariny. Logo em Janeiro, 1998, poucos dias depois da nossa conversa na Basílio Teles, dou com ele na livraria da Assírio & Alvim, rua Passos Manuel, Lisboa, na apresentação dum número da Espacio/Espaço Escrito, revista publicada em Badajoz. No fim, estávamos os dois num recanto, sem ninguém por perto. Debandara tudo para a livraria, no rasto do Manuel Hermínio Monteiro e do Ángel Campos Pámpano (foi a primeira vez que o vi). Cesariny olhou-me então como nunca o fizera e como nunca depois o fez. O seu olhar, com as lumeiras acesas na cara, ferozes e incandescentes, trespassou-me até ao fim de mim mesmo. Disse-me estas palavras, que não percebi (e ainda não percebo):

– És mais velho do que pareces.

Mais tarde, muito mais tarde, vi pintura de Cruzeiro Seixas, dos anos quarenta, representando Mário Cesariny, de costas, ao piano [está reproduzida em Prosseguimos Cegos pela Intensidade da Luz (v. “Uma Bibliografia”)]. As cores daquela pintura restituíram-me o cheiro, a cor, a vida do lume que me devassou naquele recanto do rés-do-chão da rua Passos Manuel. Depois desta entalação, só consegui perguntar-lhe, quase tartamudo:

– Como se resolve o problema ibérico?

Ao que ele me respondeu:

– Façamos um acordo. Portugal dá à Espanha o Alentejo e o Algarve e a Espanha dá a Portugal a Galiza.

– É tão simples como isso?

– Mais ainda! Daqui a cem anos o mar há-de chegar a Badajoz.

De seguida encontrei-o em Cáceres, Espanha, na companhia da Henriete, do Perfecto E. Cuadrado, do Hermínio Monteiro e do Antonio Sáez Delgado (que mais tarde, em 2006, haveria de traduzir Teixeira de Pascoaes na língua de Cervantes). Corria o fim do Inverno do ano de 2000. Talvez tenha sido nessa ocasião que ele me confessou que muito devia ao Manuel Hermínio Monteiro, que o fora buscar à rua (a expressão foi dele) e lhe dera um abrigo (uma casa editora). Meses depois, em Junho do mesmo ano, subimos os dois a Amarante na companhia do Manuel Hermínio Monteiro e do Ángel Campos Pámpano, ambos de boa saúde (morreriam ambos pouco depois, o primeiro em 2001 e o segundo em 2008), para apresentar um novo número da revista Espacio/Espaço Escrito (nº 17-18; 2000), [1]  que tinha pasta dedicada a Teixeira de Pascoaes (com a colaboração da Elsa Nunes, aluna em Évora, que aí defendeu dissertação de mestrado sobre Teixeira de Pascoaes, sob orientação do Antonio Sáez Delgado). Tínhamos à nossa espera a autora de Na Sombra de Pascoaes, a Maria José Teixeira de Vasconcelos, a Zezinha, sobrinha dilecta de Teixeira de Pascoaes e sua secretária, que nesse encontro se mostrou corrosiva, espontânea, grande senhora que ninguém impedia de roer e serrotar o que lhe parecia iníquo e nefando.

Só regressei à choupana da Basílio Teles dois anos depois, em Novembro de 2002, desta vez na companhia do pernambucano Alípio Carvalho Neto, em Portugal para escrever uma dissertação sobre a obra de Mário Cesariny, que acabou por não sair. Revisitámos as questões que nos tinham ocupado no encontro de Dezembro de 1997. Cesariny fez então questão de me mostrar aguarela original de Teixeira de Pascoaes que estava no corredor, onde uns anos antes eu vira a estante com os livros de Pascoaes. No regresso ao quarto, entrevi a Henriete na sala, a chorar por via da morte de pessoa amiga. De original, recordo a opinião chocante do Mário sobre o movimento gay (era absolutamente contra) e a frase com que se saiu, quando falámos da sua obra poética.

– Quando me dediquei ao amor carnal, a poesia pôs-me os cornos!

Foi nesse encontro que me dei conta da obsessão que nele havia pela Epopeia de Gilgamesh. Lera muitas versões europeias, sobretudo francesas e inglesas, do poema sumério-acádico [talvez tenha mesmo observado no British Museum, em Londres, os fragmentos que fizeram parte da biblioteca de Assurbaníbal (669 a. C.)] e relia nessa época as que tinha à mão, por cima da cama, numa prateleira irregular de livros. Encarava a possibilidade de criar em português uma versão sua do poema. Na altura não percebi a extensão e as ramificações desta fixação (a não ser que o poema era memória ancestral). Hoje entendo que a afeição de Gilgamesh, rei de Uruk, e Ekidu se fazia o bastante para açular nele o sonho de ligar vida, sangue e saliva às palavras primordiais (mais do que fundadoras) desse poema.

Poucos dias depois, no meado de Dezembro, encontrámo-nos na casa de Pascoaes, em Gatão, Amarante. A 14 de Dezembro passavam cinquenta anos sobre o falecimento de Teixeira de Pascoaes. A editora Assírio & Alvim, pela mão de Manuel Rosa e António Lampreia, decidira reeditar a grande antologia de Teixeira de Pascoaes, organizada por Mário Cesariny e publicada pela primeira vez in 1972. Desta vez foi possível nela fazer justiça ao Gaspar Simões que percebeu a insurreição ou a ressurreição de Pascoaes por via do surrealismo em português, recolhendo as suas palavras em marginália e juntando-o assim a Pascoaes e a Cesariny. O Município de Amarante lembrava em várias sessões no Salão Nobre da Câmara e em exposição no Museu Souza-Cardoso a figura e a obra plástica de Teixeira de Pascoaes. Tomámos juntos na casa de Gatão o pequeno almoço, servido pela Maria Amélia, viúva de João Vasconcelos e sobrinha de Teixeira de Pascoaes. Cesariny e Henriete pareciam duas crianças terríveis a dançar a pavana; a Manuela Correia, viúva do Hermínio Monteiro, editor de Pascoaes, fechada na doida melancolia da sua viuvez recente, molhava nas lágrimas os pincéis e enchia de aguarelas outonais as folhas dum caderno. Meses mais tarde, no bairro de Santa Cruz, a Lena d’Água (ou Águia-escorpião ou ainda Helena Águas) mostrar-me-ia, de frente, a casa onde ela crescera e o recanto onde as duas se encontravam na adolescência, talvez para puxar um fininho, enquanto o doido tráfico, aos berros, escoiceava na Estrada de Benfica. E eu? … Eu, nada – como diz o Mário num poema de 1953. Eu, deitando o mirone às tinturas da Manuela, chegando o cinzeiro à Henriete, sorrindo para o babaréu do Mário, tropeçava nas palavras de Camões, abertura das redondilhas de Babel e Sião, sem saber se as águas eram dali ou de lá, e estremecia nos ossos da alma uma saudade fina e sem porquê. Nenhum valhacoito me fora tão de agrado como essa casa de Pascoaes, molhada de névoa e saudade, em dia frio de Dezembro, na companhia da benevolência e da lisura. E nenhum depois disso me foi tão grato e querido, na realidade ou na lembrança. Ainda hoje me encho de alegria quando recordo esse recanto antigo.

Descemos depois ao pequeno cemitério de Gatão, onde Pascoaes repousa numa campa rasa, com uma simples lousa, onde se inscrevem dois versos que ele propositadamente escreveu para ali figurarem: Apagado de tanta luz que deu/ Frio de tanto calor que derramou. Tudo reverdecia naquele fim de Outono, como se o crepúsculo vespertino ali fosse uma aurora aprilina. Em torno da pequena e modesta campa encontrámos e abraçámos, numa atmosfera de saudade e comoção, entre muitos outros, a Maria José Teixeira de Vasconcelos (que entretanto abraçara na festa em memória do Hermínio Monteiro, no antigo cinema Roma, a 10 de Setembro de 2001, dia em que ele faria meio século de vida) e a Adelaide, a filha do Zé Cobra, afilhada do Poeta, sua companhia de todos os dias nos últimos anos da sua vida, ele um velho de cabelo raro e branco, esqueleto à vista, olhos em fogo, dedos queimados pelo cigarro, ela uma criança robusta e mística, uma flor sem ossos nem pedras. Coube-me apresentar os dois, a Adelaide e o Mário. Este nunca vira a mítica criança por quem Pascoaes se tomara de compaixão no fim da vida e ardia por conhecê-la. Estávamos os três num recanto escuro do átrio da ermida do cemitério e o Mário, quando teve entre as mãos as da Adelaide, na altura uma senhora com cerca de sessenta anos, tornou-se naquele menino de cabelo branco que em dia frio do fim do século XX me recebera na soleira da sua casa. Estava deslumbrado e reconhecido. Foi aí, nesse recanto da ermida, que ele viu fotografia do Zé Cobra, mostrada pela filha. Era um homem escanhoado, de fato e gravata, penteado ao milímetro a brilhantina. Segredou-me ele:

– Eu quero ver é o Zé Cobra despenteado, em fralda suja de camisa, socos ferrados de serrano, como ele andava, dia a dia, na quinta de Pascoaes.

Juntou-se a nós o António Telmo, que o Mário não conhecia e recebeu de braços abertos, e ali ficámos os quatro, na manhã húmida de Dezembro, com o rumor das águas do Tâmega por perto, lembrando os últimos dias de Teixeira de Pascoaes, aqueles em que a afilhada o acompanhara e em que o Mário o ouvira no Teatro de Amarante. Mais tarde, por motivo deste encontro a quatro, e ainda por via das relações de Teixeira de Pascoaes com o surrealismo em português (melhor, da dinâmica deste a partir daquele), vim a ter dura e inesperada testilha com o António Telmo (v. “Uma Bibliografia”).

A última vez que vi o Mário Cesariny foi a 3 de Maio de 2004 na Cinemateca, na apresentação do filme de Miguel Gonçalves Mendes. Da película, recordo a cabeça do Mário acompanhada por um rugido de leão; do Mário, lembro a simplicidade atrabiliária com que se voltou para a sala, olhos fechados, quando as luzes se acenderam, dizendo com um encolher de ombros para um público de jovens:

– O poema que se ouve não é mau.

Riram os jovens, os muitos jovens. Que de jovens (pensei eu)! O Mário apanhara-os às levas, por encomenda, década a década, desde os de gabardine enxovalhada dos anos sessenta, que o ouviam nas livrarias do centro, aos de piercing, que já no terceiro milénio o vinham ver no filme de Miguel Gonçalves. Pelo meio, estavam os que haviam nascido com a queda do Estado Novo, como eu, e a quem ele avisara, em momento espontâneo e manual de improviso (o cartaz sobreviveu e ficou no fundo da Cupertino de Miranda), que o surrealismo não era uma estética, não era uma forma de arte, mas uma REVOLUÇÃO, uma forma nova e diferente de viver e pensar. Pediram-lhe os novos, os com piercing, mais palavras e ele exclamou melancólico, entre Bénard da Costa e Miguel Gonçalves:

– Tudo isto é lindo, com todos a baterem palmas, a quererem que eu fale, mas o problema é que quando isto acabar vou ter de regressar sozinho a casa. E vocês nem sabem como aquilo para a Palhavã é frio e feio.

Era assim o Mário, mais nobre que feroz, mais simples que maldoso, mais santo que sibarita. Gostava de se expor, de mostrar tudo preto no branco, sem censuras, aberto e directo, quase provocador, cioso da sua liberdade privada e pública (e por isso intensamente faccioso e vigilante). [2] Assim como assim, era no geral duma correccção inexcedível. Recorria menos à palavra grossa que ao alívio da graça. Nunca o vi deslizar para o insulto ou para o desabafo crítico. Tudo nele era inocente e infantil. O seu génio era gentil e benévolo.

Ainda tentei no fim da sessão chegar à fala com ele, retomando o diálogo sobre Teixeira de Pascoaes, mas a multidão que o rodeava num recanto da Cinemateca era tanta que se percebia o seu aborrecimento. Julguei vislumbrar nesse momento, a seu lado, Luís Amorim de Sousa, seu conviva nos tempos de Londres. Preferi não insistir e parti a pé pela avenida da Liberdade na companhia do António Barahona. Abriu ele na alma o livro de lembranças que tinha do Mário. Desfiou. Já o ouvira antes, em várias ocasiões, falar da familagem que tivera com o Mário (este, por sua vez, na visita de 1997, confessara-me que dias antes visitara o tugúrio liliputiano do António, na calçada de Santana).

A certa altura, na esquina da rua do Salitre, o António pára e diz-me, incrédulo e comovido:

– Conheço o Mário que vimos no filme desde os meus dezoito anos.

 Dou-me conta que isso atira ao ano de 1957. Quase cinquenta anos de convívio, penso comigo. É monumento! Seguimos por ali abaixo, conversando sobre o trabalho que ele então realizava na Assírio & Alvim. Tinha uma edição da poesia de Cesário Verde para sair. Citava-me, disse-me, a propósito de Guerra Junqueiro. No Rossio despedimo-nos, ele em direcção da calçada de Santana, onde tinha casa, eu pela rua do Ouro até ao rio, para apanhar o comboio para Cascais. Na minha cabeça tinha um dos nossos primeiros encontros, na Brasileira do Chiado, por volta de 1977 ou 1978, quando, embrenhado na descoberta dos Últimos Versos, lhe perguntara o que pensava de Teixeira de Pascoaes. António Barahona era então poeta de muita obra publicada, que eu prezava, ao lado da de Herberto, António José Forte, Manuel de Castro e Ernesto Sampaio. Recordava sempre com veemência o ardor e a paixão com que ele afirmara no número único duma das publicações colectivas do surrealismo em português que por esse tempo ainda circulava por Lisboa & arredores, Grifo (1970), se não fosse o surrealismo eu não sabia ler (cito de cor). À minha pergunta, respondera-me porém com alguma frieza:

– Gosto do Livro de Memórias. Leio-o, neste momento. O verso não me interessa, mas a prosa do Livro de Memórias passa a prova. É tudo hoje o que vale a pena ler dele. É o que vai ficar.

Depois disso, também o António bateu o seu caminho, se não a sua estrada de Damasco, que o levou a publicar Os Dois Sóis da Meia-Noite (1990), onde aproxima por cima de todos os outros Camões e Teixeira de Pascoaes. Tiro do volume e leio: Camões e Pascoaes são os maiores representantes da Poesia Portuguesa (p. 12). E ainda: Mas, se Pessoa, grande poeta, tem uma dimensão europeia, Pascoaes, poeta grande, tem uma dimensão universal. (...) Pessoa começa, agora, a ser entendido e divulgado no espaço europeu a que ele mesmo se confinou como previsor da actualidade e guia previdente do futuro próximo. (...) Pascoaes só será entendido, talvez, daqui a mil anos, mas no mundo inteiro, quando já, talvez, nem haja Portugal, mas a Saudade da Pátria, que é o sentimento gerador, como da boca de uma fonte, da Poesia pura. (pp. 13-4). Assim como assim, os poetas tutelares do António não parecem ser Camões e Pascoes, nem tão-pouco Pessoa, mas, atendendo às remissões dos seus versos, Cesário e Pessanha.

O Mário Cesariny partiu desta vida, de vez e sem companhia, a 26 de Novembro de 2006. Tinha oitenta e três anos e deixou atrás de si um vazio imenso, porque foi dos últimos a escrever e a pintar com a autenticidade do espírito. Quando tomei nota do seu falecimento, sofri choque muito grande. Não o via desde Maio de 2004 e fora sempre adiando uma nova conversa com ele por razão dum livro sobre Pascoaes que então preparava e que apareceu em Setembro de 2006, Viagem a Pascoaes. O livro reescrevia a Carta a um Amigo sobre Teixeira de Pascoaes e o Cristo de Travassos, que merecera os encómios do Mário e acabara mesmo por ser o pretexto da nossa primeira entrevista na Basílio Teles.

No encontro em Amarante, Junho de 2000, em torno da revista Espacio/Espaço Escrito, lembro-me de lhe falar nesta reescrita, interessado na sua opinião.

– Cuidado – avisou ele – ainda estragas o que fizeste. A carta vale, porque foi espontânea. Se te pões a fazer croché, dás cabo daquilo.

Deixei de lado o projecto e só o retomei por volta de 2004, quando começava a habituar-me a viagens de longo curso. Assim como assim, lembrava-me da cautela do Mário e retraía-me em lhe falar, preferindo ter o livro pronto para lho dar. Depois logo se veria. O livro apareceu em finais de Setembro de 2006 e logo lho enviei por correio postal. Esperaria pelo Natal para lhe telefonar e combinar com ele novo encontro na Basílio Teles. Disseram-me depois que nessa altura já o Mário não dava passo pelo seu pé e alguém o transportava ao colo. Uma manhã em que deambulava pelas ruas de Lisboa, nem dois meses eram passados, deparei com a notícia da sua morte na primeira página dum jornal. Fui a correr para o Palácio Galveias, Campo Pequeno, onde o corpo estava em câmara ardente. Na entrada, no meio duma multidão ruidosa, indiferente de todo ao Mário (estavam lá as televisões), encontrei a Maria Amélia, de Pascoaes, e agarrei-me a ela a chorar.

– Que o terror da morte se possa transformar no sublime maravilhoso da vida! – foram as palavras que pronunciei entredentes, junto do corpo tolhido e miúdo do Mário.

Lembrava, como hoje lembro tão intensamente, o espanto, o desnorteamento, o receio, em que ele caía, sempre que falava da morte. Perguntou-me algumas vezes: – para onde é que tu achas que vamos depois de morrermos? A morte assustava-o. Olhando para trás, para o período que vai de 1989 a 2006, vejo o Mário e vejo a criança anódina que ele era (acabou como um bebé, ao colo, sem pernas para andar). Uma criança que nos seus grandes dias de aventura visitara o Inferno e que nada podia chamuscar. Procurara o seu Diabo [como se vê pela primeira versão do estudo (!) sobre o Rimbaud em português] e vira-se à nora para dar com ele. Era o Diabo português, marinheiro e farandoleiro, que tanto trabalho lhe dera evocar e invocar, por apagado, indistinto ou soterrado. Por fim encontrara-o e dera-se às maravilhas com ele. Nunca se separava dele. Era um Diabo nada adusto (ao invés do alemão, que tresanda a esturrado), ronceiro e gentil, com asas de anjo (como os guaches de Teixeira de Pascoaes que estão no quarto de Gatão), que não aborrecia ninguém e menos ainda o brincalhão do Mário.

O voto que fiz junto do seu ataúde faço-o hoje diante da sua venerada e veneranda lembrança. Que o Mário possa continuar a ser a criança de asas abertas que nunca deixou morrer dentro de si!

 

NOTAS

1. Espacio/Espaço Escrito, revista de literatura en dos lenguas, nasceu (primeiro número) em 1987 e fechou a 30 de Novembro de 2009, com um número extraordinário dedicado a Ángel Campos Pámpano (1957-2008), seu fundador.

2. No momento em que escrevi (ou revi) esta passagem tive o seguinte sonho: Entro no quarto do Mário Cesariny. Acumulam-se telas, tintas, pincéis e objectos desconjuntados (talvez roubados ao lixo). Vendo este estendal, percebo que estou na oficina do Mário, não no quarto. De sopetão, no canto direito, ao fundo, os meus olhos poisam num farol magnífico, de três andares, muito alto e esguio. Reparo encantado neste fanal. Parece moldado à mão, em terra branca, cozida a alta temperatura, ou tão-só em plasticina de criança. Em cada um dos andares tem um janêlo de vidro, que reverbera uma luz de prata. No cimo, surpreendente e admirável, altivo e sempre vigilante, está um olho, em cerâmica vidrada, cor de esmeralda. Ao acordar, confrontei esta estranha construção do meu sonho com o farol pintado por Cesariny. É feito este apenas de caligem, espuma e cinza. Um elo o liga ao do meu devaneio onírico: a luz dum olhar.

Capítulo do livro Teixeira de Pascoaes nas palavras do surrealismo em português, de António Cândido Franco (Editorial Lincorne, Portugal, 2010). Reprodução autorizada pelo Autor.

 

 

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