Evocando Travanca Rego, a um lustro do seu falecimento
Nicolau Saião
Encontrei-me
com J. O. Travanca-Rego, pela primeira vez, no decorrer da
inauguração duma exposição colectiva de obras de alguns pintores
alentejanos – uns vivos, outros já falecidos – que organizei em
Portalegre com o apoio do sector cultural dessa época do
município desta cidade.
Já de há certo tempo nos carteávamos. Quem nos pôs em contacto
foi o José do Carmo Francisco, que aliás me mandara poemas dele
para um suplemento elvense que então orientava, o “Miradouro” do
defunto Notícias de Elvas.
Assim que lhe li os versos de imediato me dei conta que não
estava ali uma voz de vulgar amenidade. O mesmo que senti quando
pela vida fora tenho estado a contas com outros autores que
muito estimo: ele sabia o que dizia, quando o dizia e como o
dizia. Não era (não é) e creio que não será por muitos anos e
bons, um autor de lugares simétricos carreados por um talento
urbano e suave. Em Travanca-Rego há o espanto, a garra, o
meditar de muitos mistérios que na poesia e pela poesia se
consubstanciam. E, no entanto, existe paralelamente uma harmonia
que nos seus momentos mais altos nos comunica a certeza de que
no seu discurso, na sua linguagem, tudo faz o verdadeiro sentido
e é dotado de um padrão interior votado à permanência no tempo.
“A pena valerá que mais palavras/ suportem a voz nua a (des)dizer-se/
como selámos todos – enigmáticos - / uma dúvida perante o
indizível?”, diz-nos ele nos versos iniciais de “Comunicação”, o
terceiro poema do seu “Sinais: 15 poemas de sideração e
saudade”.
Siderado e saudoso do que não sabe definitivamente, me parece
ter sido o tónus poético deste autor. Interrogativo e em certos
casos crepuscular, em Travanca-Rego há como em muitos outros –
mas nele com a acuidade dolorosa que o seu passamento veio
confirmar – uma amargura filha dum espanto e duma melancolia
abertos à procura, contudo, de novos ritmos e da maneira de
dizer mais exacta, mais real e adequada aos diversos momentos
daquilo que se sente e por isso se descreve. Descrição,
comunicação… No fundo, doação de descobertas, de universos que
se encontram no percurso que mal ou bem o poeta efectua
quotidianamente a despeito das suas mágoas e das suas alegrias,
ou para dizer doutra forma: os poemas que encontram a sua
existência nessa escrita que se fornece a todos para que a leiam
e assim revelem o mundo - que em todos vive, mas que o poeta
encarnou.
Diz ele em “Ilha”, arrolado em “Cinco Incisões”: “Deixa-me
contar o tempo/ pelos nós dos dedos. Nesta ilha,/ nem estrelas
nem uma árvore!”. Mas o poeta efectua a religação mediante os
poemas, as palavras que articula ainda que algo o destroce ou,
melhor, tente destroçar-lhe o sentido do que cria.
Travanca-Rego, sendo um autor de clara vocação lunar, nocturna e
aforística, não se compraz nesse mergulho, não se recreia na
convulsão: o que ele tenta é efectivamente encontrar uma medida
para que esse caos seja reordenado e se extinga como tal,
passando para o lado solar das propostas de vida plenamente
erguida: “Grão de trigo,/ feitio de um ventre:/ Um planeta/ te
habita?”, pergunta ele na primeira quadra do pequeno texto
“Intimidade(s)” de “Extracto sensitivo”. Ou seja: o universo
contido num pequeno elemento da vida vegetal, o que está no alto
tornando-se igual ao que está em baixo como na Tábua alquímica
da tradição e da sageza.
Travanca-Rego soube pesquisar o mistério, assim tentou devassar
o segredo da esfinge. Perplexo ante os enigmas cumpriu contudo a
sua íntima tarefa, se alguma tem o poeta.
Pôde, portanto, afirmar num trecho do seu “Sentido sexto”:
“Onde habitasse o desespero alheio,/ deveria ter construído a
minha casa!/ - Onde habitasse um pássaro sem asas/ pedindo uma
árvore ou um veleiro ou/ pedindo simplesmente/ a mão do vento
que sob o seu corpo/ - a afogar-se de mágoa -,/ transformasse em
Espaço/ o seu canto em mágoas prisioneiro!”
E não é este, para um autor, um profundo projecto de vida que
completamente nos reivindica de pé perante a morte? |