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Américo Facó

POESIA COMPLETA
DE
AMÉRICO FACÓ

Organização e estudo introdutório
Floriano Martins

Poesia Perdida (1951)

NOTURNO

 

Flores, folhas, troncos, raízes,

Revivas de extinto mistério…

Quando na tépida espessura

Há-de tornar o sono aéreo,

Os límpidos sonhos felizes?

 

Mimar de múrmura magia!

Remansear de sombra fremente!

Magia e sombra pesam onde

Se ouvia a voz de um deus presente…

De ouvir a terra estremecia,

O céu profundo se acendia,

Nocturnamente, brandamente!

Depois… Depois a voz sombria

Se velou na terra, que a esconde,

Atrás do universo silente.

 

Ó tempo em flor e folha, menos

Amarga fora esta lembrança,

O mais subtil de teus venenos,

Se cansasse do que não cansa…

Lembrança! Filtro acerbo e quente,

Que eu bebo, e quero mais! – espelho,

Mágico espelho contemplado,

Miragem de cristal vermelho

Que fixa o tempo eternamente,

E faz presente do passado!

 

Imagem nunca mais perdida,

Surta na sombra, que demora!

Nocturno ardor, boca de aurora

Que oferta a fruta apetecida!

Forma de si mesma despida,

Imagem sempre a mesma – embora

Paire suspensa além da vida,

Penso que a vejo viva agora,

Não porque a veja revivida,

Só por sonhá-la a igual de outrora.

 

Sonho! É sonho, minha alma! Vede

O avito engano em que se agita

Para matar a própria sede,

Aumentando a própria desdita…

É sonho! Traz no riso mudo

Certeza e dádiva de tudo…

Sonho!… E sonho, por ele a nua

Negra floresta reverdece;

Por ele, outra vez, no ar flutua

A Presença, que não esquece.

 

Odor e flor a terra, estuante,

Trescala, arrouba-se no espaço,

Esto que impele ansiosa amante

A procurar no ansiado abraço,

Maviosa vertigem do instante,

A unidade do ser disperso;

E o deus aspira a morna essência

Por que se desvela, diverso,

Múltiplo e solto na consciência

Predestinada do universo.

 

De novo a Lua, mãe propícia,

Derrama o leite de seu seio;

A vida, a vida esponsalícia,

Vibra total no que era alheio!

Desce de novo a claridade

Por nova confusa carícia,

Enquanto o gesto de bondade

Da vestal dourada derrama

Em lábios eleitos a flama

Da mais que perfeita delícia.

 

Delícia eterna sempre nova!

Porque a merece a alma sincera

Nem se tema do mal que prova

Nem teme a dor que desespera…

Respiro da noite sonora,

Cujo segredo o dia ignora!

Repouso ao fim de escusas trilhas!

Recompensa de estranho rito,

Maravilha das maravilhas,

Dom do Infinito – indefinito!

 

Em teu limiar, porta secreta,

Onde a imensidade começa,

Ressoa a resposta completa,

Murmúrio florido em promessa…

Livre – livre da aérea bruma

Por que o mistério azul inquieta,

Cria o sonho de si a suma

Graça, a ingênua suma surpresa,

A novidade que perfuma

Esta promessa de beleza.

 

Fecham-se os braços sobre a escolha

Sem nome, nata do desejo;

De flor a flor, de folha a folha,

A selva salva o suave ensejo,

Encontro prometido e lento,

Ou sonho ou destino, composto

Em um só beijo – claro intento,

Um mel de música no gosto,

Rosto abismado em outro rosto,

Forma prima de pensamento.

 

Eu beijo o beijo e abraço o abraço,

Meu raro instante luminoso,

Que se exclui do tempo e do espaço

Na eternidade de um regaço,

A dar-me sem medir seu gozo…

Mago instante que não refaço!

Divino instante que me adverte!

Fugiu-me cedo…

– Onde ir a esmo,

Alma ferida, corpo inerte,

Buscar a ilusão de mim mesmo?

 

A BELA ADORMECIDA

 

A alma levada longe, e todavia

Presente, e presa do segredo, anima,

Espira a rosa de opulento clima,

Flor viva, aroma novo, aura macia.

 

Desejo franze o beijo, e se inebria;

Abraço iluso preme e tem por cima

Um corpo alheio – na delícia prima

De oculta flama que se nega ao Dia.

 

Entrevencido e surpreso, adivinha

O ser profundo a vertigem da vida,

Fruto suspenso da secreta vinha…

 

Forma acesa de amor adormecida!

Para a primícia de um mistério antigo,

Um deus solerte quis dormir contigo.

 

SEXTINA DA VÉSPERA

 

Um pensamento parte

Confluente da tarde

– Banho de ouro em que a Rosa

Abre um ventre divino

À cadência amorosa

Do tempo e do destino.

 

Um só – tempo e destino,

Ambos em toda a parte:

Noite inquieta, amorosa

Manhã, morosa tarde…

Tempo – sono divino!

Destino – sonho… Rosa!

 

Sonho da tarde – Rosa!

Não lhe diz o destino

O que o tempo, divino,

Esquece em toda a parte;

Só lhe murmura a tarde

A delícia amorosa…

 

Vibra a luz amorosa,

Anima, aviva a Rosa

– Excelência da tarde,

Surpresa do destino,

Em que ventura é parte

Sem o tempo – divino.

 

Tarde – rubor divino!

A luz tomba amorosa,

Toda se dá, se parte,

Esplendor cor-de-rosa…

Idéia do destino

Em que se perde a tarde!

 

Urge, refulge a tarde,

Que acende o céu divino

Entre o tempo e o destino…

A cadência amorosa

Da luz inflama a Rosa

– Rosa de toda a parte!

 

APARÊNCIA

 

Cicia a voz de longe mansa,

A maravilhas consentida

A flama alegre, a flor da vida,

Na longa sombra da lembrança.

 

Murmúreo tom de oferta e prece

Pergunta menos que responde,

Ânsia de ser! desvaires! – onde

A distância desaparece…

 

Já no azul da ausência divina,

Prêmio dos Céus, que vem disperso

Para certeza do universo,

A cor do tempo se ilumina.

 

Um sol, meu sol de sonho, invade

O instante… Foge a noite escura;

O espaço, inútil conjectura,

Se perde nesta claridade.

 

Ó tu, potência possessiva,

Memória! a que secreto e fundo

Abismo, origem, nuvem, mundo,

Ao vivo levas por que viva?

 

Somos de novo! A alma surpresa

Haure a harmonia da presença

De quem por palavras compensa

O que não pôde fortaleza…

 

As palavras guardam consigo

A adolescência luminosa…

(Que bem guardais, conchas de tosa,

O ser sutil do mar antigo!)

 

Animam-se nossos semblantes,

Rimos o riso sem passado,

Mútuo segredo irrevelado

A dois desejos ignorantes.

 

Soma de graças indivisa,

Perfaz-lhe o gesto, no começo

Do mundo novo, onde amanheço,

A pura imagem que improvisa.

 

Seus olhos de água transparente

Retardam, seus olhos lunares,

A luz bebida a verdes mares

– Água que sonha livremente.

 

Os pensamentos nunca ditos,

Oh! Primavera da linguagem!

Florescem duplos na miragem

Dos olhos verdes… Infinitos!…

 

Concerta a Sombra invisos laços…

Foge à vontade o ser diverso,

A alma se abrasa… – Arde o universo

Em que procedem nossos passos!

 

Iguais nos vêm sopros maninhos,

Estéreis ventos da altitude:

É dúbia a luz que nos ilude,

São novos outros os caminhos.

 

– Alma! esta sede continua,

Que foi cruel, tornada insonte,

À procura da mesma fonte,

Imagem, nome, essência nua!

 

Mas a alma austera, que viu morta

A manhã, desce ao fim do dia:

Lembrança lhe abre a cada fria…

Entra… – silêncio fecha a porta.

 

MAGIA

 

Rubro riso amante

Brilha Súbita centelha,

Jóia no ar, diamante,

Borboleta de um instante,

O Sol numa asa vermelha!

 

AR DA FLORESTA NOTURNA

 

Sumida sombra, secreta espessura

– A noite em meio, ou lembrança do dia,

Selva! selva abismal do tempo, escura,

Onde a força renasce, que não dura,

E fulge a imagem, forma fugidia:

 

Muda-se o mudo momento em surpresa,

Ambíguo pasmo, ao vir de outro momento…

Jamais se muda a sutil incerteza,

Jamais! Jamais! – porta de ouro defesa

Da Fábula, que alerta um mundo isento.

 

O perpassar de uma sombra ligeira

Corta a noite, vai onde a noite a some…

Assim perpassa a doce mensageira

Saudade, que não sinta quem não queira,

E a noite acorda a música de um nome!

 

Talvez de novo a dileta presença,

Atando enleios de amorosa trama,

Ora tornasse, eterna amante infensa,

Para fugir quando menos se pensa…

E volta, e parte, e quer, e ilude, e chama!

 

E chama! E vem de novo, como vinha,

A meu desejo, adorada visita,

Perdida para sempre, e mais vizinha,

A minha toda bela, a minha minha,

Meu bem! meu mal! minha amante infinita!

 

Ela, e não ela, imagem dela ainda,

Certeza dela, e divina conquista,

Veste as rosas da noite, e vem, bem-vinda…

Florido engano! E o doce engano finda,

E se deflora sobre a imagem vista.

 

Bem longe estais, meus tesouros de outrora

– Carícias de sol, palores de lua,

Cúmplice olhar ofertando o que implora,

Vermelho riso esparzido na aurora

Da paisagem de linho branca e nua!

 

Nomais a mim, nomais de mim suponho

Rever-me a ver renovar-se de opressa

Pena de amor um tumulto risonho!

Na sombra a Sombra desfez-se… Foi sonho,

Mal acabou… – Novo sonho começa.

 

Como se aspira a presença ignorada

De uma flor – pura flama de mil vidas,

Que tanto mais esparsa mais agrada,

Aqui se ouve o silêncio. Ó tudo! ó nada!

Silêncio – voz de harmonias perdidas!

 

Silêncio – trama infinita do instante!

No afastamento, onde a memória alcança,

Move-se imensa tua vaga, avante,

Inunda, vai, sorve a noite de amante,

Até morrer na inconcessa lembrança…

 

Lembrança inútil, silêncio indiviso!

Espelho de arremedos e de mágoas!

Sepultou-se na treva um paraíso,

Entre duas águas negras… Treva! nem me aviso

Do espírito que vaga sobre as águas.

 

Luz, mas luz presa no abismo indistinto,

O pensamento furta-me o que penso,

Outro abismo… Atro abismo! – E cedo! e sinto,

Imagem dupla de mim mesmo, o instinto,

Meu ser de treva entre dois caos suspenso.

 

A mão de leve se alonga, palpita,

Procede lenta no ar soturno e quedo,

Procura… – Que procura a mão aflita?

Quem guarda a sombra assombrosa onde habita

O instante, imoto, eviterno segredo?

 

Não sou? Não fui? – A unânime verdade

Se faz ínvio jardim de ausência pura;

E no aroma selvagem que as invade,

Gêmeas fatais, a noite e a soledade

Respiram sós de impossível doçura…

 

Respira livre a noite sem destino,

Sem limite… Respira, ignota e calma,

Respira sobre um delírio divino,

Transmuta-se em temor quando imagino,

E a magia do Sol me extingue na alma!

 

Recresce o caos… Onde a purpúrea argila

Se turba, tombam as rosas que dantes

Frescas sangravam da manhã tranqüila…

E tomba a flor de sonho, que cintila

– Ouro sutil das estrelas distantes!

 

Eu cego! Eu só! E a negra plenitude

No ausente espaço urde a surpresa enorme

De um mundo esconso, ermo, repulso, rude…

Não mente a noite, a mente não se ilude,

É teu, minha alma, este mundo que dorme.

 

É tua a noite, a voragem secreta,

Fora do tempo, alheia ao tempo insonte,

E as aves torvas do fundo sem meta

– Lascívias idas, que a palavra inquieta,

Imagens, nuvens de inviso horizonte:

 

É tua a soledade em que te apagas,

Imane mar de morte sonolento…

E elas revoam de inauditas plagas,

Informes – formas dissolutas, vagas,

Flutuantes entre a noite e o pensamento.

 

Meu pensamento – minha noite escura!

Desejos, iras, penas, alegrias,

Foram de novo insuspeita amargura

Se foram mais que a sombra, que perdura

No abismo das memórias erradias…

 

Dormi, lembradas iras! Dormi, penas,

Desejos baldos que nunca dormistes!

As alegrias passaram apenas

Como as furtivas mágoas mais serenas…

 

Dormi, sombra! Dormi, fantasmas tristes!

 

AVENTURA

 

Erro em céu marinho,

Asas ao delírio lento,

Um segue o caminho

Da noite oculta – Sozinho,

Não te percas, pensamento.

 

NARCISO

 

A Carlos Drummond de Andrade

 

Lume no céu sozinho,

Longe lembrança brilha

À vária maravilha

Do tempo sem caminho:

 

Brilha! rosal do poente

Sobre a noturna borda

De outro universo… Acorda

A Noite confidente!

 

Entre inquieto e risonho,

Um desejo procura

Guardar-se na aventura…

Nem presença nem sonho,

Vaga suspeita, assombra

Até as plagas onde

A sábia Noite esconde

O que não sabe a sombra.

 

Plenitude vazia!

Ausência possessiva!

(De suave e nova esquiva

Minha melancolia…)

Pesa – torpor profundo!

Luz – oscilante opala!

É dúvida, e se cala,

Negrura, e mura o mundo!

 

Os véus do ubíquo instante

Cerram-se por teus dedos,

Noite! mãe dos segredos,

Secreta e vigilante;

Perdidos sóis sem nome

Passam… Fulvo asterismo,

Abismo atrás de abismo,

Onde a treva os consome!

 

Grito… Nem sou quem grito!

Ando… Nem sinto o espaço

Em que tenteio o passo,

À margem do Infinito!

Salto… Um salto na treva,

Precípite fugida!

– Ou vida, ou morte havida

a mau temor, me leva…

 

Ignora o que abandono,

Libro-me livre… Altura!

O vôo prefigura

A rubra flor do sono,

Ó Simultaneidade,

Rosto vivo de tudo,

Espelho fundo, e mudo,

E múltipla unidade!

 

Vou-me após mim… Deslizo!

Piso a planície nua,

Que a penumbra atenua,

Ondulante improviso

Deslizo! Cada cousa

Confunde-se por arte

Em tudo o mais, comparte

A sombra, que repousa,

 

A sombra silenciosa

De implícito segredo,

Que por encanto o quedo

Espaço aberto esposa,.

E atenta indiferença

O abismo! – e conjectura

A consonância pura

De tácita presença…

 

Presença misteriosa

Que apenas se presume!

Idéia no ar – perfume

De pressentida rosa!

– Uma esperança morta

Acaso renovada?

Uma alma separada

Por invisível porta?

 

Noite – desejo isento!

Quem rompe a ausência morna?

Quem vem como quem torna

Ao mesmo pensamento?

É tua esta visita?

– Ora, a Sibila cega,

dona das Sombras, nega

a fórmula interdita…

 

Nega? Mudez somente!

Contra a palavra presa,

A anônima certeza

Outro idioma consente,

Um canto! – e desassombra

A terra, e corre pelas

Estradas das estrelas,

Divide, elide a sombra!…

 

Diversamente insonte

Enleva-me um tumulto,

E já meu drama oculto

Mostra na própria fonte.

Eu nele, indefinido,

Sou um! sou dois! – componho

O sonhador e o sonho,

Que anima um só sentido…

 

Paragens deslumbradas,

Mil movimentos fundos,

Cores fugaces, mundos

Perfeitos de meus nadas,

Omnímodas conquistas…

– Por simultâneo instinto,

Sou o que as vejo e sinto,

E sou as coisas vistas!

 

Magia do desejo

Que teme ser e sobra?

Minha alma se desdobra,

O mesmo e outro me vejo!

Secai, fontes monteses,

Espelhos de onda mansa!

Sou dois num sem mudança,

Uno e dós duas vezes!…

 

A imóvel claridade

Treme! – diáfana trama

De ouro, e se rasga, inflama…

Um novo ser a invade,

Vertiginoso Amante

Que ao seio nu enleia

Com dúplice cadeia

Os vórtices do instante!

 

Oh! Malícia!… Ilumina

Um vislumbre modesto

A surpresa do gesto:

Ri-me a forma divina!

Ri-me… ou rio-me? O riso

Lucila, trila, anula

O inefável… Modula:

– Narciso! Diz: Narciso!

 

Meu desvaire consciente!

A aparência jocunda

Em delícias me inunda,

Fora a vontade ausente…

– Fugi-me, sombra impura,

Minha longa mentira:

Um deus aqui respira,

Não simples criatura!

 

Corpo de essência eleita!

Novo divino estado!

Narciso arrebatado,

Forma dos Céus aceita,

Que por bela persuade

Aos deuses como sua,

Bebo na fonte nua

A fatal divindade!

 

SOL POSTO

 

Montanha abrasada!

Ocidente onde me ponho!

Perdi-me por nada…

Inflama-se a alma ignorada,

No ocaso – incêndio de um sonho.

 

O OUTRO

 

A Órris Soares

 

Na sombra verde caminha

O ser que diversa o Dia,

Ao tempo dada sozinha

A presença fugidia:

– Eu sou! Perpétuo motivo,

 

Acaso nominativo…

Dentro no silêncio antigo

De resguardos insuspeitos,

Movem-se as coisas comigo

Para imprevistos efeitos.

 

Ide, negligência ignava!

Tornai-vos, raios proscritos,

Que a Treva muda guardava…

(Seus erros são meus delitos!)

Á voz primeira que chama,

Aroma, som, gosto, flama,

Pressa e prazer da partida,

Maior intento preponho,

Enquanto a alma comovida

Sai do sonho, entra no sonho…

 

Entra na virtude estranha

De outro círculo celeste!

Um sol invisível banha

A ausência nívea que a veste.

Tanta candura receia

Os fios finos da teia

Que dissimula esta aurora

Como divina cilada:

Tenta graça ingênua ignora

A certeza inesperada.

 

Sol real, certeza rosa!

Evidência nova e nua!

Fazes a alma numerosa,

Minha menos e mais tua.

Ei-la! E se anima, e se evade

Na pura mobilidade

Do encantamento improviso;

Já, timidamente mudo,

O mudo inquieto sorriso

A tudo luz – teme a tudo!

 

A claridade cadente,

Ouro de secretas provas,

Acende propiciamente

A nudez em formas novas;

Toda nuvem se descerra,

Sendal cúmplice da terra,

Entre resposta e promessa,

Quando o sonho um leito alfombra,

E a Árvore, ávida, remessa

Aos Céus um corpo de sombra.

 

O deus sem causa partilha

Seu Dom simultâneo – assume

A composta maravilha

De canto, cor, e perfume!

A alma lhe escuta a linguagem,

Vozes verdes na folhagem,

Vertigem no ar dissoluto…

Vinga a flor – sangue sobejo,

Na antecedência do fruto

Que a boca toma ao desejo!

 

Eflúvios soltos ao vento,

Delícias dadas aos dedos:

Provados por pensamento!

Sabidas como segredos!

Sob a riqueza do pomo,

Vivo de frescura como

De luminosa mentira,

A Árvore canta fervente,

Vibra, se volve, se mira,

Determinativamente!

 

Ata-se na infinidade

A cadeia lene e leve,

Prende os Céus! prende a vontade

– Origem branca de neve,

princípio de que saíste,

forma! – nem grave nem triste,

fruto rubro que bem sabe,

polpa e deleite contidos,

sabor dos cinco sentidos,

mar que neste sede cabe!

 

Toda a luz se vela ao jogo

Das cores solta… Simula

Em raias de bruma e fogo

O mar grande, a terra nula,

O abismo… – No abismo dança

O ator sutil da mudança!

E por contraste ou por graça

Contra as distâncias terrenas,

Um mundo murmura, e passa…

Palavra soprada apenas!

 

Sopro do silêncio antigo!

Suma indivisa! – Parece

Ressonância do que digo,

Noutro sonho, que anoitece…

Aqui – noturno convite,

Aqui – a sombra limite,

Aqui – a margem tranqüila,

O fim – no delírio espesso,

Onde o Impermanente oscila

Em perpétuo recomeço.

 

Outro, o Outro! – nume ou duende,

Monotonamente certo,

Confunde o gesto que acende

A miragem no Deserto…

Fatalidade da Treva!

Tira ao sonho, ao sono leva,

Surpresa do jogo insano

E aparência devolvida…

– A boca morde no engano,

Fruto da Árvore da Vida!

 

Tal na adormecida opala

De entrelembrados orientes,

Essência inerte, resvala

O ser das formas presentes:

Absorta, represa, amante,

A alma se perde no instante

Nem passado nem futuro

Da corrente que a circunda,

Rosto alheio, olhar no escuro,

Sobre a sombra da água funda.

 

A PRESENÇA

 

Plena de presciência amante

A sombra se abre, silenciosa,

Tal a primícia de uma rosa

À volúpia de ser do instante…

Sutil Presença conivente!

 

Enquanto a Noite dorme fora…

(Esfinge – Síntese preclara!

Seu duro enigma desespera

Como se aparta, guarda austera,

No impenetrável que a separa!)

 

Prêmio presente, encanto mudo,

O fundo espaço ignora-se, onde

Silêncio lúcido responde

À calma distância de tudo.

Abismo, dorme; e, no ato impune,

Une o sigilo ao silêncio – une

A lenta dúvida de lentos

Modos, que tende ao que rejeita,

Quer e desquer, e insatisfeita

Esperta meus esquecimentos.

 

Volta a lembrança, flor de um dia,

Renovo de vernal visita:

Espalha-se, onde indefinita,

Presença! – ausência fugidia…

Livre ao delírio da promessa,

Que altera tudo, e recomeça

O iluso jogo de inventivas,

A alma se lança ardente – evade

A vária Possibilidade,

As condições limitativas!

 

Humilde, intento graça… Intento

Mercê de dádivas serenas!

Venho de longe, a treva apenas

Faz companhia ao pensamento…

(Companheiro! de que desgostas?

Há perguntas, não há respostas…

Nem do mais sabe amor sobejo,

– Engano de ligeiros passos,

O claro engano de dois braços

Estendidos para o desejo!)

 

Um só murmúrio reprimido

Entra o segredo escuro… Soa,

Suspira, sobe, ingênua loa,

À esparsa imagem sem sentido!

– Pausa, minha alma! pausa, pausa

O curso das formas sem causa!

Nenhuma voz me ensina a prece

Que move os Céus, nem adivinho

A trilha oblíqua do caminho

Que a inteligência não conhece!

 

Oh! Deslumbrante nova, cedo

Esplende a luz como se fora

Um favor de alva precursora…

Acorda a Noite e seu segredo!

O ouro das graves altitudes

Desce – reveste em baixo os rudes

Contrastes da terra amorosa…

Riqueza de manhã diversa!

Olor floral que a luz dispersa!

Rosas! Miragem cor-de-rosa!

 

O enleio dos vales, risonho,

Abraçado aos seios dos montes,

Calma o correr de incautas fontes,

Aonde vêm beber os sonhos…

Oh! Recesso verde das aves!

Retiros e penumbras suaves!

A rosa mais rosa se inclina

Acima da água – e de improviso,

Pendor, pudor, desfolha um riso,

E o riso irisa a água divina!

 

Riso de sol, boca vermelha,

Promete um beijo, acena, passa…

Perdido mel! Perdida taça!

Que há-de beber a inquieta abelha?

Ainda ardente o ser discorde

Oscila à sede que o remorde,

Sede fatal, minha inimiga,

Meu destino e glória funesta!

Um tesouro desfez-se… Resta

Somente a confidência antiga.

 

Será teu suplício vindouro,

Alma! a nostálgica moldura

Sem luz, sem a Presença pura

Que ria numa nuvem de ouro.

Tornada a sombra, escura vaga,

Derrama-se infinita, apaga

Meus pensamentos impedidos:

A alegoria antes eleita

Se nubla e turba de suspeita,

Ao sortilégio dos sentidos.

 

Sozinha, uma aparência dança:

Dança a Noite, forma surpresa,

Desvaira! devora a certeza,

Que se vestia de esperança.

A murmurante onda sombria

De lenta atenta sinfonia

Leva os pensares que abandono

Por dissonância antecipada

– Maravilhas voltas ao nada,

À margem noturna do sono!

 

 

 

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