Amador Ribeiro Neto 

Camões, Rock e Semiótica
 
    
          Camões, que este ano comemora  470 anos de idade, é um jovem poeta que continua encantando a todos nós. Os mais exigentes reconhecem ecos de sua dicção poética em Drummond, Jorge de Lima e Vinícius. A moçadinha de camiseta, calça jeans, tênis e disc-man rodando guitarras, também se amarra nos versos camonianos que ilustram agendas escolares e despontam inesperados nos muros como declarações de amor. Coro de uma considerável legião de jovens. 

          Todavia, não vamos ser ingênuos a ponto de achar que um senhor poeta, que projetou nossa língua portuguesa internacionalmente e escrevendo na época Quinhentista, seja lido hoje com a mesma fluidez de um Manuel Bandeira, por exemplo. Claro que não. O momento histórico e as condições pessoais do poeta influenciam demais sua poesia. Ler Camões ignorando suas influências históricas, literárias e filosóficas, por exemplo, é deixar passar batido uma pá de significantes e significados que a História nos oferece de colher.  

          Por outro lado, ler Camões como reflexo direto do contexto sócio-histórico-cultural  é cometer duas ingenuidades: querer explicar a Poesia através da  História ou, pior ainda, querer explicar a História através da  Poesia. 

          Sempre que tentamos explicar o contexto histórico através de uma obra de arte qualquer, o que conseguimos é mascarar a História com as travas do nosso ponto-de-vista estético. Neste caso dobramos a obra de arte às nossas velhas convicções. Assim procedendo, qualquer obra se presta ao nosso intento. Nem precisa ser obra de arte. Daí a pergunta: pra que então a obra se eu já sei o que quero explicar no contexto histórico? 

          Quando, por outro lado,  tentamos explicar a literatura através (apenas) do contexto social, matamos a especificidade da linguagem artística atrelando-a à nossa visão unilateral do mundo. Se somos socialistas, a obra refletirá um mundo dividido em classes sociais; se somos kardecistas, a obra provará a existência das seguidas reencarnações; se somos heiddegerianos, a obra  insistirá na verdade que habita o da-zein (o ser). E por aí vai. 

          Tomemos, a título de breve exemplificação, Camões. Se quisermos explicar o platonismo através de sua lírica nós o faremos. Com o ridículo de um aluninho que quer, a todo custo, encaixar a poesia dentro de moldes teóricos. Pode até fazê-lo com lógica. Mas não há apreensão da forma poética. Daquilo que Octavio Paz chama de “violência sobre a linguagem” . Ou seja, o poeta arranca as palavras de suas conexões e necessidades de compreensão imediata. É aquele quase indizível da poesia, que a Semiótica chama de ícone, e que Novalis, mui apropriadamente, chama de “uma voz que acompanha nosso si mesmo que figura”.  
          Platão, Plotino, Petrarca, Sannazaro, Garcilaso, Boscón, Horácio, Virgílio, Ovídio  e todo o Renascimento pulsam na poesia de Camões. Mas reciclados pelo poeta. Podemos dizer que Camões foi um deglutidor, um antropófago avant la lettre. Mas dentre todas as influências recebidas, Platão é considerado a principal. Tão importante, a ponto do retorno de Camões à Antiguidade Clássica ser trilhado pela via platônica. Camões, dentre tantos líricos da época, foi dos poucos, para não dizer o único, que soube ver nas passagens da doutrina platônica uma forma de investigar as relações da palavra com o seu referente. Então, o seu platonismo é singular: à Verdade, ao Belo, à Justiça, etc, contidos, em estado ideal, no Mundo das Idéias, ele interpõe uma reflexão sobre o signo e sua representação poética. 

          Ao invés de ficar declarando um mundo ideal  habitado pela Poesia (ou a Literatura), coisa que apaixonou os românticos e os fez escravos da inspiração poética, Camões detonou a convencionalidade do signo lingüístico e o permeou de ícones. Aliás, esta técnica vai resultar nos estudos saussureanos sobre os anagramas. Um estudo tão inovador e desconcertante que o próprio Saussure o anotou nuns cadernos secretos aos quais pouco se referia. Esta novidade que Saussure viria a descobrir no início deste século, estudando principalmente a  poesia védica antiga, Camões a usou em sua poesia, nos entremeios da teoria platônica. Vejamos rapidamente. 

          O conhecidísimo soneto “Sete anos de pastor Jacó servia”, narra o episódio bíblico em que Jacó serve a Labão, visando casar-se com sua filha Raquel, mas acaba recebendo a irmã dela, Lia.  Parece brincadeira, mas em alguns versos que tratam da espera de Jacó por Raquel, aparece anagramaticamente a palavra Lia, como se desde o início dos sete anos de serviço Labão avisasse: a filha que te cabe é Lia. Só Jacó não percebia isso. Talvez por ter pouca intimidade com a linguagem poética. Certamente por desconhecer Semiótica. Ao soneto: 
  
          1          Sete anos de pastor Jacó servia 
          2              Labão, pai de Raquel, serrana bela, 
          3              Mas não servia ao pai, servia a ela, 
          4              E a ela só por prêmio pretendia. 
  
          5          Os dias, na esperança de um só dia,  
          6              Passava, contentando-se com vê-la; 
          7              Porém o pai usando de cautela, 
          8              Em lugar de Raquel lhe dava Lia. 
  
          9          Vendo o triste pastor que com enganos 
          10             Lhe fora assim negada a sua pastora, 
          11             Como se a não tivera merecida, 
  
          12          Começa de servir outros sete anos, 
          13              Dizendo: - Mais servira, se não fora 
          14              Para tão longo amor tão curta a vida! 
  
          Vejamos. Jacó serve a Labão porque deseja Raquel. Isto está dito nos 3 primeiros versos.  Mas o que acontece?  Labão engana Jacó e vai lhe entregando Lia. Coisa que o ingênuo Jacó só percebe no oitavo verso. E, humilde, por amor ideal (isto é: platônico), se dispõe a trabalhar outros sete anos, e mais outros sete, se assim a vida lhe permitir.  
          Cumpre observar que o soneto subdivide-se em dois momentos: por Raquel e sem Raquel. Esta divisão se dá exatamente nos versos 7 e 8:  
   

          Porém o pai usando de cautela, 
          Em lugar de Raquel lhe dava Lia.  

   
          Cada verso iconiza um ano dos sete de trabalho. Como, cabalisticamente, o sete em Literatura (e não só na Literatuta, evidentemente) sempre esteve ligado ao infinito, a cada porção “infinita” de tempo, Jacó renova seu amor por Raquel e dispensa Lia. 

          Ora, por que Labão é tão sádico? Aí é que está a questão: Labão não é sádico: Jacó é quem é masoquista, pois desde o verso 2 o nome de Lia já aparece disseminado, muito sutilmente, (é claro: afinal estamos no domínio da linguagem da poesia) e só Jacó (e com ele o leitor ingênuo de poesia) não percebe. O verso 2 diz: “Labão, pai de Raquel, serrana e bela”. Não diz que ele é também o pai de Lia. Aliás, o nome Lia só aparece explicitamente no último verso da primeira parte. Bem sintomático: Labão está a fim mesmo de esconder o jogo. Mas vai pipocando ora aqui, ora ali, uma dicazinha de que tem outra filha. Já no segundo verso, ao lado do nome de Raquel ele coloca, obliquamente, o de Lia. Vejamos: 

          Labão, pai de Raquel, serrana bela. 

          Mais à frente, no verso 10, a verdadeira pastora aparece dissimulada novamente: 
  
          Lhe fora assim negada a sua pastora, 
  
          A obsessão platônica  de Jacó não lhe impõe limites. Ao contrário: outras vidas quisera ter para servi-las como paga de seu amor por Lia. E o verso final, revela-nos mais uma vez o nome de Lia: 
  
          Para tão longo amor tão curta a vida! 
  
          Nem o  ruído do rock nem as abordagens não escondem o que a Semiótica nos revela: o ícone da dissimulação está presente e faz o encanto do soneto camoniano. Cabe apenas ao leitor/ouvinte atual saber ler/ouvir com um novo repertório.  
           
 Às abordagens convencionais da lírica de Camões (muito importantes, diga-se de passagem), a Semiótica vem apenas propor mais uma, que, aliás, amplia o leque de compreensão da magnitude deste grande poeta do amor. Com essas e mais aquelas, quem sai ganhando é o próprio leitor, que a cada geração percebe mais uma faceta instigante do grande lírico Luís Vaz de Camões.  

            
    
   

(Amador Ribeiro Neto  é professor de Teoria da Literatura na UFPB e doutorando em Semiótica na PUC-SP, onde prepara tese sobre poesia e música popular.)
 
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Página editada por  Alisson de Castro,  Jornal de Poesia,  18 de dezembro de 1997