Em Millôr
densidade, secura, economia e comunicabilidade poética brilham diamantes.
Confira:
Passeio aflito;
Tantos amigos
Já granito.
Nesse hai-kai
a morte entrelaça ação (eu passeio; verbo) e local
(o passeio; substantivo) num único vocábulo. Semelhantemente
à língua chinesa, a palavra perde a classe gramatical normativa
para gerar uma gramática própria. Isso é poesia.
O resto pode ser "sabor da nova geração", nunca poesia.
Considere,
ainda, que o granito da laje tumular passa para o da calçada por
onde o eu poético passeia. (Belíssimo!) Esse eu vai sendo,
pouco a pouco, tomado pela aflição da
saudade/lembrança
de "tantos amigos" . Quais amigos? Todos. Os que já
se foram e os que caminham no horizonte do possível. Eis aí
o alcance da poesia de Millôr: abraçar o amigo particular,
o amigo público, a dor universal dos "tantos amigos" indo ou idos.
Abraçar o sentimento doido de permanecer vivo com "tantos amigos
/ já granito".
Mas não
só de morte vive a poesia de Millôr: política (reforma
agrária, isolamento dos justos, inviabilidade da ação
dos políticos); religião (anacronismo religioso, moralidade
religiosa, vaidade passageira), amor (infidelidade amorosa, encantos da
sexualidade feminina); condição humana (incomunicabilidade,
solidão, desajuste social, cansaço de viver); poesia (o fazer
poético, recriação de Bashô); natureza (aflitiva,
lúdica, bela, devastada); mídia (medíocre e mediocrizante)
são temas que marcam presença, como sé vê, ora
cáustica, ora terna, em seus poemas.
Os Hai-Kais
de Millôr são um verdadeiro presente de papai Noel. Certo;
um papai Noel saído da canção de Assis Valente, a
quem se pede a felicidade, duvidando. Mas de quem se recebe toda a beleza
da poesia. E Millôr dá as mãos a Assis Valente.
Ele gosta
de usar o computador para escrever e desenhar. Uma das inteligências
mais agudas deste país. Sensível e iluminado.
Arredio a
entrevistas, recentemente rompeu o silencio e revelou muito do que pensa
ao repórter do suplemento Idéias do JB. Uma visão
cética, hilariante, incômoda ? mas sempre real e certeira.
É
Millôr Fernandes, mais conhecido como humorista. Na verdade,
um fino pensador brasileiro. E, agora, poeta. Quer dizer, poeta sempre
foi; a reunião dos hai-kais e a publicação em livro
é que consolidam um poeta e seu livro de poemas ? até então
disperses.
O titulo
do livro? Hai-Kais, simplesmente. Seleção dos 93 mais expressivos
hai-kais que Millôr compôs nos últimos 30 anos. Um lançamento
rigoroso da editora Nórdica para um belíssimo projeto gráfico
de Vilmar Rodrigues.
O volume,
de 21 x 21 em, capa dura branca, grafada em dourado, ainda conta com uma
capa sobressalente amarela, ilustrada por Millôr. As cores, branco
e amarelo, ora como moldura, ora como fundo de página, geram um
vibrátil diálogo entre as páginas pares e as páginas
impares. Aquilo que em outros livros escorrega para saturação,
aqui desliza na precisão milimétrica informativa. E tensiona
poemas e ilustrações num pique (timing) extraordinariamente
arrebatador.
A beleza
dos trabalhos de Millôr é valorizada pelo profissionalismo
de Vilmar Rodrigues. Quem ganha é o leitor. Os poemas encontram
o meio de expressão adequado.
Eisenstein:
"Um livro tem que estar na mão que o segura como se fosse um instrumento
bem ajustado". Diante de Hai-Kais não há como não
confirmar tais palavras e ainda, lembrar Borges: "Dos diversos instrumentos
utilizados pelo homem, o mais espetacular é, sem dúvida,
o livro”.
Millôr
impõe-se (de leve, pela contra mão) um poeta da linha de
frente da atual poesia brasileira. Não importa se a intelligentzia
nacional rotula humorista de intelectual de segunda classe. Seus hai-kais
fazem frente aos belissimos de Olga Savary. Tiram de letra os de
Alice Ruiz e saltam sobre os de Paulo Leminski. Mas como sempre apareceram
na página de humor de revistas e jornais, a critica os deixou na
banca dos descartáveis.
Com esta
publicação chega a hora de todo leitor tirar os óculos
unidirecionais dos “preconceitos” e, oswaldianamente, arriscar o olhar
dos olhos livres.
(Amador Ribeiro Neto é professor
de Teoria da Literatura na UFPB e doutorando em Semiótica na PUC-SP,
onde prepara tese sobre poesia e música popular.)
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