Amador Ribeiro Neto
Na Poesia de Frederico Barbosa
Ou: Nada Dessa Cica de Palavra Feito Flor
Frederico Barbosa publicou, até o momento, dois livros de poesia:
Rarefato, em 1990, e Nada Feito Nada, em 1993. Uma média de um livro
a cada 3 anos. Estatística essa que nos autoriza a supor que alguma
coisa pode acontecer, ainda este ano, na esquina da dura poesia.
Rarefato foi publicado pela Iluminuras e Nada Feito Nada, pela Perspectiva,
este integrando a prestigiosa Coleção Signos, dirigida por
Haroldo de Campos.
Logo após o lançamento de Rarefato, publiquei no JORNAL DA
TARDE uma resenha em que chamava a atenção dos leitores para
a poesia do estreante Frederico Barbosa. Como uma das funções
do crítico literário é apresentar ao leitor o talento
de novos autores, a resenha terminava assim: "FB em Rarefato, não
se satisfazendo com a busca empenhada pelos grandes poetas, inventa um
modo particularíssimo de dizer o não-dito, o quase impossível.
Com isso, corre o risco de transformar-se num dos mais importantes poetas
de nossa década. Do ano, já o é, de longe". E finalizava:
"É hora de o leitor verificar por si mesmo".
De fato, as matérias relativas aos melhores lançamentos do
ano, feitas pelos jornais, no final do ano de 1990, destacaram o livro
de Frederico Barbosa. Em 94 ele recebe o Prêmio Jabuti por Nada Feito
Nada. Em 95 e 96 sua poesia aparece em livros didáticos do 2o. grau.
No entanto, não nos iludamos: sua poesia é "grão imastigável,
de quebrar dente". Vale para ela estas palavras de Paul Valéry:
"A literatura não tem para mim outro interesse que o exemplo ou
a tentativa de dizer o que é difícil dizer". Ou estas: "Prefiro
ser lido muitas vezes por um só do que uma só vez por muitos".
Ou estas: "Minha ambição literária foi a escrita de
precisão". Ou, finalizando: "O verdadeiro pecado é escrever
para o público".
Como se deduz, a poesia de FB está anos-luz distante daquela missão
catequética, de uma certa música popular, que propala que
"o artista tem ir onde o povo está". Isto é: deve correr
atrás do público, oferecendo-lhe seu produto a preços
módicos (de linguagem). Nada disso. Tanto em Rarefato, com em Nada
Feito Nada, o rigor para com a poesia começa na capa dos livros
e se estende à diagramação e até à cor
de suas páginas. Texto poético e projeto gráfico complementam-se
admiravelmente.
O trabalho gráfico (capa, projeto e execução), dos
dois livros, é de Carlos Fernando. Este exímio intérprete
da música popular transfere, para a diagramação dos
dois livros, toda a precisão e a beleza que impõe ao seu
trabalho musical.
A capa de Rarefato exibe a reprodução em desenho da lápide
do filho de Demétrios (séc IV a.C.), sob fundo compacto,
margeado pelo reticulado de pontos. Na laje tumular uma personagem, misto
de alguém que chora com o prenúncio do pensador de Rodin.
Na dureza do mármore, a expressão de dor/pensamento da personagem
da lápide, choca-se com a leveza do fundo reticulado. Os dois elementos
plásticos (lápide sob fundo compacto e margem reticulada)
sintetizam as linhas básicas deste livro: pensamento e sentimento,
densidade e rarefação, fato e forma. Linhas estas que constituem,
dialeticamente, a unidade da poesia de FB. Unidade que, por sua vez, reflete
e refrata, a crise. Crise individual. Crise social. Crise da linguagem.
Crise de representação. Em outras palavras, a própria
modernidade. Afinal, FB é um autor antenado (a la Ezra Pound) com
o nosso tempo. Faz do desafio da modernidade o ofício dos seus versos.
Daí o parentesco inevitável com poetas e pensadores do pouco,
do magro, do miúdo, do minimal, do seco, do denso, do duro, do pó.
Do nada. Do raro. Do fato. Do fato feito nada.
O mesmo nada que ressurgirá no título do segundo livro, ao
lado do feito. Nada Feito Nada. A poesia que se faz do nada, da negação
do feito fácil.
Os títulos dos dois livros apontam para o modo de fazer poesia e
não para o que se dizer em poesia. A palavra rarefato, que é
apenas um sinônimo, para o usual rarefeito, introduz a ambigüidade:
Rarefato: fato raro ou fato rarefeito. Como nada. Ao modo de ser nada.
É o nada trazendo a linguagem, em crise, feito nada. Nada Feito
Nada. O poeta aceita, e faz, do poema, objeto da impossibilidade.
Impossibilidade que se corporifica na capa do segundo livro: um círculo
vazando um quadrado, ou um quadrado vazando um círculo. O quadrado
divide-se por 4 linhas diagonais que formam 4 ângulos retos. Em cada
uma das quatro extremidades do quadrado, as linhas diagonais, associadas
às do círculo, terminam formando setas, qual uma rosa-dos-ventos.
Rosa-dos-rumos poética, que aponta para nada. Sempre nada. Afinal,
os pontos cardeais formam a palavra NADA.
O papel da capa, em sépia, com o desenho em tons de marrom, remete-nos
à célebre representação das medidas do corpo
humano, feita por da Vinci. Ali, as pernas do homem se abrem dentro dos
limites do círculo e os braços, se abrem dentro dos limites
do quadrado. Como estão, braços e pernas, em duas posições
diferentes, sempre temos o número quatro como variante dos gestos.
Quatro pernas, quatro braços. Quatro setas no desenho da capa de
Nada Feito Nada. Nada: N-A-D-A: 4 letras. O mesmo princípio davinciano,
com uma diferença radical: aqui a figura do homem é substituída
pela língua: o título do livro repetido enésimas vezes.
E o centro, um grande ZERO; quer seja, um grande nada.
A linguagem é tomada como a medida do mundo: somente ela fornece
as verdadeiras referências do valor estético. O fato (o homem)
se torna presente pela via da memória da linguagem. Memória
histórica e cultural.
Porém, não exageremos. Não se trata do nada absoluto,
pois, então, nem a poesia sobreviveria a tanto niilismo, levando
a linguagem à aporia. Ou seja, às afirmações
decididamente contrárias e categóricas.
Vejamos o que é este fato rarefeito, este fato raro, este nada feito
nada, este cabralino "fazer o que seja é inútil".
A imagem do círculo, tal como a do mitológico uroboru, constrói
e formata o primeiro livro. Ali a forma circular não é viciosa.
Nem poderia ser. Para esta estirpe de poetas, à qual Frederico Barbosa
pertence, não há espaço para redundâncias, adiposidades
e rabeiras. A poesia pó, é rarefação, grão
e nada. Nada enquanto inutensílio leminskiano.
A linguagem percorre uma via que vai de "nenhuma voz humana", "do amplo
nada", "tudo que escoa em silêncio em tempo ecoa" (do poema que dá
título e abre o primeiro livro), até a busca da co-autoria
com o leitor, em versos tais como: "Virar a chave, / como quem lê
uma página / (.....) / Como quem se envolve na personagem, / lento"
("Como quem lê"). Ou: "sua leitura minha / do seu meu poema /Meus
olhos buscando / nos seus / um outro poema" ("Ao leitor")
Poesia interativa? Se o leitor for "aquele de Baudelaire", por que não?
O segundo livro inicia-se com um poema malcriadamente visual - herança
concreta do Barroco. O título: "Labyrintho Difficultoso". A grafia
imperial do título, com y, th e f duplicado firma, uma vez mais,
o sentido da poesia para este poeta: labirinto. Labirinto, diz o Aurélio,
é coisa complicada, confusa, obscura. Não se satisfazendo
com esta acepção da palavra, o poeta insiste em adjetivá-la,
tornando-a ainda mais borgeana: labirinto dificultoso. Último verso
deste primeiro poema: "é nada é nada é nada".
O livro fecha-se com um poema intitulado "All or nothing at all". (Tudo
ou nada para todos), título de uma das canções clássicas
do Jazz. Mesmo na música popular, como se vê, o poeta só
consome "o magro dos pratos". Últimos versos deste poema: "Nada
feito nada, / no poema / não há termo meio, / meio-amor,
meia-palavra.// Do sem / sentido intenso / se faz / um tudo atento./ feito
a palavra / em / cantada, // nada / feito / nada".
Neste segundo livro, FB incorpora o humor, pela via da tradição
sterniana: biscoito fino. Nos caminhos da História ele vasculha
os jornais de Recife, publicados no Império. Agindo como um antropófago,
recorta os anúncios publicitários destes jornais e os versifica
tal qual outro pernambucano: Bandeira. Tudo na mais fina estampa do ready
made duchampiniano.
História, humor, metalinguagem e poesia são uma só
coisa. Vejamos: No poema "A língua portuguesa": "Carlos Vannes,
/ professor de língua inglesa / no Liceu desta cidade, / tem a honra
de noticiar / aos seus discípulos / que é chegado do Mato,
/ e pronto a receber os seus discípulos / que desejam continuar
/ seus estudos das línguas estrangeiras, / como igualmente receber
/ todos os demais senhores / que desejam freqüentar os seus estudos
/ nas línguas / francesa, / inglesa, / holandesa / e espanhola,
/ como igualmente os senhores estrangeiros / a língua portuguesa".
Um primoroso texto publicitário de época, que o poeta reverte
em poético, dialogando com a retórica parnasiana, com a poesia
de Bilac, de Fernando Pessoa e, por que não, com a música
de Caetano Veloso? Isso mesmo: Caetano Veloso. Só os tolos lentinhos,
fechados em seu parnasianismo anacrônico, não percebem e esbravejam.
Esbravejam porque não percebem? Ou não percebem porque esbravejam?
Quem não tem paladar para biscoitos finos, come Tostines.
Em Nada Feito Nada, diferentemente do primeiro livro, temos poemas longos.
Um deles, o Certa Biblioteca Pessoal, poema em duas partes, descreve a
biografia intelectual e flagra, em flashes, como se dá processo
criativo para o poeta. Em dicção de fundo drummondiano, o
poeta se desnuda e comove, fazendo-nos sentir inspirados, mesmo em meio
a este "eco seco de nadas".
Outro poema longo é sem nem, que ocupa uma parte completa do livro.
Sobre este poema, as palavras de Augusto de Campos, na contracapa do livro,
dizem o mais importante, na forma típica deste ensaísta:
concisa. Diz AC: "(...) é em especial no poema sem nem que Frederico
se coloca o dilema crucial do pós-fazer, a justificar a farpa ambígua
do título geral: Nada Feito Nada".
Na primeira parte deste livro, o poeta se auto-resenha com o acróstico
de áporo. As cinco letras desta palavra servem como iniciais do
primeiro verso das cinco estrofes do poema. O que é áporo?
Antes de mais nada, um inseto que vaza um poema de Drummond. Segundo: um
problema de solução difícil. Ou seja: o leitor tem
diante de si o paideuma do poeta. Abre-te Césamo! É preciso
decifrá-lo. Isto é: é preciso ler mais de uma vez.
Lembram-se da citação do Valéry no início de
nossa exposição?: "Prefiro ser lido muitas vezes por um só
do que uma só vez por muitos".
Tanto Rarefato quanto Nada Feito Nada são subdivididos em 5 partes.
Em Rarefato, o corpo dos poemas, não centralizado, estende-se às
margens das páginas, ora à esquerda, ora à direita.
Tal recurso permite, por ex., ler o livro sem abri-lo totalmente - vale
aí o sentido figurado também; relembrar que a poesia está
à margem; perceber que o branco da página é mais que
o branco mallarmaico - é o espaço onde se desenvolve o dialogismo
poeta-poetas e poeta-leitor. Espaço para muitas vozes - no silêncio,
na mudez, na contenção do branco.
Em Nada Feito Nada, os poemas dançam ora à margem, ora centralizados.
O branco das páginas tinge-se de verde água. Seria esse o
livro verde, de "Ys estranhos" e cujas letras, lidas, nada indicavam? Seria
esse o livro "que não podia"? O livro impossível para os
principiantes? Certamente estamos diante de um livro que, escrito em outra
linguagem (outra linguagem = linguagem poética), é "um livro
verde", um livro que pede "para ser lido". Aquilo que era mudez no branco,
torna-se música no verde. Música mais perceptível
na quinta parte do livro, não acidentalmente denominada "Repertório",
e menos casualmente ainda, é dedicada ao intérprete de canções
e de poesias, o programador visual dos 2 livros, Carlos Fernando.
O projeto gráfico. O nada. O raro. O feito. O fato. O labirinto.
As cinco partes de cada livro.
É o próprio poeta quem nos chama a atenção
num poema de apenas duas palavras: a primeira, um enorme neologismo poético.
A segunda, um desafio. Diz o poeta:
escrevoparanãoserentendido pormim:todopoemaqueseenten da:mesmo meu:éreduçãodopro
blema:escrevoparanãosermesm o meu problema: entenda:
Concluo citando mais uma vez Valéry. Em Eupalinos (Ou O Arquiteto),
assim que Fedro começa a discorrer sobre a importância do
detalhe, e cita Eupalinos, Sócrates pondera: "Compreendo e não
compreendo. Compreendo algo, mas não estou seguro de que compreenda
exatamente ao que ele queria dizer".
Pois é. É isso. Eis a poesia dura feito nada. Eis nosso mais
novo poeta neobarroco. Mas esta é uma outra história. Para
o início do ano. Aguarde!
* Apresentação oral do poeta FB, feita por ARN, por ocasião
do evento "POESIA", promovido pela Secretaria Municipal da Cultura de São
Paulo, em 17 de abril de 1996. Texto posteriormente publicado pelo "Correio
das Artes", suplemento literário do jornal A UNIÃO, de João
Pessoa-PB, editado por Sérgio Castro Pinto, em 03 de novembro de
1996. Uma nova leitura da poesia de FB, agora sob a ótica do Neobarroco,
foi apresentada por ARN durante o I Colóquio de Poetas de Língua
Portuguesa, e II Encontro Internacional dos Artistas e Intelectuais de
Língua Portuguesa, ocorrido em São Paulo, em 24 e 25 de outubro
de 1996.
**Amador Ribeiro Neto é e Professor de Teoria da Literatura na UFPB
(Universidade Federal da Paraíba) e, atualmente, doutorando em Semiótica
na PUC-SP, onde prepara trabalho nas áreas de poesia e música
popular.
Leia obra poética de Frederico Barbosa