O que é
o absurdo? Absurda e grosseira nos pareceria a realidade, se nós
víssemos o mundo pelos olhos facetados de um artrópode. A
metáfora do absurdo da condição humana parece ser
a interpretação mais próxima de grande parte dos contos
de João Carlos Teixeira Gomes, reunidos no livro editado pela Nova
Fronteira, O Telefone dos Mortos. E esta tem sido, em verdade, a essência
de toda uma expressão literária antiquíssima, mas
que, contemporaneamente, se convencionou chamar de realismo mágico
ou fantástico, um tipo de literatura que já ergueu monumentos
como As Mil e Uma Noites, e, neste século, deu, por exemplo, o Nobel
a García Márquez. Uma literatura onde o limite é a
imaginação, e a fábula, que representa, sobretudo,
uma caricatura da vida, mergulha nos abismos do inconsciente individual
ou coletivo.
Dividindo
os 20 contos do livro em duas partes, As Verazes Fantasias e As Fábulas
do Quotidiano, o autor não apenas agrupa os relatos fantásticos,
separando-os dos episódios realistas, como contribui para aumentar,
ainda mais, uma característica das suas histórias, que é
a de despertar a curiosidade do leitor já a partir dos títulos,
altamente sugestivos, curiosidade que prossegue sendo despertada nas próprias
narrativas, cheias de suspense e situações inusitadas, cujos
desfechos são sempre imprevisíveis. Cada conto de João
Carlos Teixeira Gomes, como o próprio livro, no seu conjunto, é
uma caixa de surpresas, onde o absurdo e o inesperado das tramas não
só arrastam o leitor, como o envolvem num clima de mistério
e fantasia, pontuados de tensa e, por vezes, divertida expectativa.
Igualmente
curiosos e divertidos, a acentuar o prazer da leitura, são as expressões,
descrições e conceitos do narrador/autor, que se revela,
a cada momento, um extraordinário observador da vida, mas principalmente
da criatura humana, e, mais ainda, das mulheres. Aqui está, num
trecho do conto Pânico no Vôo 467: "...deliciava-me olhar os
passageiros, conhecer os meus companheiros de viagem, porque nada me fascina
mais neste mundo do que a contemplação do ser humano. Confesso
que nunca fui a um zoológico e mal sei descrever um leão
ou um hipopótamo, a não ser pelo que deles vi, menino, nos
filmes de Tarzan ou em fotos e gravuras esparsas. Acho que o melhor zoológico
é mesmo o que está do lado de fora, quando temos à
disposição da nossa curiosidade o fascinante desfile da variadíssima
fauna humana, com suas inclinações, extravagâncias,
idiossincrasias, sestros, hábitos ostensivos ou discretos, modos
de ser, vestir, falar, reações corporais ou psicológicas,
etc."
Na verdade
uma sagaz e imaginosa observação, que se traduz em preciosas
caricaturas da espécie humana, como, por exemplo, a descrição
da personagem de O Segredo do Vizinho do 2º Andar: "Uma velhota magérrima,
inclinada como a Torre de Pisa". E sobre a qual também é
dito que "era tão discreta que parecia viver entre parênteses".
Ou revela o poeta em êxtase pela majestade da beleza feminina, como
em O Homem que Via Elfos: "Ela desfilava sozinha com o corpo sinuoso desenhado
por um colante vestido preto, e era tão alta, soberba e longilínea
que, se não fosse a sensualidade que exalava, eu diria ter contemplado
uma catedral em movimento". Ou, ainda, manifesta-se em conceitos e reflexões
de vida, revestidos de tons irônicos, amargos, melancólicos
ou, mais uma vez, poéticos, como em A Morte Tem Braços Macios:
"Não era medo da morte, era saudade da vida. Das pessoas que amamos
e não voltaremos a contemplar ou tocar, das paisagens irremediavelmente
subtraídas, dos livros interrompidos ou sequer folheados, das canções
silenciadas, da luminosa e cálida superfície que há
de faltar, de súbito, aos nossos pés imobilizados. Em suma,
do calor, dos ruídos e dos aromas do mundo". Esses conceitos e descrições
incorporam-se naturalmente às narrativas, sem retardá-las
ou prejudicar-lhes a fluidez. Pelo contrário, acrescentam encanto
e interesse às tramas bem elaboradas e bem desenvolvidas, vazadas
na linguagem clara e correta de quem teve como escola de ofício
o jornalismo, e sabe, como ninguém, fazer-se entendido pelo leitor,
prendendo-lhe a atenção em cada palavra.
Em As Verazes
Fantasias, a primeira parte, estão agrupados os contos de conotação
fantástica, onde o absurdo se faz por meio da imaginação
sem limites e descompromissada da realidade, embora façam parte
da realidade humana o delírio, o sonho e a vivência das próprias
fantasias, boas ou más. Nos absurdos dos relatos deste grupo é
que se pode encontrar a metáfora da condição humana,
já que, em As Fábulas do Quotidiano, a segunda parte, essa
condição está explícita em toda a sua cruel
e pungente realidade, e não metaforizada, sendo absurda, desta feita,
a situação real do homem diante das inelutáveis circunstâncias
da sua própria vida. Trata-se, neste segundo grupo, de um outro
tipo de absurdo, o absurdo da própria condição, e
não o da imaginação. Oscilam, desta forma, os contos
de João Carlos Teixeira Gomes, entre fantásticos, onde predominam
o divertido e o irônico, e realistas, impregnados de comovente e
indignada amargura.
Entre os
contos fantásticos temos, por exemplo, O Paciente do Quarto 309,
que some, misteriosamente, de uma clínica para doenças nervosas
e internamentos psiquiátricos, em meio a um vertiginoso delírio;
O Telefone dos Mortos, o conto, onde o personagem, um cientista, tenta
uma comunicação com pessoas mortas, através de um
estranho aparelho; A Máquina do Amor, em que há outro formidável
invento, de outro cientista, que pretende, com ele, resolver os problemas
amorosos da humanidade; O Homem do Elevador, no qual o personagem, que
pede socorro através de uma mensagem escrita, vê-se num elevador
que não pára nunca de subir. Mas poderíamos falar,
também, de A Morte Tem Braços Macios, O Homem que o Tempo
Dividiu, ou O Dia Era da Caça. Na segunda parte, curiosamente começada
com um conto também de pura fantasia, O Homem que Enganou a Morte,
um homem tentando, desesperadamente, enganar a própria morte, na
figura de uma solitária e incompreendida mulher, encontramos páginas
de um doloroso e tocante realismo, como A Mulher da Minha Vida, Morte no
Trapézio, e O Velho Professor, cuja solidão extrema, no fim
da vida, o leva ao convívio com bichos, e, depois, à alucinação.
Exemplares,
nas suas categorias, são O Segredo do Vizinho do 2º Andar e
A Mulher da Minha Vida. O primeiro, onde o narrador passa a fiscalizar
a vida do vizinho que cava nos fundos do prédio, todas as noites,
em segredo, um enorme buraco, é um relato de suspense e mistério
que não perde o bom humor, enquanto o segundo, onde a realidade
esmaga e comove, é a história de um grande amor destruído.
Mas os contos de João Carlos Teixeira Gomes, neste O Telefone dos
Mortos, mantêm-se no mesmo padrão de qualidade, despertam,
todos, o mesmo interesse do leitor, surpreendem sempre, pela originalidade
das idéias e pelos desfechos inesperados. E, na verdade, formam,
no seu conjunto, além de um ótimo livro de contos, um curioso
ensaio do absurdo da condição humana. |