Aramis Ribeiro Costa 
A Caça e a Pesca da Linguagem e da Técnica
 
No conto baiano, onde sobressaem nomes da estirpe de Xavier Marques, Adonias Filho, Vasconcelos Maia, Herberto Sales, Luís Henrique Dias Tavares, Jorge Medauar e outros, todos dignos de figurar na sempre imaginada galeria dos maiores contistas brasileiros, o grapiúna Hélio Pólvora ficará, possivelmente, como o mais instigante dos contistas da Bahia, aquele a desafiar a capacidade analítica e interpretativa de ensaístas e estudiosos do gênero, pela extraordinária criatividade da sua técnica narrativa. É, indiscutivelmente, o mestre contemporâneo da técnica do conto, e não apenas em nível de literatura baiana, mas, também, de literatura brasileira.

 

Logo no início da sua carreira de ficcionista, em 1958, venceu o concurso de contos de A Cigarra, o que lhe deu grande incentivo e lhe granjeou alguma notoriedade. Ganhador, a partir daí, de vários outros concursos literários, a ponto de já lhe ter sido pedido que não mais participasse do prestigioso Prêmio Bienal Nestlé de Literatura Brasileira, por ele vencido duas vezes na categoria conto, 1982 e 1986, a sua contística tem evoluído no sentido do aprimoramento constante e consciente da linguagem e da técnica de narrar, vertentes que se confundem e completam, como se buscasse, por intermédio delas, esgotar os recursos de apresentação de enredo e tema, dentro dos limites da ficção de curto fôlego.

 

Quem se dispusesse a percorrer, não apenas com o embevecimento inevitável de leitor, mas com os olhos atilados de estudioso, a sua trajetória de autor de ficção, condensada em cerca de doze livros de contos e novelas, poderia acompanhar-lhe o evoluir gradativo e seguro, sobretudo da técnica e da linguagem, que o transporta, de patamar em patamar, à conquista do seu próprio e pré-estabelecido altiplano, sem embargo de já haver iniciado em nível de contista pronto, de vocação definida e senhor do seu ofício.

 

O primeiro livro, Os Galos da Aurora, Editora Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 1958, uma coletânea de textos relativamente curtos — tomando como parâmetro o próprio autor na sua maturidade ficcional —, de tramas lineares e linguagem ainda longe do rebuscamento que mais tarde seria alcançado, além de ser um livro de interessante leitura que, ainda hoje, poderia ser lido com agrado, já apresenta algumas narrativas primorosas, como O Caminho do Mar e o conto-tíltulo, Os Galos da Aurora. O primeiro, pela delicadeza do tema e fluidez do estilo, poderia ser equiparado a certas páginas de Anton Tchekhov ou Katherine Mansfield, e o segundo foi o conto vencedor do já mencionado concurso, de A Cigarra. Sobre este último, apenas para que se possa aquilatar a qualidade do contista estreante, disseram os julgadores, entre os quais se encontravam Aurélio Buarque de Hollanda e Paulo Rónai: "o conto é de primeira ordem: vivo, excelentemente escrito, e com algo de poético. Obra de escritor feito. Lembra o admirável Miguel Torga, sobretudo o Torga dos Bichos".

 

Hélio Pólvora, como se vê, não escapou ao estigma dos que começam bem, de serem comparados a este ou aquele mestre, mas a verdade é que já possuída o seu estilo ou, ao menos, a sua marca de qualidade, e dava início à longa caminhada de permanente e acurado aprimoramento, partindo de uma etapa onde muitos terminam.

 

A Os Galos da Aurora, seguiram-se: A Mulher na Janela, A Estante Publicações, Rio de Janeiro, 1962; Estranhos e Assustados, Lidador, Rio de Janeiro, 1966, ganhador do Prêmio Fundação Castro Maya, 1966; Noites Vivas, Expressão e Cultura, Rio de Janeiro, 1972; O Menino do Cacau, Antares, Rio de Janeiro, 1979; Massacre no Km 13, Antares/INL, Rio de Janeiro/Brasília, 1980; O Grito da Perdiz, Difel, São Paulo, 1983, vencedor do Prêmio I Bienal Nestlé de Literatura Brasileira, 12 lugar, categoria conto; 10 Contos Escolhidos, Horizonte, Brasília, 1984; Aquém do Umbral, Pão de Açúcar, Rio de Janeiro, 1985; Mar de Azov, Melhoramentos, São Paulo, 1986, ganhador do Prêmio III Bienal Nestlé de Literatura Brasileira, 1º lugar, categoria conto; e Xerazade, José Olympio, Rio de Janeiro, 1989, além de um sem número de participações em antologias nacionais e estrangeiras, bem como de colaborações em revistas e suplementos literários de todo o país. Uma trajetória em que, se, de uma parte, não faltaram prêmios e louvores, mesmo da crítica feroz do Rio de Janeiro, São Paulo e Brasília, e sendo, ele próprio, igualmente um implacável e respeitado crítico, o que poderia atrair, para si, as habituais antipatias, de outra — e por sua deliberada vontade — o foi distanciando cada vez mais daquele contista que, em 1958, já arrancava aplausos com os seus primeiros escritos, mas que, certamente, não se sentia satisfeito nas suas necessidades e objetivos de criador literário.

 

À medida em que atingia a sua fase madura, já tendo, completamente, dominado a técnica convencional das narrativas lineares, e, até mesmo, outros recursos não lineares porém usuais de desenvolvimento de enredos curtos, Hélio Pólvora — a exemplo dos grandes mestres, em todas as artes, que, após o domínio das regras vigentes, delas se libertam, inventando as suas próprias — partia para as inovações ou, se preferível, para a experimentação exaustiva dos recursos técnicos que o gênero permite. E é aí que ele se transforma no demonstrador incomparável da técnica narrativa, e, por isto e pela criatividade e complexidade das suas tramas, no mais instigante dos nossos contistas.

 

Ainda e possível, dentro do universo, já bastante vasto, da ficção madura de Hélio Pólvora, encontrar-se alguma narrativa linear, a exemplo de Começo de Vida, in Mar de Azov, como uma pequena pausa na sua ânsia de rebuscamento. Mas será esta uma exceção, que apenas servirá para comprovar o domínio e a qualidade ficcional do autor também nesta modalidade narrativa, pela qual ele já não se sente atraído. A sua tendência natural, e onde ele se revela, efetivamente, um mestre, a superposição das tramas e dos conflitos, peças que ele arma como num jogo de xadrez, onde a partida só verdadeiramente ganha no último lance, com o xeque-mate. E como essas peças não repetem as suas posições e as suas estratégias de um conto para outro, resulta ser, cada livro de Hélio Pólvora, uma autêntica aula prática de técnica narrativa. Desta forma foi amplamente considerado pela crítica o seu livro Xerazade, no qual, a partir do primeiro conto, onde um mágico morre na rua, em Copacabana, deixando, nas suas últimas palavras, um enigma, passando pelo curioso Romance de Carnaval, cujo cenário é a Cidade do Salvador dos anos 40, e ao longo dos demais até o último, que dá título à obra, não há, uma única vez, repetição na forma de narrar. E como se, cada conto, fosse, para ele próprio, um novo desafio, a espicaçar-lhe a necessidade ficcionalmente inata da invenção ou reinvenção de fórmulas, no anseio incontido da auto-superação.

 

Paralela à técnica, e, como um instrumento para alcançá-la em sua plenitude, a linguagem, na ficção de HP, se esmera e adquire um requinte de preciosismo e adequação ao texto só conseguidos por grandes autores e, assim mesmo, na fase de maturidade absoluta do seu processo criativo. Nele não há um excesso, uma falta. Descreve as cenas com todos os seus pormenores, sem omitir nenhum, porém pondo apenas os necessários. A palavra, concisa e exata, ao lado de uma admirável riqueza vocabular, alterna, entre formas escorreitas e, não raras vezes, eruditas, o linguajar vário e despojado do povo, na sua expressão mais pura e bela. Uma alternância extremamente perigosa quando em mãos inábeis, mas que, nas suas, torna-se uma virtude e um encanto. Maneja, ainda, com facilidade, termos técnicos e estrangeiros, no amálgama de um estilo gramaticalmente impecável. Em verdade, o contista impõe-se um apuro vocabular e estilístico condizente ao rigor com que se coloca diante das obras alheias, no exercício da sua outra especialidade literária: a critica. O contista Hélio Pólvora respalda o crítico Hélio Pólvora.

 

É preciso observar, no entanto, que toda esta preocupação com a linguagem e a técnica, não o faz perder de vista, um único instante, o conto como um todo, nem abdicar do núcleo ficcional da narrativa. Os textos, que tendem a ser longos, a maneira de um Faulkner, apenas para citar um dos seus autores preferidos, chegando aos polêmicos limites da novela, obedecem a um ritmo pré-estabelecido, e sujeitam-se a uma unidade temática e estética. O conto, para Hélio, não é uma crônica, ou uma memória, ou um texto poético. É conto. E ainda quando se alicerca numa realidade vivida ou presenciada, o que, aliás, é o habitual em ficção, não perde o componente essencial da recriação literária, que justifica a obra de arte. No seu caso particular, essa recriação é levada às últimas conseqüências. E as suas narrativas, profundamente humanas, são densas e enigmáticas, como a própria vida, fazendo o leitor refletir e interpretar, no que diz, e, principalmente, no que apenas sugere, sem dizer, numa superposição de circunstâncias que se confundem com o imaginário das próprias personagens, onde não faltam referências bíblicas ou associações mitológicas gregas, num universo que se amplia e se torna infinito, dentro de si mesmo. Uma história dentro da outra história, dentro da outra história, e, todas, na vastidão interminável das hipóteses. Por isto mesmo, a ficção de Hélio Pólvora deve ser lida não sofregamente, como quem busca, apenas, a solução final da narrativa, mas, pelo contrário, deve ser degustada com a lentidão e o ritual com que se saboreiam os vinhos raros. E, fatalmente, uma segunda leitura de cada conto, redobrará, não apenas a sua compreensão, mas, também, o prazer de lê-lo.

 

Todos estes aligeirados conceitos podem ser, mais uma vez, comprovados agora, no novo livro que a editora baiana Mythos, na linha da felizmente e finalmente nova tendência editorial brasileira, de valorizar o conto, vem de por no mercado. Em edição bilíngüe (português/francês), o que proporciona uma oportunidade para que estudantes de francês, na Bahia, possam exercitar-se com textos de um contista baiano, e, quem sabe, o mesmo ocorra com estudantes de português e literatura brasileira na França — e sabemos que eles existem —, com a versão para o francês de Jacques Delabie e capa de Jurandi Santana e Jorge Wilton Souza, apresentase com o sugestivo título: Três Histórias de Caça e Pesca/ Trois Récits de Chasse et Pêche.

 

São duas histórias de caça e uma de pesca, em que a caça e a pesca, além da sua conotação prosaica, se processam, sobretudo, no abismo insondável da alma humana, onde quem caça ou pesca, muitas vezes, é caçado ou pescado. E nessa dualidade, da caça e da pesca reais, e da caça e da pesca metafóricas, desenrolam-se, ao longo de três contos primorosos, as tramas e os conflitos superpostos de uma trilogia cujas histórias se unem no tema e, mantendo a tradição heliopolvoriana, se dissociam no seu processo narrativo. São três histórias densas e dramáticas, carregadas de solidão, amor e morte, e que deixam entrever densidades e dramas ainda maiores, na comunhão do dito com o sugerido. É o próprio autor quem põe, no correr de uma das histórias, este conceito na boca do narrador: "ninguém completa um conto, fica sempre o não dito, o esquecido. Quem narra, puxa por sua imaginação e pela dos outros". Um conceito que une o contista ao crítico e ensaísta.

 

Curioso observar, nos três contos, como o autor domina as artes da caça e da pesca, como se, além de caçar e pescar linguagem e técnica narrativa, caçasse e pescasse, também, cobras, pacas, perdizes e surubins, nos matos e nas baías escondidas, sabendo-lhes, de vivência e observação próprias, instintos e artimanhas de cada um deles. Aqui está um pequeno trecho de Meu Compadre Tirésio: "Tiro certeiro é na apá, bom até pra matar onça. A paca avança pela trilha, esbarra na linha pelo pescoço, levanta o lombo e leva chumbo na costela. Chumbo de raleio, em outra parte do corpo, espanta a caça pro brejo, onde ela sai nadando rente ao fundo, as mãozinhas em movimento como quem rema, enquanto as borbulhas em cima denunciam o seu avanço de peixe de couro e pés". Não parece um experimentado caçador falando?

 

Meu Compadre Tirésio é a história de um caçador atilado e solitário, que cria pacas, tendo, por elas, funda estima, e cevando-as no chiqueiro, "com olho terno de companheiro compadecido'', e, ao mesmo tempo, obrigado a caçá-las e vendê-las, para sobreviver. Numa tarde de temporal, está sozinho no meio da mata de cacaueiros, quando encontra uma "cobra esticada, de fauce escancarada - uma cobra pequena, retorcida que nem cipo verdadeiro, mas venenosa". É, para Tirésio, a maldade da História, a maldade da Bíblia, a maldade da Vida, que lhe desperta ódios profundos e ancestrais. Sacando o facão do cinto largo, "rodeia devagar a cobra, que também se torce sobre o talo como um girassol sem corola. E, com um golpe da folha do facão afiado, mata-a. Porém, logo em seguida, vê duas outras serpentes enlaçadas no chão. Vale a pena transcrever o período em que Hélio descreve a cena:

 

"Já viu amor de cobras? Eu nunca, nem quero, que deve ser indecente, afinal são dois falos ora flácidos ora retesos que se enroscam, um cipó grosso a subir pelo tronco, o tronco a se desgovernar em requebros ou a se contorcer em volta do cipó trepador. Compadre Tirésio me falou nas línguas das desgramadas, que saíam das bocas como raízes expostas. Me contou que elas silvavam baixo e que, numa boa comparação, eram dois fios encordoados; quando se abraçavam naquele aperto de todos os seus anéis pareciam transformadas numa corda que esticada e rompida de súbito, se retorce e se encolhe e se emaranha no chão".

 

Ainda com o facão desembainhado, Tirésio redobra a sua ira e a sua repulsa, e, num átimo, fere ao acaso. Mata apenas uma, que ele não sabe se foi o macho ou a fêmea. A que escapa, "antes de desaparecer no mato, se vira, levanta a sapata e fixa em compadre Tirésio uns olhinhos malignos". Ainda vão encontrar-se, mais adiante, Tirésio e a cobra, quando as peças se unem, no jogo de xadrez, para o xeque-mate do enredo. Mas esta é apenas a fábula que suporta as espirais das tramas e dos conflitos superpostos, onde a astúcia do ficcionista faz sair, de uma folhinha de parede, e, depois, do meio de "uma chuva de lâminas oblíquas que eram facas atiradas do alto", nada menos que Hera, a ciumenta esposa de Zeus, ou a mulher baixota, de ancas arredondadas, "gorda como uma paca", que chega inesperadamente, e, um dia, some. O fantástico e o real, confundidos, onde aflora o próprio mito grego de Tirésio, inspirando e enriquecendo o enredo.

 

Ainda na caça, e, também, às voltas com serpentes venenosas cujos botes ferem o corpo ou a alma, O Grito da Perdiz troca as pacas pelas perdizes, e a solidão pela companhia solitária. Vê-se, também aqui, a competência do mestre caçador: "Sabe que são as fêmeas que atentam os machos? Sim senhor: a fêmea anda pra lá, anda pra cá, pia uma vez, pia outra vez. Sempre se aproximando do macho, fazendo cerco, ciscando como galo que quer abaixar galinha. Quando chega perto do macho ela dá uns passinhos de dança, depois arreia as asas. Aí então as penas e a cauda sobem eriçadas, formam um leque parecido com o dos perus e pavões". E, mais adiante: "O besta do macho gosta tanto de chocar que às vezes não percebe a chegada da gente, ou então não tem forças para fugir. A gente pode até pegar ele com a mão".

 

O Grito da Perdiz, em sua trama básica, gira em torno de dois homens, Cazuza e Pedro, cujo relacionamento anterior e laços afetivos não são definidos, e que vão, com o auxílio de um cão, à caça das perdizes. As artimanhas da caça — o ataque de uma serpente venenosa a um deles, os disparos (fortuitos?) das velhas espingardas, que ferem um e ferem o outro, e, até mesmo, os diálogos repletos de intenções ocultas— além de terem os seus significados próprios, servem de suporte a outros planos narrativos, onde a figura central é Luzinete — infiel perdiz ou cobra venenosa? —, mulher de Cazuza. Vejam este pequeno trecho: "Assim que Pedro apareceu, a mesa estava posta, com toalha de linho e até mesmo um ramo de jacintos no centro. Que desperdício, mulher. Afinal de contas, Pedro de casa, Pedro não é de cerimonia, come até prato feito, não é, Pedro? Luzinete sorriu". Sorriu como teria sorrido Capitu para Escobar, diante de Bentinho? O clima de sensualidade e suspense, a abundância de paralelos e sugestões, a começar pelo título, fazem, dessa narrativa, um desafio para a imaginação do leitor.

 

Deixando a caça pela pesca, mas sem esquecer os matos que cercam as águas lisas da Baía Escondida, nem os mistérios que envolvem a superfície e o fundo da existência humana, O Rei dos Surubins retorna à solidão, na figura obstinada do Velho em confronto com o grande peixe, como aqueles dois outros, que Hemingway nos trouxe do mar. Agora, é o pescador: "Anzol de aço especial — dois grossos fios trançados. O Velho olha com desgosto a vara de bambu-jardim com que fisga pacus, curimatás e piraguajuras. Grossa, porém fraca, o Rei dos Surubins pode quebrá-la com um simples tranco de sua cabeça achatada". E, mais adiante: "A linha tinha de ser náilon 160. O Velho fez a ponteira com cordinha de náilon de seda. Para um peixe especial — vara, anzol e linha especiais. E um pescador especial, o Velho da Baía Escondida".

 

Alternando, ao longo de toda a narrativa, a terceira com a primeira pessoa, como se quisesse unir a sua voz de narrador à voz mais íntima da própria personagem, Hélio Pólvora nos conta, em O Rei dos Surubins, a história de um pescador solitário que, um dia, decide matar o seu melhor amigo, "um peixe do tamanho de um homem, quem sabe maior que um homem, um surubim de cinqüenta ou sessenta quilos", que mora na Baía Escondida. O Velho conversa com o enorme peixe, e o vê "com a curiosidade e a doçura de quem se acostuma, por exemplo, à companhia de uma mulher. Ou de um amigo". Mas, apesar disto, tem de matá-lo. Nas espirais das tramas e dos conflitos superpostos, ou nas peças que se armam no vasto jogo de xadrez em busca do xeque-mate, surgem referências bíblicas, a vaidade insolente de um turista para quem o dinheiro tudo compra, até a amizade de um homem por um peixe, e a nudez adolescente da cunhãzinha, apenas vista, enquanto "o frio da manhã lhe percorre o corpo com a pungência de labaredas vorazes". O drama — ou tragédia? — desse Velho na sua cabana ou na sua canoa solitária, e desse peixe misterioso na Baía Escondida, unidos na solidão, e, quem sabe, no destino, que anzol que tudo fisga, inclusive peixes e corações, um desses contos que já nascem clássicos, e que, por si sós, valem toda uma obra.

 

Estas são as histórias que, em boa hora, a recém-criada editora Mythos — contribuindo com o enorme esforço baiano, nem sempre compreendido e menos ainda estimulado, de produzir editorialmente o seu próprio livro — pôs, no início do ano, nas prateleiras das livrarias. Histórias não apenas de caça e pesca, mas também de solidão, amor e morte. Hélio Pólvora autor de público especifico e privilegiado. E, na medida em que aprimora e aprofunda linguagem e técnica, mais seleciona esse público, o que, certamente, não o preocupa, nem perturba a sua criação, cada vez mais densa e mais rica. Não cabe ao autor escolher os que o vão ler. A ele cabe apenas criar. Ao público, sim, cabe escolher o seu autor. E não têm faltado nem faltarão leitores de gosto apurado e perspicácia de leitura, que apreciem e aplaudam o requinte e o talento, já consagrados pela crítica, desse contista que, na ânsia de caçar e pescar linguagem e técnica, acaba caçando e pescando, também, verdadeiras obras-primas.

 *ARAMIS RIBEIRO COSTA, formado em Letras pela UCSal, poeta e ficcionista, autor dos livros Quarto Escuro (poesias), A Nota de Rosália (contos), e Uma Varanda para o Jardim (romance), entre outros.

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