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José Alcides Pinto
 

Da Construção Poética
 

Fiz dois trabalhos para o livro de Soares Feitosa. O primeiro, desprezei por falta de uniformidade. Era um levantamento apressado de nossa cultura desde os seus primórdios, para através deste situar a poesia de meu conterrâneo no lugar que lhe é devido. E à pesquisa - juntei modernos e modernistas, sem esquecer as vanguardas de hoje.

Bem, mas é bom lembrar aos que tiverem oportunidade de ler este trabalho, que não sou crítico literário ou coisa que se consigne. Tenho alguns livros de poesia e ficção; alguns, fui até modesto; em verdade, são até muitos, e todos marcados pelas
limitações. Mas até Machado de Assis dizia que as possuía. Mas isso não salva o barco, evidentemente Machado de Assis é Machado de Assis, e que sou ? um simples provinciano das letras, com fumaça de escritor-poeta.

Bem, vá lá. Mas por que me cerco de tantos cuidados ? Tudo isso se faz necessário, a meu ver, para dizer algumas palavras sobre os poemas de Soares Feitosa, que a princípio me impressionaram.

O livro foi todo construído pelo autor, da capa ao colofão, mas este se não existisse não faria falta, já que o livro tem informação de sobra: fotos, vinhetas, reproduções, desenhos, letras musicais, etc. tudo a que tem direito uma obra que se quer de arte - e arte poética.

O título, como todo o projeto da obra, é belíssimo. Réquiem em Sol da Tarde (poesia heróica, telúrica e lírica). A referência é desnecessária, pois rouba ao leitor o prazer da descoberta. Mas não comete por isso Soares Feitosa nenhum pecado, nem mesmo venial.

Cores, sons, imagens, harmonia, ritmos e ritos, orquestração, até sementes de plantas aromáticas foram jogadas, e bem jogadas, nesse volume de quase 700 páginas: épico, simbólico, surrealista, além de outras virtudes (teologais ?) e por que se há de negá-las ? - isso sem falar no arranjo técnico gráfico-visual-espacial da montagem das linhas dos poemas e tantos outros ingredientes que formam o texto.

Há autores que dispensam apresentação, e Soares Feitosa é certamente um destes, tal a sua identidade com os poemas de sua saga, que têm raízes e vertentes clássicas - e a Grécia está presente no que de melhor gerou o pensamento grego na filosofia, no teatro e na poesia. Nesses momentos, é sempre oportuno lembrar Ésquilo, Aristófanes e Eurípedes - três gigantes que detêm a Grécia antiga nos punhos, sem falar nos pensadores propriamente ditos.

Soares Feitosa, esse caboclo dos Inhamuns, teve a paciência e a sabedoria para esperar a sua colheita poética (estréia aos 50 anos) e deixar que ela amadurecesse como uma massa cheia de dias promissores de verões. Sim, o tempo amadureceu seus poemas e deu-lhes cor, sombra, luz, irradiação de íris, a beleza de rainhas e princesas.

Trouxe também a fé e a prudência para que seu trabalho ganhasse, nesse clima propício, a dimensão de sua perenidade. Eis aí, em algumas linhas, o perfil do poeta Soares Feitosa, um tanto singular sob vários aspectos de que se reveste sua arte
poética.

Não é possível escrever sobre Réquiem em Sol da Tarde sem antes conhecer o autor. Ele, em pessoa, é o próprio poema vivo, sob uma exaltação lírica e feroz ao mesmo tempo, como se sua poesia viesse rasgando o útero da terra para se
mostrar ao mundo em toda a sua plenitude.

Seus versos clássicos, de feição modernista, se escrevem e inscrevem na vanguarda inventiva com grande intimidade, e refazem o que se perdeu ou poderia ter-se perdido nas curvas da marcha heróica de seu tempo. Soares Feitosa atualiza seu processo de trabalho na aliança com outras artes: a dança, a pintura, a música, a escultura, a arquitetura, enfim, com todos os elementos que representam o potencial da grande poesia, desde Homero a Shakespeare, de Dante a Virgílio, de Camões a Pessoa.

A organização conduz a forma, preconizava Focillon. Não há como negar isto. Mas que organização é esta de que nos fala ele ? Certamente aquela que fortalece a estrutura da linguagem e amplia o campo de sua plenitude. Já Valéry dizia que a revisão é o princípio da perfeição. Se não é demais, citaríamos ainda Pessoa: “Exija de si o que sabe que não poderia fazer; não é outro o caminho da beleza”.

O autor de Réquiem em Solda da Tarde assimilou bem os preceitos dos autores citados, mas tapou os ouvidos à advertência de Pessoa, ou não a conhecia. Serviu-se mais da máquina para fazer suas poesias do que de suas próprias emoções. Em outras palavras, entregou ao computador a tarefa dessa missão. E aí foi que os burros deram n’água.

Essa não é uma crítica, como já sugerimos, mas uma viagem de observação, um rastreamento em torno da poemática. Ninguém de boa fé pretende negar a arrojada vocação desse autor para a Poesia. Soares Feitosa é um gênio primitivo, solto, absoluto, a procura de seus genes dispersos no mundo. Um mar turbulento, uma tempestade ingovernável. Tem tudo para ser um poeta original (e original ele é), um poeta de grande porte (e também é isso). E por ser isso e aquilo é que nos ocupamos de sua figura literariamente magistral. Ele possui a postura de um príncipe exótico, de pé, no pórtico de seu palácio, onde o unicórnio do tempo reina e pasce a messe de seu poema.

Possuindo cultura geral no campo a que se propõe o seu trabalho, inegavelmente é um homem de letras, na acepção mais rigorosa do termo.

Não lhe falta nem mesmo o malabarismo verbal, e a improvisação, a visão plural dos fenômenos estéticos da arte de seu tempo. A única restrição que consigo lhe fazer é sua paixão pelo computador, como se ambos vivessem em regime de concubinato - desconfio que vivam mesmo -e ainda a pesada influência que carrega de Gerardo Mello Mourão.

O erro maior do autor de Réquiem em Sol da Tarde foi ter lido os Peãs, de Gerardo, antes de escrever seu livro. A sombra dessa obra o acompanha como uma estigma. E Soares Feitosa não esconde essa mancha pesada, pelo contrário, sente-se orgulhoso dela. E fez dos Peãs uma espécie de Bíblia de cabeceira.

Os poemas de Gerardo Mello Mourão são um marco da literatura brasileira; não só isso, mas obras de cunho universal. Não veja nisso o leitor nenhum exagero. Mas voltando ao reflexo da obra de Gerardo na poemática de Soares Feitosa, lembramos que influência não é sinônimo de pastiche caso fosse, Eça de Queiroz não teria sido o maior escritor da língua portuguesa e um dos maiores do mundo, pois o Primo Basílio não é outra coisa senão uma versão do Madame Bovary.

No caso de nosso poeta, a presença de Gerardo é uma constante, mas esta não compromete seu nome, nem prejudica a autenticidade de seu livro. Ao mesmo tempo, lembramos que o computador não faz poesia, nem jamais o fará. Dá o ornamento, o enfeite, dá ao corpo do poema a decoração emblemática do dólmã do general russo. Porém a máquina não é como o coração humano.

Pessoalmente, nada tenho contra o computador, pelo contrário; até que ele é útil e engraçadinho. No caso da poesia deve servir para compor o verso e não para descompor. Os poetas devem aceitá-lo como instrumento do seu tempo, um acessório bem diferente da pena e do tinteiro e inimigo da Olivetti, mas jamais como um meio para se chegar aos fins.

Mas retornemos ao livro de Soares Feitosa. A exuberância das metáforas na ordem e na desordem de seus versos enriquece toda a obra. Da fonte de seus poemas nascem deuses, ninfas, dríades, bruxos, elfos. É o mito em estado puro rompendo as eras ancestrais, atirando o leitor contra os diques da História.

O potencial criativo do autor de Réquiem em Sol da Tarde e a delicadeza dos lances líricos e amorosos que envolvem alguns de seus poemas lembram Castro Alves, Cruz e Sousa, Lamartine, Byron, Alfred de Musset. Soares Feitosa é um inventor de símbolos e signos (arquétipos). Vai buscar a precisão da linguagem de Mallarmé, a expressão erudita e ideográfica de Ezra Pound; em Apollinaire o verso caligramático e, em Cummings a visão fragmentada do poema.

Usando uma sintaxe nova de relação tempo-espaço (o espaço gráfico como agente estrutural) ganha seu livro novas conotações no que há de mais ousado no panorama da poesia atual.

Tudo é motivo para seus poemas: aves de arribação, bichos-animais, as conversas de comadres, cantadores e violeiros, lendas e folguedos populares, crenças e alusões. Sim, porque tudo se une e se deságua no estuário do verso. O Nordeste está
em seu livro por inteiro: o sertão dos Inhamuns, e sua gente sofrida, os rebanhos de cabras, e ele, o pastor de toda essa região mágica, a mesma do seu preceptor - daí, quem sabe - a confluência de seus poemas.

Mestre Antônio e tantos outros mestres, no passo, na pancada, na conversa de pé-de-ouvido, de joelho dobrado, pé escorado na parede do esteio, à sombra do beiral da casa de taipa, assuntando à luz da estrela a bárbara fala dos trabucos ou na lembrança do vôo da jaçanã e também nas asas bordadas da borboleta.

E assim, nesse remanso, a cabeça guarda o barulho do mundo, o gemido dos bois nos currais, colhendo a seara das estrelas, assistindo o passar do tempo nos passos da parca. E quando a manhã amanhece ele se encontra extasiado no “ouro dos jatobás” e volta-se para a “miragem da cuia/ pois o apanhar da água uma quase música/ e os joelhos/ sob o rastro dos céus passantes” - do poema Antífona.

Assim Soares Feitosa resgata a cultura da sua gente, passa a limpo a geografia e a história de sua terra, mistura línguas, idiomas, a música erudita e a popular, aonde nem mesmo Beethoven deixa de comparecer, e de tudo isso tirar os efeitos mais surpreendentes.

As palmeiras, as tanajuras, as avoantes, as abelhas são vozes. E ele dialoga com as serras e com os ventos (demiurgo), e galopa o seu pégaso - potro fogoso e selvagem - mas os bichos miúdos e as aves também merecem sua atenção: “Sou de arribar, arribaçã/ groteio tudo, meu giro é amplo/ se a moça vai, quero ir também” - de Lua de Março.

Para Soares Feitosa inovar não é uma atitude, mas uma necessidade orgânica, intigada pelo seu espírito inquieto, aventureiro e incostante. E pode (também o deve) fazê-lo, porque domina todas as técnicas do verso, tem na cabeça a solução dos problemas estéticos, inclusive os de natureza ética. Sua linguagem, sua engenharia, sua forma, tosa essa engrenagem, levam-nos (Perdidos & Achados) à descoberta do poema:

Revire,
desencave,
quem sabe, debaixo desses livros,
sob grossa poeira
saltem,
mola do tempo,
dois olhos
perdidos
......
achados
e a noite cinza.

 

Não é do meu feitio interior fazer transcrições, mas como fugir à tentação de fazê-las diante de versos como estes ? 

Não lavei os seios
pois tinham o calor
da tua mão.
Não lavei as mãos
pois tinham os sons
do teu corpo.

Não lavei o corpo
pois tinha os rastros
dos teus gestos;
tinha também, meu corpo
a sagrada profanação
do teu olhar
que não lavei.

Lavei, sim,
lavei e perfumei
a alma, em jasmim,
que é tua, só tua,
para te esperar
mesmo que não tenhas ido
a nenhum lugar:
donde apaguei
todas as ausências
que apaguei
ao teu olhar”.
(Femina)

 

Soares Feitosa agora está sozinho e em plena liberdade reina absoluto e soberano. Não obstante, ainda não teve seu livro, mais de 700 páginas maciças, a necessária leitura crítica. Tem recebido muitos elogios, mas nenhum crítico foi feito até hoje à sua obra.
Falta uma definição da crítica especializada para tenhamos uma melhor definição do alcance de seus poemas.

Verdade se diga, finalmente, Soares Feitosa com o Réquiem em Sol da Tarde deu um susto nos poetas brasileiros deste fim de século.