Amadeu Amaral

Um Soneto de Bilac
                  
 
         I 
        Não quero, senhoras e senhores, obrigar-vos a perlustrar comigo grandes questões de qualquer espécie; convido-vos, modestamente, a uma pequena viagem de recreio - em torno e por dentro de um soneto. Demais, um soneto que já é, de certo, muito vosso conhecido, - o que significa e reduz ainda o cometimento. Trata-se do soneto “Língua Portuguesa”, de Olavo Bilac:
 
    Última flor do lácio, inculta e bela, 
    É’s a um tempo, esplendor e sepultura: 
    Ouro nativo, que, na ganga impura, 
    A bruta mina entre os cascalhos vela... 

    Amo-te assim, desconhecida e obscura, 
    Tuba de alto canglor, lira singela, 
    Que tens o trom e o silvo da procela, 
    E o arrolo da saudade e da ternura! 

    Ame o teu viço, agreste e o teu aroma 
    De virgens selvas e de oceano largo! 
    Amo-te, ó rude e doloroso idioma, 

    Em que da voz materna ouvi: “meu filho!” 
    E em que Camões chorou, no exílio amargo, 
    O gênio da ventura e o amor sem brilho!

 
          Antes de tudo, notemos como este soneto, sem deixar de ser belo e solidamente construído, não está de acordo com a sentença de Boileau: 
Un sonnet sans défauts vaut seul un long poème.

          Vejamos por que. Esta sentença tem atravessado séculos como verdade luminosa e incontrastável. De fato é uma verdade - sob a condição de que nos entendamos sobre a maneira de interpretá-la. 

          Boileau não diz que um soneto sem defeito valha um longo poema também sem defeito. A equivalência que ele estabelece é entre um soneto sem defeito e um poema longo. Isto é, o soneto pode valer uma peça poética muito mais extensa, mas, sob a condição de que seja perfeito. Parece um pouco estranho - não é verdade? - que o ilustre legislador do Parnaso tenha assim pretendido estabelecer comparação entre noções tão diversas, a de perfeição e a de comprimento. Sim, parece, mas é a primeira vista. Na verdade, não há disparate algum na equação. Boileau julgava, naturalmente, que um soneto merecia capitular-se como sem defeito, sobretudo, quando tivesse a virtude máxima de dizer muito nas suas poucas palavras: quando comportasse, condensadamente, um assunto capaz de grande desenvolvimento, sem acréscimo algum de natureza essencial. Ele refletia o pensar e o gosto de sua época. 

          Contudo, o juízo de Boileau é um pouco exclusivista. Não é preceito absoluto que a matéria do soneto seja capaz de grande desenvolvimento, para que o consideremos perfeito. Não é preciso que o soneto seja todo um longo poema comprimido; basta que nada mais, nada menos tenha do que o necessário; que cada verso, cada frase, cada palavra seja indispensável, e até insubstituível. 

          Mas esta regra não domina só o soneto. Cabe em qualquer gênero de composição poética. Portanto, em que difere esta das outras composições? Difere em que consta apenas de quatorze versos, obedecendo a certas normas no agrupamento destes e das disposições das rimas. Como, porém, é menor do que os outros moldes ordinários, é natural que exija um pouco mais de condensação. E acredito que seja tudo. 

          Há, sim, sonetos que valem longos poemas. Para exemplo, eu poderia recorrer a Petrarca - que é por ventura o genial da espécie - poderia recorrer a Dante, a Du Bellay, a Soulary, a Heredia. Em todos eles encontraria farta documentação. Prefiro, porém, citar um dos nossos que nada fica a dever aqueles outros: Camões. Sofrei que eu vos repita este primor, que é naturalmente vosso velho conhecido:

 
    Sete anos de pastor Jacob servia 
    Labão, Pai de Rachel, serrana bela: 
    Mas não servia ao pai, servia a ela, 
    Que a ela só por prêmio pretendia. 

    Os dias, na esperança de um só dia, 
    Passava, contentando-se com vê-la: 
    Porém o pai, usando de cautela, 
    Em lugar da Rachel lhe deu a Lia. 

    Vendo o triste pastor que com enganos 
    Assim  se lhe negava a sua pastora, 
    Como se a não tivera merecida. 

    Começou a servir outros sete anos, 
    Dizendo: Mais servira, se não fora 
    Para tão longo amor tão curta a vida.

 
          Este é, indubitavelmente, um dos tais sonetos que valem longos poemas. É-nos aí apresentada de escorço toda uma história de amor, de paciência e de resignada filosofia, com  quatro passagens, como uma intriga completa e com um fecho lógico e humano. Mas, também há sonetos admiráveis, perfeitos como idéia, como desenvolvimento gradual e harmoniosos de uma idéia através de quatorze versos, como força e fulgor de expressão, como melodia e graça, e que entretanto não admitiriam ampliações, porque só se poderiam ampliar diluindo, rarefazendo, aguando. Destes também seria fácil fazer copiosa exemplificação. Contentemo-nos, porém, só com esta maravilhosa jóia de Anthero de Quental:
 
Á Virgem Santíssima
    Num sonho todo feito de incerteza, 
    De noturna e indizível ansiedade 
    É que eu vi teu olhar de piedade 
    E (mais que piedade) de tristeza... 

    Não era o vulgar brilho da beleza, 
    Nem o ardor banal da mocidade. 
    Era outra; luz, era outra suavidade, 
    Que até nem sei as há na natureza... 

    Um místico sofrer... uma ventura 
    Feita só de perdão, só de ternura 
    E da paz da nossa hora derradeira... 

    Ó visão, visão triste e piedosa! 
    Fita-me assim calada, assim chorosa... 
    E deixa-me sonhar a vida inteira!

 
 
          O soneto de Bilac sobre a "Língua Portuguesa" é desta ultima classe: é daqueles que não admitem amplificações, - salvo se se lhe quiserem acrescentar coisas novas. As que ele encerra estão no ponto preciso de condensação. Não se podem comprimir, nem desdobrar. Comprimí-las seria tirar-lhes a graça e o vigor de várias imagens felizes, seria privá-las da sua eloquência acessível e encantadora. Desdobrá-las, seria convertê-las numa peça frouxa e apagada, como todas as obras extensas demais para o miolo que contêm. 

          Bilac primou sobretudo nesta maneira. Os seus sonetos são, como tudo que é dele, e ainda a este respeito, equilibrados. Em regra, não comportam, por si sós, matéria que desse para longos poemas, nem mesmo para pequenos poemas. Também nunca são grande demais para o assunto. Encerram sempre o suficiente para um soneto cheio, redondo e unido: nada mais, nada menos.

 
           II 
          Isto não quer dizer que não careçam de ser explicados, isto é, analisados no intuito de se verificarem os fundamentos e o alcance das suas idéias. Não. Tratando-se de poetas que, como Bilac, nada fazem que seja trivial ou aéreo, há sempre algum proveito em aprofundar um pouco os seus versos, para lhes apreender inteiramente o pensamento, gozá-lo no que ele tenha de suculento e delicado, até a última gotinha escondida, reconhecer e recusar o que nele nos pareça menos bom, ou equívoco, ou francamente mau. 

          O inferior, o duvidoso, o mau dificilmente se encontrará nos versos de Bilac. Olavo não é o mais imaginoso, nem o mais profundo, nem  o mais sensível, nem o mais imprevisto dos nossos maiores poetas. É, porém, o mais igual, o mais equilibrado, e o mais correto. A sua arte não nos depara grande achados, nem vertiginosos vôos. Ela não nos surpreende: delicia-nos. Não nos leva, entre saltos e quedas, entre deslumbramentos e obscuridades, a algum estranho país de perspectivas inesperadas e aspectos impressionantes: envolve-nos, suavemente, numa tépida atmosfera de bem estar, de doce e harmoniosa exaltação dos sentidos e do pensamento, como num bom sonho. Não é uma selva; é um jardim. Contudo, obra humana, não pode deixar de ser, sob certa luz, como toda obra humana notável, um conjunto de belas ou de boas imperfeições... 

          O próprio Bilac, sentiu bem isso. Sentiu-o, pelo menos, quando escreveu o seu soneto:

 
Perfeição
    Nunca entrarei jamais o teu recinto: 
    Na sedução e no fulgor que exalas, 
    Ficas vedada, num radiante cinto 
    De riquezas, de gozos e de galas. 

    Amo-te, cobiçando-te...E faminto, 
    Advinho o esplendor das tuas salas, 
    E todo o aroma dos teus parques sinto, 
    E ouço a música e o sonho em que te embalas. 

    Eternamente ao meu olhar pompeias, 
    E olho-te em vão, maravilhosa e bela, 
    Adarvada de altíssimas ameias. 

    E à noite à luz dos astros, a horas mortas, 
    Rondo-te, e arquejo, e choro, ò cidadela! 
    Como um bárbaro uivando às tuas portas!

 
 
          Bilac, o mais equilibrado e o mais polido dos nossos poetas, aquele que soube como nenhum outro temperar os impulsos pessoais com a disciplina, a inspiração com a aprendizagem, a invenção com  o estudo, o improviso com a reflexão, a alma fervente e arrebatada da arte criadora com a paciência e a submissão do ofício que se aprende e se ensina; Bilac, o mais apolíneo dos nossos poetas, o mais clássico, o mais afinado, julgava-se ainda um bárbaro - comparava-se a um brutamontes gadelhudo, todo desigualdades e insuficiências, deslumbrado e ferido pela visão estonteante da perfeição maravilhosa e serena... 

          Como se explica isso? Nada mais fácil. Justamente por ter a visão do perfeito ele se sentia incapaz de lá chegar. A gente, às vezes, viajando por estradas desconhecida, em demanda de longínquo e suspirado pouso, espera vê-lo aparecer de repente, numa volta de caminho, e consola-se com imaginá-lo belo, amplo, verde e florido, rumorejado de águas e de asas, habitado por corações amigos e suaves. Vai caminhando, o deserto não finda, e o pouso nunca aparece. Quem, entretanto, enxerga, lá ao longe, a léguas de distância, alterosa e inóspita eminência, o ponto que desejaria atingir, esse pode perceber bem quanto fica distante, irremediavelmente distante e inacessível a ambicionada cidadela. 
 

            III 
          A forma do soneto de que se trata obedece aos preceitos gerais que Bilac sempre observou com religiosidade, e que magistralmente traçou neste outro soneto:

 
A Um Poeta
    Longe do estéril turbilhão da rua, 
    Beneditino, escreve! No aconchego 
    Do claustro, no silêncio e no sossego, 
    Trabalha, e teima, e lima, e sofre, e sua! 

    Mas que na forma se disfarce o emprego 
    Do esforço; e a trama viva se construa 
    De tal modo, que a imagem fique nua, 
    Rica, mas sóbria, como um templo grego. 

    Não se mostre na fábrica o suplício 
    Do mestre. E, natural, o efeito agrade, 
    Sem lembrar os andaimes do edifício: 

    Porque a Beleza, gêmea da Verdade, 
    Arte pura, inimiga do artifício, 
    É a força e a graça na simplicidade.

 
 
          O soneto que vamos examinado está, como todos os de Bilac, inclusive o próprio que acabo de recitar, perfeitamente dentro desses preceitos. A impressão dominante que dele nos vem, se o consideramos como fatura, é de força e graça, simplicidade; força, porque há energia na expressão e há solidez na construção da frase, do verso, da estância; graça, porque a frase, límpida e incisiva, tem torneios nobre e delicados, o verso é correntio e nítido, e a imagem, recortada, precisa, interessante, feliz, faisca e bole dentro do cristal do entrecho como do peixinho colorido e doirado dentro de uma piscina transparente... É a força e a graça estreitamente unidas - e unidas numa simplicidade pouco comum: em toda a peça, desde a primeira à última sílaba, nenhum rebuscamento, nenhum exagero e, direi até, nenhuma saliência. Aqui me volta uma expressão já usada - tudo redondo. Os sonetos de Bilac são esféricos. Já uma vez os comparei a pequenas bolas de cristal... 

          Como ele queria, a forma disfarça o emprego do esforço; a tortura do artífice não se acusa na tessitura da obra. Contudo, isto não quer dizer que, atentando bem, não se perceba o grande trabalho que esta deve ter custado e o como esse trabalho foi feito. 
 

            IV 
          Até aqui temos andado em torno do soneto "Língua portuguesa". Vamos agora andar-lhe por dentro. 

          O assunto consiste no elogio da nossa língua. A propósito, são ditas várias coisas interessantes. Contudo, dí-las o poeta por uma forma tão simples e tão harmoniosa, tão redonda e tão lisa, que não parece dizê-las... Notai o seu primeiro, grande cuidado de composição. Tratava-se de um assunto em que era facílimo resvalar na secura e no pedantismo, ou pelo menos entremostrar essas qualidades de erudito e gramático estreito, como angulosidades de uma ossatura mesquinha sob as amplas roupagens talares do artista. Para resvalar na secura e no pedantismo, bastava que o poeta, menos senhor do ofício, pusesse mais a descoberto a estrutura racional do soneto, revelasse melhor os liames lógicos entre as idéias que se encadeiam, e assim lhes desse um aspecto seu tanto quanto prosaico e discursivo. Não o fez. O resultado, vede-o bem, é que, a primeira inspeção, o soneto parece um mero embrechado de idéias destacadas e uma fileira de orações quase interjectivas, sem nada concluir. Mas só a primeira vista. Na realidade, obedece a uma rigorosa construção lógica - cujos andaimes foram afastados. Traduzamo-lo, restituindo-lhe por um momento os andaimes: 
          A língua portuguesa é a última flor do Lácio. É  a última das filhas da latina, isto é, dentre as derivadas do grande tronco a que por derradeiro se constitui em organismo independente. Como mais nova, é ainda inculta; mas é bela. Inculta e bela, é ao mesmo tempo esplendor e sepultura: esplendor pela beleza, isto é, pelo vigor, pela delicadeza, pela sonoridade; sepultura, porque, não sendo ainda suficientemente cultivada, é desconhecida no mundo - e veda a estranhos olhos as boas coisas que nela foram escritas. A língua portuguesa, nos seus puros filões, faz lembrar o ouro dentro da terra - brilhante, mas envolvido na ganga grosseira e sepultado no seio de bruta mina, entre cascalhos. 

          Mas, ainda assim, desconhecida e obscura, amo-a - deve ser amada uma língua tão rica de possibilidades, assim apta à expressão dos sentimentos fortes, como à dos sentimentos melindrosos. Tuba clangorosa e lira modesta, tanto traduz o furor das tempestades da alma, como a suavidade e a melancolia das horas de bonança - de saudade e de ternura. 

          Amo-a, ainda, devemo-la amar, ainda, porque ela, no seu viço agreste, está impregnada de mil reminiscências das selvas por onde andou outrora e dos mares sobre os quais voou em todos os sentidos. 

          Amo-a, ainda, porque é o idioma rude e doloroso que me tem feito sofrer, que tanto faz sofrer aos que o trabalham, mas por isso mesmo é mais nosso. Está mais entranhado em nossas fibras recônditas; amo-a, devemo-la amar, porque foi nela que a voz carinhosa de nossas mães nos disse as doces coisas que só as mães sabem dizer, e porque foi nela que Camões, o grande expoente da nossa raça, tão simpático na glória como no sofrimento, lamentou, exilado, as desventuras do seu gênio e do seu amor. 

          Tudo isso Bilac condensou em quatorze versos. Afim de o conseguir, começou por falar na primeira pessoa, por tirar ao que dizia todo o caráter de preceito, para só lhe dar o de uma livre expressão de sentimento pessoal. Isso lhe permitiu uma primeira redução, porque, se o preceito carece de ser fundamentado, o sentimento pessoal pode ser simples e concisamente exposto. 

          Em seguida, Bilac se refere à língua na segunda pessoa, o que é também mais breve e mais cômodo, sendo, ainda, mais enérgico. Este é um recurso empregado pela totalidade dos nossos poetas, que, em grandíssima parte do Brasil, só em versos têm ocasião de aplicar o tratamento da segunda pessoa, quase inteiramente nas relações sociais. Bilac empregou-o com freqüência, dirigindo-se às próprias coisas inanimadas, e até a coisas abstratas:

 
    Em desmaios de pena e de demora, 
    Rios, chorais amarguradamente. 
                                        (“Os Rios”) 

    Rondo-te, e arquejo, e choro, ó cidadela! 
    Como um bárbaro uivando às tuas portas! 
                                         (“Perfeição”) 

    Foste o beijo melhor da minha vida, 
    Ou talvez o pior... 
                                          (“Um beijo”) 

    Nem sempre durareis, eras sombrias 
    de miséria moral! 
                                          (“As Amazonas”) 

    Plangei, sinos! A terra ao nosso amor não basta. 
                                           (“Aos sinos”)

 
          Prosseguindo, Bilac despojou as suas idéias de toda redundância verbal, de toda explanação, de todo traço secundário, e reduziu-as a uma série de imagens. No soneto não há, de aparente, mais do que de imagens: flor, esplendor, sepultura, ouro, ganga, mina, cascalho, tuba, lira, procela, arrolo, viço, aroma, etc. - tudo são representações de idéias abstratas sob formas concretas e coloridas. Essas imagens fundem-se uma às outras, no espírito do leitor, e aí adquirem pleno relevo e seqüência. 

          Adquirem, - sob duas condições. A primeira é que o leitor tenha uma cabeça sofrivelmente mobilada de idéias, dessas idéias que pairam no ambiente, para que, por associação, as expressas pelo poeta acordem os complementos e ampliações que ele dispensou, as repercussões que ele previu. Isto quer dizer que Bilac não fez este soneto para todo o mundo. Bem este, bem qualquer outro. A sua arte, principalmente na Tarde, não é uma arte torturada e obscura, "para raros apenas", mas é uma arte para gente culta. Os seus sonetos parecem dar inteira razão a Charles Asselineau, que via nos moldes desta composição seleta a melhor oportunidade possível para uma feliz convergência do sentimento e da forma, do pensamento e da arte. 

          A segunda condição para que as imagens do poeta ganhem plena significação, ligando-se e completando-se, é que se leia com  simpatia. Também este elemento é indispensável. Se toda arte, ainda a mais singela e acessível, exige do leitor ou do ouvinte a colaboração da sua inteligência, também não existe arte, por mais impressionante e vitoriosa, que não exija a colaboração da simpatia - uma espécie de boa vontade que se submete e se abre, contente e voluptuosa, mais ou menos como uma flor se deve entregar a um raio de sol. Arte é comunhão. Comunhão de espíritos. Só a simpatia dá relevo, cor, brilho, eficácia ao trabalho do artista. Ela procura nesse trabalho, guiada como por um faro divino, através do que é frustrâneo e opaco, o mínimo filão recôndito de beleza que ele contenha, dilata-o, sublima-o, e goza-o com delicada ternura. Arte é elevação. 
 

           V 
          Mas vejamos a forma do soneto mais de perto. 
          Depois de encontrar as suas imagens, ou (o que é mais provável) ao mesmo o tempo que as encontrava, Bilac procurou a forma verbal e métrica. Digo ao mesmo tempo, porque, em regra, o poeta elabora tudo na sua composição, forma e fundo, conjuntamente: as idéias, as imagens, os tropos, os vocábulos, o rítmo, a rima, todos esses elementos se vão revolvendo uns com os outros na cabeça do artista, a agir e reagir cada vez mais subtilmente, mais imperceptivelmente, até que se opera uma interpretação e um ajustamento completos. A idéia nem sempre é a geradora da expressão. A expressão freqüentemente cria a idéia. Uma palavra, uma locução trazida pelas necessidades da medida ou da rima, abre muitas vezes horizontes inesperados, desenvolve sugestões novas e felizes, e assim amplia, desdobra, restringe, aperfeiçoa o pensamento. Por isso celebrou Vitor Hugo - com quanta razão! - a virtude criadora da palavra, "le mot creáteur". Há muita gente que ainda supõe que o poeta tortura as idéias na grelha dos versos. Tal coisa só se dá com os maus poetas. E acrescentemos que nada se perde com  isso, pois só tortura as suas idéias... quem não as tem. O verdadeiro poeta, longe de torturá-las, desenvolve-as e apura-as admiravelmente na maravilhosa retorta da forma. Foi o que fez Bilac. 

          Podemos, por comodidade de análise, considerar a obra poética como passando por diferentes estágios, do fundo à forma. Poderíamos até distinguir várias fases ou vários aspectos da informação.. Teríamos, nesse caso, pela ordem da generalidade decrescente: a forma lógica, a forma gramatical, a forma estilística, a forma sônica, a forma métrica, etc. Mas isso seria já complicar, por amor da clareza. Esses elementos todos se conjugam e se soldam de tal modo, que, pretendendo levar muito longe a desintegração, correríamos o risco de cair no vazio e no imponderável. 

          Examinemos, pois, rapidamente um pouco por alto, como convém, o que resta por examinar na topografia do nosso soneto. 

          Bilac usou aí, largamente, do seu processo preferido de disposição simétrica das idéias. Esse processo chega a ser uma das características primaciais da sua segunda maneira, a da Tarde. Tudo são constrastes e consonâncias, são idéias que se aproximam ou se opõem, duas a duas. Logo no primeiro verso chama a língua "inculta e bela": dois qualificativos, uma antítese. Essa língua é a um tempo "esplendor e sepultura": outra antítese. Ela é "desconhecida e obscura"; é "tuba de alto canglor" e "lira singela", isto é, suave; tem o "trom" grave e o "silvo" agudo da tormenta desfeita; exprime a "saudade" e a "ternura"; possui "viço" e "aroma", e esse aroma é de "selvas" e de "oceano"... e Assim continua o soneto até o fim, todo tecido de idéias e de expressões aos pares. 
  
          Será isto um defeito? Não o creio. É apenas uma feição. Toda individualidade forte e marcada há de ter os seus rasgos bem acentuados. Este é um dos de Bilac. Ele foi o poeta das grandes similitudes e dos grandes contrastes, principalmente dos grandes contrastes que enchem a nossa existência de jogos violentos de luz e sombra: a vida e a morte, a dor e o prazer, o espírito e o corpo, a saudade e a esperança, a ironia e a piedade, o sarcasmo e a meiguice... Ele foi, numa palavra, poeta rebrantesco das eternas dualidades que nos atormentam e nos encantam, impondo-se inevitavelmente a todas as consciências, através de todas as nossas sensações, através de todas as nossa noções. Isto chegou a ser nele uma obsessão. Bem-dita obsessão, que floresceu e fulgurou em jóias como Dualismo e como Aos sinos!

 
Dualismo
    Não és bom, nem és mau: és triste e humano... 
    Vives ansiando, em maldições e preces, 
    Como se, a arder, no coração tivesses 
    tumulto e o clamor de um largo oceano. 

    Pobre, no bem como no mal, padeces; 
    E, rolando num vértice vesano, 
    Oscilas entre a crença e o desengano, 
    Entre esperanças e desinteresses. 

    Capaz de horrores e de ações sublimes, 
    Não ficas das virtudes satisfeito, 
    Nem te arrependes, infeliz, dos crimes; 

    E no perpétuo ideal que te devora, 
    Residem juntamente no teu peito 
    Um demônio que ruge e um deus que chora.

 
Aos Sinos
    Plangei, sinos! A terra a nosso amor não basta. 
    Cansados de ancias vis e ambições ferozes, 
    Ardemos numa louca aspiração mais casta 
    Para transmigrações, para metempsicoses! 

    Cantai, sinos! Daqui, por onde o horror se arrasta, 
    Campas de rebeliões, bronzes de apoteoses, 
    Badalai, bimbalhai, tocai, à esfera vasta! 
    Levai os nossos ais rolando em vossas vozes! 

    Em repiques de febre, em dobres a finados, 
    Em rebates de angústia, ó carrilhões, dos cimos 
    Tangei! Torres da fé, vibrai os nossos brados! 

    Dizei, sinos da terra, em clamores supremos, 
    Toda a nossa tortura aos astros de onde vimos, 
    Toda a nossa esperança aos astros aonde iremos!

 
          Querendo-se prestar atenção, descobrem-se paralelismos e divergências até onde não parecem à primeira vista existir. No terceiro verso do soneto de que nos ocupamos há um  "ouro nativo" e uma "ganga impura". Ora, a ganga, em si, não é impura: pode ser, sim, uma impureza - em relação ao ouro, que ela envolve. Porque lhe chama, pois, impura o nosso poeta, sempre tão cuidadoso da propriedade dos termos? Chama-lhe assim, porque, forçosamente, a sua idéia foi esta: esse "ouro nativo" é o ouro puro da língua castiça, não contaminada dos solecismos e barbarismos correntes e triunfantes - essa "ganga impura"... E eis ai mais uma antítese. 

          Intervêm aqui reminiscências literarias. É freqüente encontrar-se nos escritores a comparação da boa linguagem com o ouro. Nativo é vocábulo que também não raro aparece, referido ao idioma e a coisas do idioma. É um termo de  que os puristas gostam... 

          O "nativo" desdém da nossa fala 

          dizia Filinto Elysio, que empregou o vocábulo mais vezes na sua Epístola sobre a arte poética. O purismo é uma variante do nativismo. 

          De reminiscências literárias, aliás, está o soneto cheio. Todas as idéias que ele contém trazem ecos ou reflexos dos livros. O elogio da língua, na segunda quadra, lembra Rodrigues Lobo, entre outros. A aptidão, especial do "meigo idioma" para exprimir sentimentos de saudade é velha pretensão, explorada em todos os tons, do empirismo literário luso-brasileiro. Traem a mesma origem, algumas expressões, como esse "ouro nativo" de há pouco. "Tuba de alto canglor" evoca-nos logo a "Tuba canora e belicosa" de Camões. "Trom" igualmente ocorre no vocabulário guerreiro do épico. 
 
  

            VI 
          O vocabulário do soneto, quer quanto ao sentido, quer quanto à forma das palavras, está bem na altura dos créditos desse artista equilibrado, consciencioso e destro. Bilac não se contentava de empregar o termo mais próprio e mais enérgico, exigia também o mais sonoro - contanto, porém, que não fosse rebuscado. Poucas vezes empregou um termo raro, e quando o fez foi sempre por via de alguma razão especial e forte. Na presente composição há um único vocábulo menos corrente - arrolo, outra forma de arrulho. Arrulho é mais conhecido, e já nos fala à alma desde o primeiro encontro. Além disso, é sem dúvida mais bonito que arrolo. O seu l molhado, precedido de u, dá-lhe um vago sabor de beijo... Então porque preferiu o poeta a segunda forma? 

          Por um questão de sonoridade. Arrulho, com a sua tônica u toaria com ternura, prejudicando sensivelmente o verso: 

          E o "arrulho" da saudade e da "ternura". 

          Um ouvido delicado não tolera tais repetições de sons, sem que haja nisso uma intenção e um valor. Bilac era exímio em variar os timbres vocálicos dos seus versos. Vede, neste soneto, como as diversas vozes da escala fonética se revezam e se contrastam, na sucessão das tônicas: 

          A bruta mina entre os cascalhos vela 
          Tuba de alto clangor, lira singela 
          Amo o teu viço agreste e o teu aroma. 

          Com relação ao vocabulário, uma única observação deixará de redundar num elogio - sem que deva por isso redundar propriamente numa censura: é quanto ao número dos qualificativos. São dezessete. É talvez muito para um soneto. Alguns desses qualificativos, pelo menos, positivamente não acrescentam traço algum sensível ao quadro: oceano largo não diz mais do que simplesmente oceano; em desconhecida e obscura há evidentemente uma sobrecarga. Dezessete qualificativos, é demais, se comparamos o soneto de Olavo aos grandes sonetos antigos da nossa língua: o "Fermoso Tejo meu" tem treze; "Alma minha gentil", seis; "Sete anos de pastor", apenas quatro. Mas não precisamos recorrer a outros poetas antigos nem modernos; o próprio Bilac nos mostra, em mais de um dos seus melhores sonetos, como sabia prezar o vigor e o relevo que adquirem as idéias no verso, quando se reduzem ao mínimo possível os moles prolongamentos dos qualificados. "Ouvir estrelas" tem apenas cinco; "Perfeição", seis ou sete; "Pátria", oito; "A um poeta", dez. 

          Para avaliardes um pouco esse vigor e esse relevo, saboreai de vagar, por exemplo, esta quadra, onde o único adjetivo qualificativo que existe - bela - adquire inesperada valência, explicando por si só a paixão de Jacob: 

          Sete anos de pastor Jacob servia 
          Labão, pai de Rachel, serrana "bela"; 
          Mas não servia ao pai, servia a ela 
          Que a ela só por prêmio pretendia. 
 
  

            VII 
          A métrica, essa é perfeita. Bilac foi um dos nossos mais acabados versificadores. O seu verso não tem, talvez, tanta variedade nem tanta frescura de ritmos como os de Raymundo. O decassílabo de Raymundo é vivaz, é retrátil, é distensivo, é esvoaçante, é lesto, é imprevisto... Recordai um pouco:

 
    Extenuando os ventos, e nos flancos 
    Longo enxame a arrastar de flocos brancos 
    De espuma, e raios e fosforecências... 
    .................................................................. 

    Os estandartes de arrogantes pregas, 
    As batalhas, os choques, as refregas, 
    Náuseas de fogo de canhões sangrentos. 
    ............................................................. 

    Enfim  dezenas 
    De pombas partem de pombal apenas 
    Raia sangüínea e fresca a madrugada. 
    ......................................................... 

    Quando do Olympo nos festins surgia 
    Hebe risonha, os deuses majestosos 
    As taças estendiam-lhe, ruidosos, 
    E ela, passando, as taças lhes enchia. 
    ........................................................

 
          Os rítmos de Bilac não tem, geralmente, essa vivacidade, não descrevem essas espirais, esses coleios, essas voltas; não tem esses sustos, esses impetos, essas dormências, esses quebros. São um tantinho mecânicos. São mais iguais, e mais martelados. Em compensação, os versos também são mais corretos: não tem frouxidões nem durezas, não tem hiatos nem colisões, nem ecos, nem palavras repetidas, nem rimas fracas ou forçadas.

          No que toca às rimas, vede com que habilidade admirável elas foram encaixadas. Caem com a mesma naturalidade das outras palavras. Fica-se quase surpreso de que se correspondam tão bem. Entretanto, nenhuma dessas rimas é fácil, nenhuma se pode dizer que foi a primeira que se apresentou. Ao contrário, basta um ligeiro exame para se perceber que houve uma escolha lenta e trabalhosa. Rimar, por exemplo, majestosos com ruidosos, como fez Raymundo em "Hebe", é abuso. Vede as rimas deste soneto: bela e vela, singela e procela - um adjetivo e um verbo, um adjetivo e um substantivo. Depois: sepultura, impura; obscura, ternura: - substantivo, adjetivo; adjetivo, substantivo. Nos tercetos: aroma, idioma; filho, brilho; largo, amargo. Aqui, rimam palavras da mesma categoria gramatical, mas, em compensação, as terminações em oma, ilho, argo são bem pouco vulgares. Nota interessante: ainda por causa do agradável contraste de sons, a que já nos referimos, Bilac variou o mais possível os acentos tônicos dos diferentes grupos de rimas. Esses grupos são cinco, dois nas quadras, três nos tercetos; os acentos tônicos tombam em cinco sons diversos - a, e, i, o, u: argo, ela, ilho, oma, ura.

          Não faltará quem veja nestas questões apenas umas chinesices risíveis. Um pouco de reflexão mostrará que vai nisso uma injustiça. Em primeiro lugar, toda arte se apoia numa técnica minuciosa, exigentíssima, - sem o que não seria "arte". A poesia, arte também, tem também a sua técnica meticulosa. Em segundo lugar, não há nesta um só preceito que não se explique, ao menos, quando amplamente não se justifique.
Ao contrário daquilo que muitos supõem (e supõem porque não se dignam de refletir no que dizem), as exigências da rima não são caprichos, não constituem uma ginástica que se cria pelo simples prazer de poder exercitá-la. A rima rica, a rima rara e dificultosa, a rima que se luta e súa para engastar na extremidade do verso, "como um rubim", não visa, nos que sabem dela usar, a demonstrar a virtuosidade do artífice. Muito ao invés, ela tende a disfarçar-lhe o trabalho e a pena. A rima demasiado corriqueira é mais vistosa do que a difícil, e dá mais forte impressão de ter sido metida a martelo. Tais são, por exemplo, as rimas entre particípios em ado, adjetivos em oso, substantivos em ade: mudado com calado, formoso com  amoroso, liberdade com  piedade. São rimas que entram pelos olhos, que se esperam, que se anunciam, que cheiram a artifício, e a um artifício surrado e infeliz. As rimas menos fáceis, ao contrário, - desde que se trate de bons poetas, - tombam a seu tempo como quaisquer outras palavras. Dir-se-ia que a consonância foi obra do acaso. Justamente por serem menos vulgares, essas rimas não ferem tanto a atenção do ouvinte. São imprevistas, e porisso não enervam.

          Quando se lê ou se ouve um verso terminado em garboso, pode-se desconfiar que um caloroso, um saboroso ou um gostoso está armado logo adiante, e espera-se por ele como quem espera rebentar uma bomba cujo estopim já estraleja. Mas, quem ouve ou lê um verso que termina por uma forma menos chata não tem essa sensação impertinente de que a fatalidade da rima está propínqua.

          Nem se diga que estas preocupações de rima sejam mania moderna de poetas que por outras qualidades não se recomendam. Nunca houve poeta culto, digno desse nome e desse qualificativo, que não se preocupasse com os consoantes - desde que os consoantes tiveram entrada em poesia. Poupar-vos-ei a pena de uma longa demonstração. Simplesmente - e mais a título de recreio que de prova - quero recordar-vos, sem comentários, uma velha jóia da poesia portuguesa, este lindo soneto:

 
    Formoso Tejo meu, quão diferente
    Te vejo e vi, me vês agora e viste:
    Turvo te vejo a ti, tu a mim  triste;
    Claro te vi eu já; tu a mim contente.

    A ti foi-te trocando a grossa enchente,
    A quem deu largo campo não resiste;
    A mim trocou-me a vista em que consiste
    O meu viver contente ou descontente.

    Já que somos no mal participantes,
    Sejamo-lo no bem. Ah! Quem me dera
    Que fossemos em tudo semelhantes!

    Lá virá então a fresca primavera;
    Tu tornarás a ser quem eras dantes,
    Eu não sei se serei quem dantes era.

 
          
           VIII
          Saiamos agora de dentro do soneto de Bilac, dêmos-lhes mais um golpe de vista circular, recapitulemos as impressões, e concluamos.

          O soneto de que nos ocupamos é, pelas características do estilo e da forma, um soneto bem bilaqueano, da última fase. Também o é pelo pensamento patriótico que o ilumina interiormente, sem se mostrar de todo, como uma luz encoberta por um vidro opaco. Esse pensamento patriótico se revela, através da mesma preocupação de amar, estudar e honrar o que é nosso, em muitas outras peças da "Tarde".

          O conteúdo do soneto não desgarra dessa concordância. Na sua última fase Bilac tornou-se menos lírico e mais reflexivo menos sentimental e mais raciocinante. Tentou ver mais claro na alma humana - e tornou-se o psicologista e o moralista de Dualismo, de Defesa, de Caos, de Aos Sinos. Procurou uma interpretação pessoal dos aspectos da natureza, dando-lhes o valor de símbolos - Os Rios, As Àrvores, As Estrelas, As Nuvens, As Ondas, os Amores da Aranha e da Abelha. Filosofou variamente em muitas páginas. Ocupou-se de assuntos de arte, de saber, de cultura. Teve plena consciência do seu patriotismo e justificou-o, e proclamou-o, e pregou-o em Pátria, em Música Brasileira, em Anchieta, em Diziam que... Seus versos passaram a trair tendências construtivas, impregnaram-se de meditação e de estudo, encheram-se de reflexos eruditos. O soneto sobre a nossa língua é um produto genuíno dessas condições de espírito.

          Entanto, o amor do vernáculo é velho em Bilac, e mostra-se em mais de um relance da sua obra de prosa e poesia. Ainda bem moço, já o ilustre poeta, fazendo o elogio de Bocage - uma das afeições literárias mais persistentes - não o louvava só pelo esplendor lírico dos seus versos, mas também pelo seu vernaculismo:

          Mestre querido! Viverás, enquanto
          Houver quem pulse o mágico instrumento
          E preze a língua que prezavas tanto.

          E, na sua orgulhosa e magnífica "Profissão de fé", exclamava:

          Ver esta língua, que cultivo,
                  Sem ouropéis,
          Mirrada ao hálito nocivo
                  Dos infiéis!...

          Mas, em suma, qual o valor das idéias contidas nesse soneto? Essas idéias são excelentes, enquanto nos impulsam ao amor e ao estudo do nosso idioma. Entretanto, por um lado, elas se ressentem de um pouso de literatura: amar, por exemplo, a língua pátria, porque nela Camões lamentou suas desgraças no exílio, não é, sem dúvida alguma, das coisas mais espontâneas e naturais... Por outro lado, essas idéias denotam a persistência de certos preconceitos brasileiros a respeito da língua.

          Notai como o poeta insiste em vincar no idioma a sua qualidade de obscuro:

          E's a um tempo, esplendor e "sepultura"...
          Amo-te assim, "desconhecida e obscura"...

          Esta é uma idéia que não raro reponta nas rodas intelectuais do Brasil. Ela provém da sensação de contraste formidável, que nos esmaga, quando comparamos a universidade da língua francesa, na qual escrevem tantíssimos autores, às vezes bem medíocres, cujos nomes voam logo por todas as direções da rosa dos ventos, com o campo relativamente restrito em que se acha confinado o nosso idioma. Dessa sensação vem um sentimento de inveja. Essa inveja, inconscientemente alimentada, floresce em lamentações sobre a estreiteza do idioma nacional. Em lamentações e em revoltas. Alguém já disse, há tempos, que - "a língua portuguesa é o túmulo do pensamento", e essa frase ficou célebre. A sepultura do soneto de Bilac deve ser uma evolução desse túmulo.

          Ora, a verdade é que a língua portuguesa não é assim tão desconhecida no mundo: ela é falada por alguns milhões de bocas... Uns quarenta milhões de almas se comunicam por seu intermédio. Pois não será bastante? Se ainda fica razão para desejarem mais, a culpa não é dela. Além de tudo, não há língua alguma literária que seja um túmulo para o pensamento. O pensamente que merece viver vive folgadamente dentro dela; e se merece transpor os seus limites, mais cedo ou mais tarde os transpõe, sem que nada o possa impedir.

          Outra idéia que está no ambiente é a de que a nossa língua é ainda algo grosseira. Inculta e rude lhe chama Bilac, e acha-lhe um certo viço agreste, e um aroma de selva. Ainda aqui se percebe que o termo de comparação é o francês. O francês é a nossa eterna maravilha e a nossa eterna tortura. Tudo se refere a ele. Tudo se prova nessa pedra de toque. Mas, vejamos esta questão de perto.

          Se comparamos o português corrente e moente do povo, dos jornais e do grosso da literatura contemporânea ao francês de Pascal, de Voltaire, de La Fontaine, de Chateaubriand, de Anatole France, é claro que não podemos deixar de sentir uma diferença vertiginosa. Se compararmos a esse francês o português de Camões, de Luiz de Souza, de Vieira, de Bernardes, de Latino, de Ruy Barbosa, de Olavo Bilac - ainda sentimos, sim, uma grande diferença, uma notável, uma fragrante diferença. Mas esta diferença já não é tanto de qualidade; uns e outros, portugueses e franceses, são admiráveis. A grande diferença entre as duas línguas é de formação, é de mecanismo, é de gênio, é de feições. Dentro das suas respectivas índoles elas se eqüivalem. Elas exprimem perfeitamente tudo quanto queiram os que sabem usá-las. A nossa língua será sempre rude e rebelde para quem deseje vestir com a sua roupagem um pensamento elaborado em francês, ou à francesa. Em troca, também o francês há de ser sempre um instrumento duro, desajeitado, ingrato, um instrumento quase tão rude como qualquer algaravia barbaresca, para quem quer que deseje manejar esse idioma sem o ter bebido com o leite, ou respirado desde verdes anos no ambiente do lar, no recinto dos liceus, no ar bulhento das ruas, nas brisas livres do campo, na atmosfera serena das bibliotecas.

          Compreende-se que os literatos, abeberados como andam, e é inevitável que andem, de cultura francesa, de literatura francesa, de língua francesa, achem o português pouco expressivo, pouco maleável, pobre de recursos. Mas é preciso refletir que o mal não é do vernáculo; é das condições que nos obrigam a formar o nosso espírito e a rimar o nosso pensamento no trato de uma língua e literatura estranhas. Cabe-nos a nós estudar, cultivar, praticar o idioma natal com  mais afinco. Como queria Filinto Elysio, é preciso que, depois de admirar as belas páginas dos bons autores franceses, voltemos logo ao trato dos nossos, como higiene, e energicamente nos desempoemos:

          Co'o espanador de Barros e Vieira.

          Enfim, é muito para ponderar que os poetas, homens de imaginação, de sentimento, de paixão, de sensibilidade irritável, não são em regra bons juizes nestas questões de língua. Não podem ter serenidade, porque são impetuosos. Não podem ver claro, porque não conseguem desprender-se de si mesmos.

          Na sua insaciabilidade de artistas, lutam terrivelmente com a língua e, se às vezes conseguem vencê-la, nem sempre o reconhecem. Mas, para artistas exigentes e meticulosos todas as línguas são dificílimas. Flaubert tratava esse maravilhoso, esse perfeito idioma de Racine com a fúria violenta e a tenacidade concentrada de um rachador de lenha, com a paciência minuciosa e tateante de um burilador de jóias. Consumia anos e anos a escrever um romance, semanas a escrever duas ou três páginas... Com Bilac se dava algo de parecido. A sua anciã de perfeição transparece de toda a sua obra. Ele sentia-se um bárbaro a esmurrar desesperadamente uma porta de bronze fechada. Porisso chamou ao português, além de rude e inculto, doloroso:

          Amo-te, ó rude e doloroso idioma.

          Para nós, lendo Bilac, ele não é rude dem doloroso: é uma teorba, um órgão, um violino, uma orquestra completa, apta a traduzir tudo, a sugerir tudo, com energia incomparável, com brilho deslumbrante, com delicadíssima suavidade. Pobres, pobres poetas! Até nisto sacrificados! Como as abelhas, não é para vós que fabricais o mel delicioso, na penumbra e no sofrimento. Sic vos non vobis...

                                                                          
Remetente: Walter Cid

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 Página editada  por  Alisson de Castro,  Jornal de Poesia,  26  de  Maio  de  1998