Astrid Cabral
Fortuna Crítica:
Antônio Paulo Graça
A Poesia de Astrid Cabral
Quando, em 1963, Astrid Cabral
publicou os contos de Alameda, muitos críticos e escritores
importantes anunciaram-lhe um destino literário grandioso. Contra a
justa expectativa, ela silenciou por dezesseis anos. Em 1979,
publicou Ponto de Cruz, que também obteve boa recepção. Mas os
costumes já começavam a mudar. A crítica diligente, honesta e
generosa praticamente já havia sido despejada dos jornais e, por
isso, seus livros posteriores acabaram sofrendo a indiferença e o
injusto silêncio.
Astrid Cabral, entretanto, com a força dos criadores autênticos,
construiu um sólido edifício poético com os cinco laboriosos livros
que agora se reúnem.
Em Alameda tínhamos vinte contos.
Seus personagens eram flores, árvores e frutos que se transformavam
em personagens trágicos, destinados à morte. Mas a sutileza da
atmosfera narrativa mitigava o profundo pathos daqueles minúsculos
destinos que espargiam humanidade. Ali já se desvelava uma das
chaves da poética de Astrid Cabral: a consciência do desastre de
toda existência aliava-se ao possível heroísmo humano. Mediando essa
tensão entre resistência e condenação, estava a arte, a beleza, a
sutileza formal e sensível..
Em Ponto de cruz e nos livros
seguintes, a originalidade do olhar e da voz de Astrid Cabral se
afirmará com a mesma força das verdades elementares. Duas são as
linhas de força de sua lírica: uma que investe na interioridade
(pessoal e geográfica), outra que busca decifrar o enigma do
exterior, sejam os países, como em Torna-viagem e Rês desgarrada ,
sejam as ameaças da existência.
A seção inicial de Ponto de cruz
se concentra no amor e no sexo. À primeira visada, pensamos
tratar-se de júbilo e exaltação erótica, uma vez que o poema de
abertura afirma o poder cosmogônico do fogo amoroso. Entretanto,
logo nos damos conta de que o contínuo trabalho do tempo, sombra a
que não se pode escapar, vai arruinando mesmo os instantes de prazer
autêntico. Em "Modo de amar", por exemplo, a presença da destruição
é rejeitada:
Amor como açudes sangrando
ou caudais e tempestades
despencando dilúvios.
E não me falem de ruínas
nem de cinzas, nem de lama.
Acentua-se o papel demiúrgico do
amor, mas o dístico final funciona como uma espécie de anticlímax,
afinal as ruínas, as cinzas e a lama estão à espreita, são a
contrapartida lógica da criação. O poema que se segue já se mostra
inteiramente envolto pelas brumas da angústia que o sexo não logra
extinguir:
Pesado é o coração
do escombro de teus sonhos
e dos mortos que em teus ombros
repousam imortais.
O amor de ontem
é cinza feota chumbo.
Cicatrizes e rugas
lavram a tua carne
de aflições temperada
e a vazante das veias
irriga-se
de subterrâneas lágrimas antigas.
(Réquiem)
Importa pouco que a derrocada
pós-coito seja atribuída ao outro. As subterrâneas lágrimas antigas
(epíteto insuperável!) que, paradoxalmente, temperam o corpo e
golpeiam o espírito se referem, afinal, a todos os amantes.
Poderíamos lembrar que Carlos
Drummond de Andrade nos ofereceu uma série de memoráveis poemas em
que do amor se despiam todas as vestes convencionais para lhe
contemplarmos apenas a crueldade óssea. Mas Astrid Cabral opta por
mais sutileza, quase a escondendo o traço amaro da experiência que
ela parece expor com alegria. Eis sua originalidade. Em outros
casos, sobretudo quando trata diretamente do tema da existência, a
nota cortante ecoa naquela minúscula mas tenaz resistência. É o caso
de poemas como "Circunstância-mor", em que a inviolabilidade do ser
ganha contornos heróicos:
Mas tua carapaça
refratária, intacta
não trinca o toque
de nenhum afago.
O mais inexperto dos ouvidos não
deixará de perceber que o arranjo polifônico da consoante oclusiva
/t/ com toda a gama de timbres vocálicos (tua, refratária, intacta,
trinca, toque) constitui precisa imagem a espelhar a sensibilidade
avessa ao contato do ser em causa, ser cujo trabalho é preservar sua
intimidade
na gema de pedra
que ninguém penetra)
Não entraremos em considerações
sobre a presença feminina na poesia brasileira. Nem recorreremos a
sínteses mudas sobre a frieza de Francisca Júlia e a sensibilidade
de Cecília Meireles. Queríamos apenas observar que, entre os anos 70
e 80, muitas escritoras ousaram investir em detalhes próprios à vida
e à experiência da mulher. Ana Cristina César, Adélia Prado e Suzana
Vargas são apenas alguns exemplos distintos e representativos.
Astrid Cabral, a seu modo, trouxe para o centro poético não apenas a
sensibilidade feminina, que observa a vida de maneira nova, mas
também os próprios fatos e acontecimentos domésticos que, só a
partir daquela sensibilidade, parecem capazes de proporcionar a
experiência lírica. Vejamos o poema que dá título a Ponto de cruz:
Lá fui eu ao armarinho
(tangida por que ventos
por que pérfidas sereias?)
comprar um dedal de amor.
Voltei com este coração
são sebastião de alfinetes.
Não é apenas a originalidade do
coração e suas minúsculas setas sangrentas que nos desconcertam. É
também o drama da jovem perdida num périplo absurdo e anti-homérico
--- os ventos e as sereias de Ulisses não conduzem ao happy end.
Há um tema recorrente em Astrid
Cabral: o café da manhã. Desse episódio diário e insignificante, ela
retira verdadeiras iluminações. Em "Manhã", a antropomorfização de
xícaras, torneiras, manteiga, pão e leite se opõe à falta de
significação do mundo dito real, aquele que vem cifrado nos jornais.
Ainda em Ponto de cruz está "Café da manhã". O poema, diga-se assim,
denuncia os ritos bárbaros sob nossos gestos simples e automáticos
do cotidiano:
O trigo, ontem livre ao vento
é pão cativo no teu ventre.
(...)
E o café aos goles é sangue
que, vampiro, engoles.
A consciência feminina pode também
revelar-se dolorosa e cruel. Em certo texto, a escritora
sensibiliza-se com a tragédia invisível das mulheres que se esgotam
nas tarefas diárias:
Elas caminham para a morte
pelas sendas de suas rugas
e cobrem os seios lassos
não de tecidos grossos
mas de restos de sonhos.
Da memória de outros dias
elas se nutrem e não
das carnes que temperam
com cebolas.
(Sendas de Rugas)
Depois de Ponto de Cruz, Astrid
Cabral publicou Torna-viagem (1981). Trata-se de livro irmão de Rês
desgarrada (1994), pois, como ele, consiste em poemas de voluntário
(quem pode afirmar?) exílio. O último foi escrito nos Estados
Unidos, o primeiro no Oriente: Líbano, Síria, Grécia, Irã... A voz
lírica nos conduz, como se fora um guia turístico da alma de outras
culturas, sempre salientando imprevistos acidentes, regiões,
detalhes de uma geografia metafísica.
Elemento criador e
transubstanciador das experiências convertidas em poesia é a
memória. Inicialmente, o "fato"poético se dá no encontro da memória
oriental, sua história e seus mitos, com a observadora certamente
desconcertada, pois filha de uma cultura em que a história não passa
de tênue sopro na iminência de se apagar. Em seguida, tem-se a
distância entre a experiência lírica e o ato criador. Segundo a
própria escritora, sete anos se passaram desde a viagem real até a
imaginária. O que importa é que sua memória logrou reter aquela
viagem de maneira tão viva que, por segundos, chegamos a duvidar de
sua informação. Quase tocamos a alça de um vaso/ constelada de
crustáceos que o mar deposita nas mãos da poeta. Lembramos a urna
grega de Keats, contemplamos a beleza no fragmento a destruir-se e
ouvimos, pela mágica da lírica, o marulho do insondável mar:
Na palma antes parece
estranha orelha de barro
escancarada ao marulho
do mar a arfar eterno
A orquestração vocálica do
primeiro verso citado (quase toda em "a") vai repercutir nos dois
últimos, em que o marulho do mar a arfar chega a nos entontecer,
pois ouvimos as ondas à nossa frente (de sete sílabas, quatro trazem
"ar") e só descansamos com a confortante palavra eterno e seus
fonemas abertos.
Na apresentação de Torna-viagem,
Ivan Junqueira observou que, embora os motivos do livro sejam os
lugares, o espaço, portanto, sua apreensão se dá pela memória, ou
seja, pelo tempo. Assim, o espaço se temporaliza e o nervo do efeito
poético se encontra mesmo no sujeito lírico. Eis o segredo da
densidade humana desse livro. O fato de ter sido escrito muito tempo
depois da experiência contribui para a unidade dos poemas. Walter
Benjamim já havia percebido procedimento semelhante e, no estudo
sobre Proust, anotou: "um acontecimento vivido, ao passo que o
acontecimento lembrado é sem limites, porque é apenas uma chave para
tudo o que veio antes e depois." Apenas para ficarmos com um
exemplar, leiamos o poema de número XIX. Nele Beirute se converte em
poço de tempo:
Oh Beirute/ Beryte
poço de tempo coagulado
calabouço de lembranças
que me entrançam de limo.
Torna-viagem, menos que terrestre,
é um livro marítimo. A poeta, que se transforma em guia turístico da
alma, do espaço-tempo, se revela também um marinheiro consciente de
ameaça e do mistério das águas. Por isso, a célebre metáfora de
Coleridge (túmulo líquido do mar) se desdobra em duas extasiantes
variações:
Os votivos obeliscos
dão adeuses de pedra
junto ao túmulo do mar
A sinistra sina dos suicidas
que da Grotte aux Pigeons
arremetem seus rasos vôos
de corpos implumes rumo ao fundo
azul do líquido jazigo marinho?
Não escapará ao leitor atento que
as paisagens aí apresentadas são exemplos acabados do que Immanuel
Kant chamava de o sublime na natureza. A grandeza dos obeliscos, das
grutas, o precipício fatal e o vasto oceano atordoam e consolam,
porque o leitor pode fruí-los em segurança. Kant conclui afirmando
que esses objetos sublimes "elevam a fortaleza da alma acima de seu
nível médio e permitem descobrir em nós uma faculdade de resistência
de espécie totalmente diversa, a qual nos encoraja a medir-nos com a
aparente onipotência da natureza. "Tanto faz que a fatalidade
alcance os obeliscos prestes a se arremeterem ou os suicidas
minúsculos e impotentes, nós sobrevivemos e assistimos, em
segurança, esse espetáculo doloroso do destino insondável.
Rês desgarrada (1994) também
nasceu do mesmo impulso de Torna-viagem: compreender outra cultura,
nesse caso, a americana. O poema-título ---
Pois em Chicago, amigos,
sou rês desgarrada.
Agarra-me sim, danada
a nostalgia da ex-boiada.
Carga pesada esta saudade
dos pastos brasis
onde os buritis sambam
à carícia da brisa.
Perde-se meu ser rural
tão tropical nesta urbe
labirinto de pedra e vidro
sob o cilício do frio.
Oceanos de chão e tempo
cercam-me gélidos, cegos.
Neles, sem sossego navego
e nau sem rumo quase afundo.
(Vaca na balsa, rês desgarrada)
Abre o livro já em inesperada
apoteose. A mescla de estilos, o sermo urbanus (labirinto de pedra e
vidor/ sob o cilício do frio) e quotidianus (danada/a nostalgia) se
junta a uma saudável mescla de poéticas de matrizes populares e
murilianas, como nos buritis que sambam à carícia da brisa. O final
traz imagem forte, insubstituível em seu primitivismo quase mítico.
O estrato das sonoridades é mais que pedagógico, com rimas internas
e toantes.
O café da manhã agora se torna "breakfast",
um achado de composição, idéias e sentimentos:
o hábito matinal
de afogar relógios
e cruzar o Atlântico.
---- Brasil, Brasil
O sol de tuas laranjas
no chão da mesa
planta a aurora
que meus dedos colhem ----
O galo da Kellog's surge
mudo em emio dos vivos cantos
de longínquos quintais.
Que comentar sobre o instante
iluminador em que o espírito cruza oceanos e rompe os fusos
horários? Toda a imagística das cores constrastantes (aurora e o
chão, ecos fúnebres sob o império das luzes) aí está a serviço de
uma funda emoção. Trata-se, diríamos, de natureza-morta pós-moderna,
em que ao lado das laranjas brasileiras e vivas aparece não um galo,
morto evidentemente, mas um signo comercial, um logotipo.
Lendo "A velha América"
Desembarquei na América
com atraso de séculos.
Os búfalos já nos livros
Temos a dolorosa sensação de que,
mais do que estrangeiros nos Estados Unidos, somos estrangeiros
deste século predador. Astrid também descobre uma surda oposição
entre cercas concretas e inúteis do nosso país e as abstratas, que
se erguem nos corações americanos.
A primeira edição de Rês
desgarrada trazia um iluminador prefácio de José Santiago Naud, que
foi capaz de perceber o complexo crueldade/ ternura, marca
distintiva da escritora. Sua análise da terceira parte ( "Outro
clima") expõe, com propriedade, os princípios poéticos do lifvro,
restando-nos sublinhar a riqueza de tons com que Astrid desenha a
neve e com ela constrói metáforas, ora fúnebres, ora líricas, mas
sempre viçosas.
Em 1986, lançou nova reunião de
poemas: Lição de Alice. O título e a epígrafe de Lewis Caroll, mais
a capa com quadro de Ismael Nery já indicavam uma das vertentes do
livro: o surrealismo. Surrealismo de imagens murilianas, de
paisagens à Dali, à Magritte, à Chirico, enfim à Astrid Cabral, como
em:
Boca
livre trânsito
de vocábulos e aves
fruições e frutos.
Boca
sede de gozo e poder
pombos lhe pousam
entre os dentes ávidos
pêssegos se imolam
cindindo-lhe os lábios.
(Boca)
Ou, ainda, no denso "Jardim
secreto":
Nesse jardim tão noturno
empilham-se crespas trevas
em touceiras de veludo.
(...)
Frutos exóticos cevam-se
no rubro sangue do crime
coalhado em antiga terra
enquanto à sombra de urtigas
vida e morte, unas se integram.
No primeiro, contemplamos a imensa
boca, aves, frutos e desesperos. Já no segundo (irmão de "Jardim",
de Drummond), a composição consiste na colagem de uma série
magistral de correlato objetivos que indiciam o sentimento trágico e
inexprimível da escritora.
Se Torna-viagem se abria para o
espaço amplo, para o exterior (em todos os sentidos), Lição de Alice
se concentra na intimidade, no mínimo espaço, na vida doméstica e
nas experiências de uma voz sensível, muitas vezes, outras,
extremamente cáustica, não faltando mesmo, aqui e ali, um toque de
crueldade. O leitor de Astrid Cabral não deve se deixar envolver
inteiramente por sua sensibilidade. Como antídoto, preste-se atenção
aos versos finais de "Nudez":
Mas bendizemos o corpo que nos redime
e nos queremos selvagens, puros, nus.
Salvos pela misericórdia de nossa miséria.
... em que o paradoxo da última
linha não nos deixa esquecer nossa condição liliputiana. Ao lado
desse pendor crítico, há também uma tentação pela agressão pura,
agressão contra as falsas convenções. Afinal, em "Cave canem",
Astrid nos adverte:
Dentro de mim há cachorros
que uivam em horas de raiva
contra as jaulas da cortesia.
Estamos vendo que, sem embargo de extrema e finíssima
sensibilidade, a poesia de Astrid Cabral nela não se esgota, navega
por tonalidades e temas os mais crespos. Sua insuspeita rebeldia
também se expõe na maneira bruta como, às vezes, trata o sexo:
Desceu a vales de axilas e virilhas
às crateras da boca e do ânus.
(Corpo e Alma)
Ou a religião. Afinal, o caminho
para chegar a Deus se expõe como a "vera fictícia escada" e, nas
"Interrogações I", podemos ler:
Depois, quando o longínquo
estiver perto: Deus diante
de nós presente e eterno
ou o não-Deus a descoberto
rompido enfim o lacre
do enigma que nos fulmina.
Não será deselegante, entretanto,
observar que o ânimo crítico de Astrid Cabral se volta
preferencialmente contra certas convenções da vida atual. Vários de
seus flashes focalizam, como se disse, ritos bárbaros sob os véus do
cotidiano. Além disso, há outros instantes em que a condição
contemporânea se deixa ver na completa perda de valores, como em
"Esquartejamento". No poema, uma modelo vende centímetro a
centímetro todo o seu corpo, até chegar ao ponto em que não mais se
distinguem alma e imagem. De um modo geral, sua abordagem desse
esvaziamento espiritual é bastante simples, corresponde ao olhar
ingênuo e interrogativo. Mas, à segunda leitura, surpreendemo-nos
com uma sofisticação que nasce exatamente da simplicidade.. Nesse
sentido, evocar a poesia de Emily Dickinson será, menos que
obviedade, um dever. Em poemas como "Happy end":
Findou-se a surda batalha.
No bolso do paletó
o invisível passaporte
para o invisível mor.
A constatação singela conduz à
mais densa reflexão, ao mais drummondiano ceticismo. Já "A inútil
luta" descreve a decadência física e os vãos artifícios na vã
tentativa de congelar a juventude:
A juventude? Exilada
em antigos retratos
recordações já trôpegas
Ou de reacender o coração, que
hoje se encontra
Ameaçado
não de paixão, mas da taxa
de colesterol em alta.
Enfim, Lição de Alice constitui o
centro luminoso da poesia de Astrid Cabral, algo equivalente a Claro
enigma, na obra de Drummond.
Publicado simultaneamente à Lição
de Alice, Visgo da terra enfeixa meia centena de poemas todos
dedicados ao Amazonas. Em três veios temáticos (terra, água e seres)
derrama-se uma memória, ao mesmo tempo, dolorosa e aliviada.
Entretanto, tal divisão corresponde mais ao grau que ao gênero das
lembranças, uma vez que a existência, tema último dos poemas, há de
sempre supor uma série de circunstâncias.
Ao contrário dos livros
anteriores, em Visgo da terra predominam os poemas longos, de versos
também dilatados, o que lhe acentua o caráter meditativo e o
amadurecimento da voz lírica --- essa voz complexa, prenhe ainda de
impressões infantis, mas trabalhada pela vivência do adulto maduro e
cético. Em breve apresentação, Octavio Paz pôde afirmar que a grande
lição da poesia de Elizabeth Bishop se encontrava nos "poderes
imensos de la reticencia". A expressão se ajusta a Visgo da terra.
Os animais, as plantas, os rios, todo o mundo amazônico se exibe em
closes irretocáveis. Sabemos que ali houve algo, talvez uma
iluminação, talvez uma catástrofe, mas o sujeito lírico silencia.
Apresenta-nos o espetáculo do mundo e emudece. Seu silêncio é pathos
e mistério.
Se nunca foram inexistentes, a
ironia e o humor não passavam de tênues insinuações nos livros
anteriores. Em Visgo da terra , ainda uma vez diferente, eles se
expandem chegando ao riso escancarado. As histórias de assombração
(na medida certa para arrepiar os inocentes) e sua legião de
monstros são recontadas com o necessário encantamento, numa
linguagem límpida e evocativa.
Há também aqueles casos
provincianos, hilariantes como em "Ponte Cabral":
E subia de madrugada o leiteiro
o camburão de alumínio entornan-
do o leite batizado de rio onde
não raro intrusos peixes boiavam
nos copos para o espanto de todos.
Em que o anacoluto, a quebra
vocabular e a repetição se organizam magistralmente, criando uma
linguagem bastante próxima do falar rude. No entanto, o que
predomina nessas memórias é mesmo a consciência da catástrofe de
toda existência. Mas, nietzschiana, Astrid Cabral não teme o
destino, aceita-o, descobre o heroísmo possível, o amor fati quando
escreve:
Rio Negro
contigo arrastas rumo ao abismo
invisível carga de risos de meninos
orgasmos de jovens, ais de velhos.
Sereno soberano também me carregas
na deriva da vida até o oculto oceano
refluindo fluindo indo indo...
Por fim, resta observar que, no
panorama atual da literatura brasileira, Astrid Cabral ocupa um
lugar privilegiado, por expressivo motivo: ela mantém viva a
tradição da poesia meditativa (às vezes, filosófica mesmo), evita as
invencionices (senis ou pueris) e, sobretudo, cultiva valores
estéticos contemporâneos, sem se deixar escravizar pelos grilhões do
neo-parnasianismo, que tem confundido fulgor estético com rigor
mortis. No texto já citado, Octavio Paz escreveu: "Imaginação
descreve a operação poética como um jogo gratuito: liberdadea define
como uma eleição moral. A poesia de Elizabeth Bishop tem a ligeireza
de um jogo e a gravidade de uma decisão."A bem poucos poetas do
Brasil contemporâneos essa caracterização é tão adequada quanto a
Astrid Cabral.
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