Astrid Cabral
Fortuna Crítica:
Tenório Nunes Telles
Mais que uma sensibilidade
feminina
A partir de meados da década de
70, passados os anos intensos de construção do Clube da Madrugada,
arrefecida sua fase experimental e mais criativa, a Literatura
Amazonense começa a viver os primeiros sintomas de esgotamento, o
que vai se refletir na nossa produção poética, em franco processo de
exaustão, sem a autenticidade e a vitalidade das obras dos autores
ligados às primeiras gerações do Clube da Madrugada.
Sem que se possa apontar um nome
ou uma obra que acene com novas perspectivas no plano da elaboração
poética, o Movimento Madrugada vive o impasse, a repetição de certos
processos criativos já superados. Na verdade, afora a produção
literária dos autores pertencentes aos quadros iniciais do Clube da
Madrugada, muito pouca coisa apareceu de inovador no cenário
literário amazonense. É verdade que o poeta Jorge Tufic continuou
tentando injetar, com seus manifestos e algumas experimentações como
a “Poesia de Muro”, os “Poemas-processo”, alguma vitalidade no corpo
da poesia amazonense.
É em meio a esse ambiente, já
maturado pelo desgaste, pelo exaurimento dos processos de elaboração
literária, que surge um lampejo de luz, uma voz que se por um lado
repete conceitos e procedimentos formais de criação já
experimentados, por outro, apresenta ressonâncias novas no discurso
poético amazonense. Trata-se do aparecimento de Astrid Cabral, com o
livro de poesias ”Ponto de cruz”, publicado em 1979. Vindo a seguir
seu segundo livro de poesias, “Torna-viagem”, de 1981. Além da
inserção de um discurso poético e percepção feminina, a obra de
Astrid Cabral instaura, no contexto da poesia Madrugada, uma dicção
poética mais intimista, reveladora de uma forte sensibilidade
feminina. Mais que isso, sua obra é a revelação de uma nova
percepção sobre a realidade local, um novo olhar sobre o tempo e o
cotidiano, numa tentativa de recuperação do passado.
É verdade, entretanto, que embora
Astrid Cabral dê a seus textos uma conotação mais subjetiva, não se
desvincula de sua realidade, continua ligada ao universo regional,
adotando como matéria de seus versos elementos típicos do sentir e
do viver do homem da província, alma fraturada, difusa. Daí a
presença em seus textos, da água, da terra, da natureza, do ciclo da
vida em seu contínuo arrastar-se, deixando para trás a matéria
impalpável das lembranças, tudo permeado por uma forte atmosfera
intimista, como se observa no poema “Água doce”, do livro “Visgo da
terra”:
A água do rio é doce.
Carece de sal, carece de onda.
A água do rio carece
da vândala violência do mar.
A água do rio é mansa
sem a ameaça constante das vagas
sem a baba de espumas brabas.
A água do rio é mansa
mas também se zanga.
Tem banzeiro, enchente
correnteza e repiquete.
Pressa de corredeira
sobressalto de cachoeira
traição de redemoinho.
A água do rio é mansa
corre em leito estreito.
Mas também transborda e inunda
também é vasta, também é funda
também arrasta, também mata.
Afoga quem não sabe nadar.
Enrola quem não sabe remar.
A água do rio é doce
mas também sabe lutar.
A água doce na pororoca
enfrenta e afronta o mar.
Filha de olho d’água e de chuva
neta de neve e de nuvem
a água doce é pura
mas também se mistura.
Tem água cor de café
tem água cor de cajá
tem água cor de garapa
tem água que nem guaraná.
A água doce do rio
não tem baleia nem tubarão
tem jacaré, candiru, piranha
puraquê e não sei mais o quê.
A água doce não é tão doce.
Antes fosse.
A ligação de Astrid Cabral com o
mundo amazônico, seus elementos, não é interior, de alguém que se
sinta parte dele, como se observa em Elson Farias. É uma relação
exterior, de uma observadora sensível que vislumbra à distância esse
universo. Contempla essa realidade com os olhos da memória. Sua
preocupação com a terra, a presença da água, do rio como símbolo da
profundidade, aliada a uma aguda percepção da existência, são
reveladoras de um telurismo com ressonâncias intimistas, permeado
por uma forte carga subjetiva e intensa densidade poética, como está
evidente no poema “Selo d’água”:
Como a retornar de um reino
de sombras, saí do rio
peixe interino enrolada
de limo e escamas d’água.
Mais que a pele, mais que os pêlos
a alma de medo molhada!
O mergulho na corrente
foi-me foice, faca, fio
líquida navalha rente
ao pescoço, pulso fugidio.
Sobrou-me o sombrio segredo
selo da morte na carne
Oh! garra gume de gelo!
É perceptível no discurso poético
de Astrid Cabral uma tênue atmosfera de solidão a permear-lhe os
textos. Seu diálogo com a existência é mais subjetivo, ressonâncias
de reminiscências dispersas na memória, ecoando através dos olhos da
consciência. Essa tentativa de rearticulação do tempo ultrapassado,
evocação das memórias passadas, aliada à inserção de uma dicção mais
intimista, constitui-se no traço determinante de seu discurso
poético. O poema “Cenário arcaico” é uma confirmação dessa
evidência:
O mundo? Aquele quintal
pulando cercas e ruas
até mergulhar raízes
no raso rio vizinho.
........................................
Ossos de animais brotavam
da terra recém-lavada:
sinal da morte nascendo
em irônica semente
(Meus olhos ciscando o mundo)
EVOCAÇÕES DA MEMÓRIA
Astrid Cabral, uma das raras vozes
femininas, surgida no bojo do Movimento Madrugada, trabalha com a
substância impalpável da memória. Escultora do tempo, suas matérias
são reminiscências do já vivido, sentidas lembranças da infância, da
adolescência, fundidas numa paisagem, numa realidade, numa época que
não existe mais, que resiste, persiste na inconsciência do tempo e
se presentifica através de seus poemas. Em Astrid a apreensão do
real, do evocado, se dá através da memória, testemunho de vidas,
vivências depositadas no leito do tempo. O pórtico que abre “Visgo
da Terra”, talvez seu livro mais importante, é a chave para se
entender suas apreensões, sua busca. O entendimento do que está
enunciado nesses três versos é a pista para o desvelamento de suas
mensagens, presentificação das lembranças aprisionadas no passado,
para que o imemorável se manifeste e assim possamos ouvir a voz
solitária do tempo. Analisemos o pequeno terceto:
Futuro em lua minguante
minero as luas cheias
do outrora.
A lua minguante tem, em nosso
universo cultural, um sentido negativo, enquanto a lua cheia tem uma
conotação de plenitude, expressão da vitalidade. O que se depreende
dessa enunciação é o temor do futuro e um certo saudosismo do
passado. Fica evidente que a poetisa encara o futuro com um certo
pessimismo e, diante das incertezas do desconhecido, volta-se, como
diz, para “as luas cheias do outrora”. A vida, o amanhã são incertos
e ensejam muitos riscos e desafios, dos quais nossa poetisa
voluntariamente intenta fugir. É mais seguro minerar, revolver as
camadas do passado, pois não há o risco do imprevisto, da surpresa,
é uma matéria estática, diferente da fluidez do presente e das
nuances da obscuridade do futuro. De fato a contemplação do mundo,
como dizia Platão, não deixa de ser uma experiência decisiva e
amedrontadora para o ser humano. Mas é um desafio do qual não
podemos fugir, dele depende nossas esperanças, nossos sonhos.
De qualquer forma, os temores e
hesitações de Astrid Cabral não anulam o sentido de seus textos e
não comprometem o seu discurso poético. Todo e qualquer processo de
rearticulação de nossa identidade, de nossas esperanças, passa pela
recuperação do passado, de nossas experiências. O futuro é o não
dado, é o chão que espera para ser lavrado, é uma dimensão
inexplorada da existência, sobre a qual não temos nenhum controle; o
máximo que podemos, é projetá-la.
Não é sem razão que todas as
utopias se projetam no futuro. Já o presente é o dado, o palpável, o
futuro presentificado, que, se não encontra sua justificação no
passado, pelo menos se explica a partir dele. Desse modo, o presente
seria uma projeção esmaecida do passado. Se assim o for, o discurso
poético de Astrid Cabral, sua opção pelo imemorial, eco do passado,
se justifica e a poetisa se redime. Nos oferece as imagens, os
fragmentos de um tempo, menos racional e espontâneo, de que
necessitamos para uma rearticulação do presente. Localiza esse tempo
na infância, na adolescência, onde tudo é e nada carece de
explicações, o que se pode apreender no poema “Busca”:
Minha infância é hoje
aquele peixe de prata
que me escorregou da mão
como se fosse sabão.
Mergulho no antigo rio
atrás do peixe vadio
- Quem viu? Quem viu?
Minha infância é hoje
aquele papagaio fujão.
No ar, sua muda canção.
Subo nos galhos da goiabeira
atrás do falaz papagaio.
- Me segura, me segura
senão eu caio.
Astrid Cabral dividiu seu livro
“Visgo da terra” em três partes: terra, água e seres. Terra e água
são os elementos de que se fizeram os seres. “Visgo da terra” é uma
evidência dessa verdade, painel evocativo das fontes primitivas da
vida, do que ficou gravado na pele da memória e só através dela pode
ser recuperado. Ouçamos, com nossos olhos, as muitas ressonâncias do
poema “Esboço”:
O barro
é o das barrancas esboroadas
nos solimões do tempo.
Os olhos
cacimbas minando mágoas
..................................
O ser
é o dos negros caudais
onde fundos se fundem
troncos e trevas
dias e noites
Mas o esforço de recuperação do
passado, empreendido por Astrid Cabral, não ocorre apenas no plano
da subjetividade, da interioridade do ser, mas projeta-se no fazer
histórico dos seres, seus referenciais, suas experiências e
tragédias, como se pode observar em textos como “Rios de Ajuricaba”:
Nas águas se apagam os rastros
de quilhas, folhas e cascos.
Nas águas se apagam as viagens
de guelras e corpos náufragos
......................................
Banzeiros zombam e carpem
o velório da história.
Tudo se afunda no espelho
de esquecidas frias águas
e vira segredo sagrado.
Restam os rios da lembrança
império de Ajuricaba.
ou ainda no texto “Geografia provinciana”, retrato de uma cidade,
corte de um tempo.
Manaus um porto perdido
no mapa. Ali desgarrada
entre paredes de verde.
Mas iam e vinham navios
trazendo franjas do mundo
Europa e Península Ibérica
surgiam das próprias pedras
das avenidas e esquinas:
a Itália na taberna
de seu Vicenzo Arenaro.
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Seu Genaro, já grisalho
fundava o reino de Espanha
.......................
Seu Carvalho, o português
vendia bolos e broas
.......................
A França era ali na “Madame Marie”
e no “Aux Cent Mille Paletots”
a moda do “dernier cri”
......................
E um fugitivo das Guianas
testemunhava a Ilha do Diabo!
......................
O mundo estava em Manaus
Manaus estava no mundo.
Essa tentativa de rearticulação do
passado, de uma época devorada pelos dentes cariados do tempo,
esmagada pelas rodas do progresso, está evidente no poema “Elegia
derramada”, painel descritivo de uma Manaus menos moderna, mais
provinciana, não menos miserável, mas, ainda assim, mais humana,
menos agressiva e um tanto cosmopolita. Sua poesia é a denúncia dos
descaminhos da modernidade nos trópicos. A memória é um rio em que a
poetisa pesca essas fraturas, esses lampejos de um tempo naufragado:
Manaus de matinês que sabem a flertes e chicletes,
Chaplin, bangue-bangues, Gordo e Magro, astros a brilhar
nas telas dos cines Politeama, Guarany, Avenida e Eden.
Noturnas madrugadas de sinos, galos e lerdas estrelas,
alturas de lua morosa, sobras de chuva pelas sarjetas.
......................................................................................
Manaus que acorda com bondes dlém-dlém por ruas de pedra,
resmungo de lanchas pelas barrancas a luzir lamparinas,
ruído de serras a esfarelar lenha pras bandas do Caxangá,
bate-bate de lavadeiras limpando as nódoas da vida
nas propícias cacimbas e rasas correntezas do Quarenta
......................................................................................
Manaus de eloqüentes, loquazes comícios de loucos rivais
políticos: pessedistas, pessepistas, petebistas, udenistas
e demais alas dissidentes, alto-falantes e rádios bradando
inflamadas falas por salas e becos:
avalanches oratórias,
plataformas que se propõem domar o caos e consertar o mundo.
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cais de diligentes incansáveis guindastes abastecendo a cidade
de esnobes fomes de batata inglesa, manteiga da Holanda,
rubros redondos queijos do Reino, vinhos da França, linhos da
Irlanda
e mais mil cargas de sonhos e fugas estocadas nos anchos bojos
de vapores tisnados de Europa, vigias fedendo a gringa maresia,
âncoras nas mesmas águas de mendigas canoas e nativos gaiolas,
abarrotados de gente carimbada de impaludismo e miséria.
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Manaus de negras águas onde naufrago. Manaus de águas passadas.
Não se lê os textos de Astrid
Cabral impunemente, não se escapa de suas evocações, espelho em que
se reflete nossa tragédia existencial, nossos olhos cansados pelo
tempo. É o canto triste, réquiem de uma civilização que não se
afirmou, que sofre as conseqüências da descontinuidade histórica. A
poesia de Astrid Cabral é um alerta contra o silêncio, a negação do
passado, o sufocamento de nossa memória vegetal. É um eco a cortar a
superfície, as membranas impalpáveis do esquecimento.
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