A bicicleta deslizando no mosaico: a pedra,
que o joelho feriu e estância do pranto,
recebe agora os cascos leves
da cabra e do burrico
e o sonho breve
do menino a chorar no velame dos cabelos.
Que peixes como lágrimas, na lata com ferrugem,
trouxeste da cisterna para a areia?
Conhecias a morte ou tinhas esperança
de florescerem o verde, a rosa e a ametista
de suas carnes frágeis? E, hoje, quando choras,
que sonhas, que rebanhos semeias, e se ris,
que riso de pastor em tua face treme
e logo morre?
Não fui o jardineiro de um quintal sem húmus,
nem trouxe a água nas mãos para o animal ferido.
A corça não cacei, nem as ancas malhadas
das éguas açoitei com um ramo de árvore.
Cantavas para os bois, junto à cerca e ao riacho,
moías no pilão a farinha e o açúcar
com a castanha tostada e a carne de sol,
roías a solidão, no muro, ao mamoeiro
agarrado, nervoso, a sonhar com pavões.
Falavas de penas vãs à voz dos pássaros
e encostavas a fronte nos regaços
das amas. Embalavam-te canções.
Na tua infância
não houve arados
como os que rasgam
hoje esta carne,
nem as sementes
podres sonhavam
ventos e folhas,
espigas, flor.
Havia as noites
na copa branca,
ouvindo o choro
de um enterrado
pagão, sentindo
o chão mover-se
sob os ladrilhos
da cristaleira
negra, a teu lado.
Vias o pêlo
cobrir teus braços,
sentias, quente,
na mão o bafo,
eras um lobo
cheirando a lua,
ainda que humanos
fossem teus traços.
Então, a rede
vinha, e o embalo.
Que terror sonhar com o enterrado
que tecia o pranto sob o chão e a relva!
Chorava nas noites claras, ai, chorava
em encantado pranto, que essas brisas
levavam ao campo e ao canto das meninas.
Chorava um pranto lunar, de grilos no orvalho,
de frio de lima clara, de parido na terra
e vinhas à janela, rezar por seu silêncio
e dizer um seu nome, baixinho, sobre a vela.
Podes morrer em paz.
Agora, nem a chuva
poderá o teu sono
ofender, ó tristonho
menino que, enterrado,
choravas por um nome.
Também em ti chora um infante.
Ausculta o teu coração e sentirás o seu pranto,
saudoso da ramaria, do sol e dos muares.
Ah, menino, protege
o teu padrinho triste,
enterrado no chão
de um outro peito, triste
como um boi a mugir
e o focinho de um cão.
Conversávamos,
e a cadeira de
vime rangia, enquanto o velho
passava a mão sobre o tempo em seus cabelos.
Havia dunas cruéis, pão e café.
Na praia, abriam as redes para os peixes.
Alguém falou: Estou cansado,
e recolheu um tubérculo da terra,
úmido e pobre — podre! — e o devolveu
ao chão amargo e à fome das formigas.
Uma palavra esquecida como um sorvo
de água bebida ou o nitrir de um potro,
Talvez rede, que forte era o mormaço,
ou Veneranda, ou o meu nome, ou mesmo
simples enfim que se transforma em adeus:
fez-se a vida suave e o tempo bom,
como a branca toalha, a mão que parte
na caçarola o ovo, e a colher
que toma a sopa e a conduz aos lábios.
Um minuto talvez, o tempo apenas
para passar a mão no pêlo limpo
de um cão enrodilhado, ou de morrer ¾
alguma cousa ergueu-se ao teu encontro,
asa ou veleiro, cabeça de mulher
que se reclina em teu olhar e deixa
o teu corpo amansar o seu desejo.
O sol abriu no céu um pasto claro
como se parte na mão uma romã.
Sentias o viver em teus cabelos,
em tua boca os dias como um beijo.
Entre éguas, açudes e mormaços,
tombaram o mundo e os deuses nos teus braços.
E um vento lunar, tropel de pássaros,
rasgou-te a face e te lançou, transido,
na varanda do êxtase.
E cansavas
os anos, tranqüilo, nos passeios,
sob o abrigo do cair das tardes
com que sonhavas, enquanto ¾ eras criança ¾
te levavam da chuva para o quarto
e a cama e um cobertor que aquecia
como a carne, um conhaque ou um simples pranto.
Na janela, olhavas.
Pombos, céu e cataventos.
Que sereias ouviste
em seu azul sem lápides
e da morte nos campos
sem ondas e imagens?
Que sereias ouviste
na janela, à tarde?
No entanto, olhavas.
A bicicleta corria no mosaico
do corte no jardim (a jaçanã aflita
saltava atrás dos grilos no capim, na base
da flor humílima).
Enquanto os pés giravam os pedais, violentos,
a leve quilha do sonho empurrava a paisagem
com seus sítios de sombra e as raízes da água.
Cuidavam da cozinha e da sala. Faziam
do leite o queijo e da infância a sozinha
dor de debruçar-se sobre a mágoa da mesa.
E, enquanto o velho falava de seu reino exilado
e a faca trinchava a carne macia como a terra
ou afiava as estacas e o cabo dos ancinhos,
sentias o deserto
ou choravas na rede, desamparado e menino,
os teus natais e essa febre e essa espera terrível
que a morte decepou
como a cabeça de um frango.
Ele não acordou, embora o esperasses
e fizesses da espera o centro de teu sonho.
Hoje, encostas a fronte na cadeira de lona,
como invadido de morte, e choras... choras
como a infãncia ofendida, com as mãos de antigamente
a sustentar o corpo que se desmorona.
Com ele colhias mangas,
ias ver os trens e as aves.
De súbito, o céu crescia
e inundava os olhos
e as tardes.
Batiam contra os telhados
as ondas de um céu
selvagem.
Vinham pela estrada, mansas
irmãs de asas nas faces,
a criar nas mãos as contas,
jumentos, vacas, cavalos
e carroças de tijolos
rasgando as tranças do solo.
Ele cantava e sonhavas
com tatuagens e faunas
cobrindo as costas e os braços
da estátua de pedra calma.
Querias o verde puro,
o hímen da vida intacto,
o fruto aberto maduro
na sombra agreste do galho,
e não este jogo triste,
em que a morte são os ases,
e estas fontes que devoram
os sonhos de nossa carne.
Ele tomava o teu braço
e fitava o sol,
calado.
Vergavam ao peso do azul,
pois seco era o mês,
as árvores.
Secos também, perdemos o heroísmo
e agora, sentados, chorando a orfandade,
esquecemos as pontes e a beleza dos lagos.
Diante de nós ficaram apenas a areia e as traves
ruídas do celeiro e as montanhas sem árvores.
Somos herdeiros de uma casa decadente,
cuja madeira apodrece, e as malhadas cabras
vêm tosquiar o pouco do capim que ali cresce.
Como afagar tua testa,
sem tocar na sua cabeça
antiga e longa, em constante
repouso, ermo e tristeza?
Como aceitar tuas mãos,
sem pegar nos dedos magros
que se cruzavam no peito
ou desatavam as amarras
que prendiam os pés das aves
e a ressaca dos cabelos?
Alberto, as mãos de Antônio
não tinham rugas, nem pêlos.
Teus olhos estão nos olhos
do velho, a boca na sua,
aquela mesma inocência,
o mesmo amor pelos trastes,
o mesmo corpo recurvo,
o mesmo queixo de quarto-
crescente, a mesma certeza
do gado a mugir no pasto.
Ah, velho! ah, menino! nasce
de um rosto a carne do outro.
Agora, longe as dunas e as tendas desatadas,
desejaria somente, ao sair da cozinha,
encontrar-te na área, conversando com ele
sobre rosas e navios, gelos, rinocerontes,
sentado em seus joelhos, abrandando os seus cabelos,
ou lascando a lenha para ver os rubros veios
e a dor da madeira. |