Alberto da Costa e Silva

Diálogo em Sobral
                           
— Como era o odor dos rosmaninhos?
— De alimpo mato, talvez.
                                                — Do lagar e das pipas
de vinho nos malhaes. 
                                        — De broa e caldo grosso.
— Das tulhas para o milho.
                                                — Ou do Minho. 
— Talvez do aconchego da fuligem,
na casa negra de luz e cerco ardente
do frio, onde esperávamos.
                                                — Talvez
da cama limpa, onde fomos gente.

— Eu cavei e podei, de rosto baixo
como o burro ou o boi, só mais faminto,
cheio de frio chuvoso, a rastros, todo
banhado em terra
e em urina podre.
— O funcho, a mangerona, a erva-doce,
que chamamos de anis, quase os esqueço,
esses nomes e as hastes de onde vinham,
perto da breve janela.
                                       — Ai, não me esquece:
abria o dia com estas mãos que vês
tão marcadas do chão e da madeira
que lascava no eido.
                                      — O boi, então,
só faltava comer na nossa mesa.

— Ao borralho, as castanhas tu assavas...
— O vento, o lume ou um madrugar no ventre
fez-me indagar (a tua mão suspensa
sobre o vaso de água-pé), o riso em mágoa:
"E os miúdos, se vêm?"
                                          — E, assim, largamo-nos
para o Porto, rumo ao mar. Velas, o medo, 
o enjôo e o galope vagaroso
de um céu que clareava.
                                         — "Não temas, ó Maria"
(ou por Ana me chamavam?),
disseste, "não te ponhas pequenina".
— Não te falei na morte. Só pensava
na tijela do caldo, onde boiavam
a couve,
o calor
e a batata.
 

— Neste país sem orvalho, os nossos pés
rasgamos ainda mais no solo quente. 
— Passamos fome.
 

                                    — Roubamos
gado e terras.
                           — Crucificamos
escravos,
                                        e por isso nos lembram.
 

— Vi, uma vez, o talco azulado das garças.
O arco das avoantes. O curimã nadando.
 

— Tonto de passarinhagem e mormaço, o menino, 
enquanto o cego de pedir, a quem guiava, a farinha
comia à sombra, o menino
cheio de aves nos olhos.
"Dou-lhes comida e cavalo, venham comigo!
                                               Venham!"
— E saímos a galope
                                        — como os reis antigos,
a falconear os bezerros e as vacas prenhas,
com poetas e jograis, a rabeca na sela
do cego, e os jagunços de cabelos em cachos.
                        —Lembro-me bem do menino
                        que rapazola, sangraram.            

( Haverá talvez um neto, ou um bisneto, 
que não pense em mim a fazer rendas,
mas a cavalo, ao peito as cartucheiras
e o rifle na mão, com que atirava
sem apoiá-lo no ombro e a galope.
Este verá, na herança da lepra,
do rim corrompido e da tísica,
da prisão, da viagem e do querer amoroso,
que, atrás deste rosto corado e sem rugas,
deste olhar azul e destes seios gordos, 
sonhei o latifúndio, o espaço, o amplo céu
que vim também fundar no outro lado da terra, 
longe do que antes amei,

o melro, a canafístula, a tília, os casalinhos, 
o verde gaio, o Ausente.)

 

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Página editada por  Alisson de Castro,  Jornal de Poesia,  25  de  Agosto  de  1998