1
Deste canto de treva, esperas, surdo,
enquanto o céu corrói teu corpo escasso.
E sentes de ti mesmo o ofego gasto
pelo escoar do dia, o jogo amargo
de voltar das manhãs cheio de escuro.
Deste lado solar desprezas, mudo,
o que sabes virá porque marcado
na morte que vais sendo, o sonho alçado
ao espaço que passa, este amor breve,
pois é feito de tempo e o tempo cede.
Eis tuas mãos. As suas linhas, cego,
o solitário sol, o rio vazio,
o saibro sob os pés, o choro inútil
e tudo o que feriste nos descrevem,
num rogo de beleza, sujo e puro.
Do centro crepuscular, dali tens tudo.
2
Vinha a tristeza.
Como a velha, ao mormaço, lenta, vinha,
a carregar o feixe de gravetos.
Como o velho, o lenço sobre o rosto,
a cobrir o cancro do nariz.
Como usados sapatos. E os cavalos,
na manjedoura, a sacudir as moscas.
Como a passagem da sombra sobre a relva,
o epitáfio do verde. Como o instante
em que a tristeza
vem.
Tua, a espera que flui. Longe de ti,
o céu inseparável da viagem.
E aqui, o estar cortado,
o deixar escorrer do corpo adeuses.
(No menino, ao portão,
as sombras ardem
de sol e enxaqueca.)
As árvores floriam.As avencas
insinuavam a morte.
A tristeza
vinha de ti, da face que, estrangeira,
trazes no rosto, tensa e adulta, alheia
ao que fugia
para trás, para a ausência, para os campos
em que sonhavas o belo acompanhar,
na madrugada, os bois ao bebedouro.
Soubesse ser, assim, a espera
do que podia ser a vida, a trégua
com a impaciência do céu, um lento arrasto
das redes sobre a praia — e não terias
da mesma forma senão os peixes mortos,
o sentimento de estar só nas veias?
Mas, talvez, de súbito, viesse
não a tristeza como a velha, lenta,
a carregar o feixe de gravetos,
mas o acender, na tarde, dos espaços,
como se o mar chegasse em ondas altas
e te banhasse a carne do mais íntimo
do negrume do assombro...
Precisavas de mim,
que te sonhando,
menino pouco, só,
de dor puído,
empurro o tempo
para junto de ti.
Pois necessito
de ti e do teu sono.
O sono limpa.
3
Mas fui feliz.
Puseram a mão nesta mão.
Não me apagaram o choro da orfandade,
mas fui feliz.
Nada pedi
— o som da bica ouço,
o mesmo que irá comigo à morte
e esteve sempre no meu dia antigo,
e sabe o que eu queria —
mas fui feliz.
Fui pranto de outros olhos.
Fui feliz.
Senti o afago
entre o peito e a pele da camisa.
Fui feliz.
4
E, no entanto, lá dentro, falam baixo
os dois que me sonharam e me sofreram.
Da humildade do amor pouco tiveram,
o seco pão, os céus contra os seus corpos.
As mãos de minha mãe sobre a tristeza
a se aquecerem sempre. O pai, sozinho.
Sobre nós, a ramagem do degredo.
(Vou à janela, ler este papel
e a luz o toma como sobre a relva
resvala a madrugada.
As sombras de palavras nele postas
correm de mim, sou eu
de volta à casa.
Assim, como se os dias nos marcassem
os disfarces do corpo
com o que em nós não se esgota
na passagem,
a mão parada quase sobre a anca
do burro do aguadeiro,
a mão parada quase sobre o cinza
dos cabelos do velho,
a mão parada quase sobre as frutas
espalhadas na mesa,
assim os tenho,
entre o jardim e o quintal,
rosais e mamoeiros,
os dois tão perto
do adeus e do eterno.)
Ao menino que fui tudo foi pago,
no infinito que nele dissolveram,
mas, sendo a vida avara, de meus deuses
a roupagem despiram, que me deram.
O círculo do mundo passa em mim,
mas o centro de dor e treva é deles.
Nos confins do escuro, sou os dois. |