Alberto da Costa e Silva

O Menino a Cavalo
 
 
                                 1

Na lua do selim, as mãos. As rédeas
a sofrear a passagem do momento
em que, por pasto e barro, tenho à frente
o monjolo do tempo.
                                                Olho o presente
de novo, agora, o corpo traspassado
pelo peso das coisas que me tornam
no dolorido espaço em que renascem.

Nada se muda ao céu desta paisagem.
Gado, menino, cactos, folhagem            
nem mais são ontem, nem o fui, nem sou
o que hoje sinto e amo, guardo e choro.

Jamais me achei depois. Foi minha ausência
o que salta no estribo, monta e parte.

E o potro pisa a marca de seus cascos. 
 
 

                        2
 

Vamos de rédeas soltas nos cavalos mansinhos.
Atrás de nós, sacodem as cangalhas ofuscados jumentos 
pela limpa brancura do sol sobre as folhas barrentas.
E, no ar, existem restos de azul
(suave como o ventre dos peixes)
e a essência das hastes
das palmeiras e das árvores,
em linhas de verde-claro afinadas pela luz.

Trazemos água de um rio
que corre, rente, abaixo
da areia fofa e úmida,
                                                e que aflora
mal cavamos com a mão
a lã que o disfarça.

Ali estivemos, a senti-lo fluir,
com o rosto junto à terra,
a receber, de um lado, um frescor de moringa,
o seu cheiro de sombra e vime de gaiola,
e do outro,            
                        o ardor do sol,
olhar de pássaro cativo,
mãos sobre a lenha que se vai rachar, ou sobre  a corda
com que se puxa o bezerro para a curta distância
que o separa do ubre, que lhe amarra a infância
ao engano da vaca
                                                — da rês que o lambe,
                                                como se fosse a vida.
 

Não pensamos na vida. Nem sabemos
que a conduzimos conosco,
nas mansas alimárias e nas pipas com água, 
nas palhas que protegem os dorsos dos burricos,
nos dentes longos dos cavalos,
no olhar que, à distância,
vai recompondo bois, azulões, o nariz a escorrer de uma menina descalça,
a cortante conversa entre a sombra e o sol,
entre a cova e o deserto,
e que se vai fazendo,
também em nós,
no íntimo das formas, 
o breve desenho infinitamente repetido,
que vemos nos corredores que descem,
no Vale dos Reis,
para a sala cerrada como um poço extinto,
como um estômago,
como o centro de um abacate sem semente,
onde se abre a noite de um céu com todas as estrelas,
um céu fechado, um céu
mais verdadeiro do que este
que vemos desde o nascimento,
porque feito com a mão humana, triste e solitária,
no verdadeiro escuro, 
como que talvez convivamos
na morte — o céu de nossas pálpebras.

E alguém canta. 
E vamos!
E alguém lança
bagos de carrapateira contra a anca do cavalo
que segue à sua frente.
E um outro recorda o ano que vem, com a mesma cena,
e nos convida a armar as arapucas:
                                                Vamos pegar canários!
E há acenos de mãos a segurar rebenques,
talos de carnaúba e pedaços de corda.
E fingidos aboios. E risos. Inesperados galopes. 
(Trazemos água de um rio que corre, rente, abaixo
da areia fofa e úmida.)

Vão alegres de luz, meninos a cavalo,
que nem notam a beleza sonolenta do barro e dos jumentos.
E alguém canta. E todos riem.
E alguém aponta, ao longe, o verdor de um açude.

Mas eu,
que já sabia chorar para dentro e que sentia
roçar na minha pele, incessante o sofrimento,
a estranha orfandade de estar vivo
e de ir a cavalo trazer água,
voltando
de algo que findara e que se fora em viagem,
como os passarinhos que vi morrer,
como as reses destripadas,
como as palavras que falamos cada vez mais baixo
e que se transformam
neste silêncio das mãos que apertamos
sobre os nossos joelhos,
eu

eu ali continuo,
de rédeas soltas, no cavalo mansinho,
a olhar para mim.
 

                        

3
 

A mão de meu pai sobre o papel desenha,
quase num só traço, o menino a cavalo.

Sai de sua mão a mão com que lhe aceno,
e vai sobre o papel o menino a cavalo.

Choro sobre o colo do triste, e órfão e cego,
para tudo o que atado estava à vida, vivo,

mas sem sonho e sem carne, a falar-me sem nexo
sobre um céu e um sol de que foi desterrado,

mas que punha ao redor do menino a cavalo.  

O rosto longo e só, rasgado pelas rugas,
o olhar a rever o que perpétuo tinha,

e que nunca me disse, em seu pensar cortado
do dia em que vivia (no seu convívio raro

com a cadeira de braços, o pijama, os seus pássaros,
a cinza e a rotina de estar morto, acordado),

no papel ele unia a mão que desenhava
à mão com que acenava ao menino a cavalo,

neste adeus em que estou, desde então, ao seu lado,
o menino que volta, a chorar a cavalo.

 

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Página editada por  Alisson de Castro,  Jornal de Poesia,  28  de  Agosto  de  1998