Derramo o café no pires, lentamente,
e assim o bebo.
Os bicos e as asas dos pássaros,
este azul que se queima na ponta da plumagem,
tudo como um domingo na gaiola calada,
e o pôr o alpiste na pequena cumbuca,
e a água,
que nos molha as mãos e pinga no soalho,
são parte do enredo de meus dias,
um dédalo num rio, sem trilhas e pegadas,
preciso como o amor e a música.
Na calma de uma cesta de ovos,
esta manhã me lava o rosto,
me procura,
para dar-me um espaço sem mistério,
para explicar-me o pranto,
para fazer-me aceitar a morte, o tempo
e seus adeuses,
para diante de mim abrir as flores
de bananeiras e esventrar,
no chão, as jacas.
Sei que me afasto
da simplicidade da toalha, do balde e do sapato,
das coisas a que me aconchego,
se as penso
como distância e saudade,
se não vejo
a mão que limpa a mesa
e passa o pano
sobre piso e azulejos,
não como um simulacro de aceitação e tristeza,
mas como o que herdei do mundo,
a mão que limpa a mesa, a mesa e o pano,
o que é alegria e sofrimento,
iguais em tantos gestos,
entre
a luminosa indiferença
na praia e nos jardins.
Passo-te a xícara.
Não te falo
do que é invisível em mim,
do que me canta.
Sei que alguém, de longe, se debruça
sobre mim
e me desenha no rosto
cada ruga:
— Frágil
é o que nos dá a beleza,
mas não cessa o que fomos e vivemos.
Somos deuses no tempo
e no escuro
da noite, o muro branco
e as estrelas. |