1.
Usa o meu coração, se o teu já tens gasto,
feito a pedra de mó que a faca alisa, cava
e parece estender como massa de trigo
sobre a mesa molhada. Usa o meu coração
como o trapo que limpa a sujeira das tábuas
e enegrece de pó, e se pui, e se esgarça,
se com ele se invertem este dia adverso
e esta noite perversa. Usa o meu coração
para nos esconder, como aos olhos as pálpebras,
do cansaço do tempo, do bolor nos retratos,
e jogar para os céus, ao abrir das janelas,
qual um sonho ou um parto, os pardais e os canários.
2.
Pois estávamos tristes,
apesar dos sorrisos,
da tua mão na minha
e das flores na sala.
E como havia em tudo
um adeus sem destino,
deixamo-nos ficar
neste sofá florido.
Mas, de súbito, um pássaro,
suspeitando o jardim
com seus grilos e rãs,
trouxe o sonho de volta
do que foi nossa alma,
do que foi nossa carne,
do que foi a desfeita
solidão pelo abraço.
E disseste: — Na pressa
da alegria, retive
o que sei era a morte
no seu próprio casulo.
Livre agora, ela pasce
as graminhas do dia,
sobre as mesmas colinas
em que fomos felizes.
E eu te falo do amor
que tem cãs — e enovelas
tardes, noites, manhãs,
com seus sóis e estrelas,
tudo o que nos foi dado,
o orvalho, o chuvisco,
os cavalos no estábulo,
o céu nos precipícios,
as manhãs sobre as praias,
as goiabas e as uvas,
e este gato no encalço
de algum grilo na rua,
e o que não se faz tarde,
por ser fado cumprido,
e nos naipes jogados
o que foi um destino.
Mas no horto cerrado
e na aberta campina,
eu te aceno de perto
como quem te imagina
um deserto florido,
num crepúsculo lerdo,
em que vais, quase finda,
me sorrindo menina.
3.
E, então,
como se estivéssemos a olhar do alto da varanda
partirem os cabriolés com moças de anquinhas e rapazes
de polainas,
num cinema antigo
ou na lembrança de adolescências que não foram
as nossas,
mas trazemos nas veias como os versos dos sonetos e as gravuras
de balões de onde acenam, felizes, homens de cartola,
lentamente vamos
descendo a escadaria até à areia e aos canteiros de
jardins de onde
volto,
o casaco nos ombros, os cabelos em asas,
o olhar sofrido pelos barcos descascados, e as cercas puídas
de cupim, e as crianças com ranho a escorrer pelos lábios,
e o encardido da noite a se abrir, vacilante,
enquanto a mão se alonga num bom dia
ou adeus.
Pois também partes,
a câmara a afastar-se do teu rosto que ocupava
o retângulo inteiro da memória,
os cílios molhados de saudade,
os dentes a morderem o lábio inferior, o coração
a ser cortado em tiras e refogado numa gordura escura
como a terra, como o saco de coar o café que se derrama no
caneco de
lata dos vaqueiros,
como esta sala escura
em que the end fica em nossas pálpebras
e sai conosco
pelas calçadas iluminadas de tristeza e comovido
beijo.
E se agora
procuro com a ponta dos dedos tocar-te a sobrancelha,
é para refutar os que negam ao amor a eternidade,
é para refazer as pétalas das flores emurchecidas
e o velo tosquiado
dos carneiros,
e repor
numa tarde que sabemos
a luz limpa de depois da chuva e o verde de um silêncio
em que vamos de mãos dadas
para sempre.
4.
Para que este amor, se o tempo abraça
o nosso abraço e o consome, e passam
as manhãs sem retrato, o sol ferido
pelo se pôr com o pousar das aves?
E para que, se, sendo encontro, parte
com nossos corpos e se faz viagem
solitária, obscura, ao céu do chão,
abrir de velas sobre um mar sem praias?
Mas quando o húmus se levanta em rosas,
a pergunta não mais chega às orelhas
e se dissolve no seu próprio eco,
pois sabemos o amor ser o que em nós
aspira ao oceano e às estrelas
e faz da morte um cisco sobre a mesa. |