Desconstruindo o que se vê na mídia
Livro de Felipe Fortuna reflete sobre imagens
do cotidiano fixadas nas fotos dos jornais,
no noticiário da TV e na internet
in Jornal do
Brasil,
Idéias, 27.5.2000
VISIBILIDADE
Felipe Fortuna
Record, 143 páginas
R$ 20
ANGÉLICA COUTINHO
Ao folhear o livro Visibilidade: ensaio sobre
imagens e interferências, de Felipe Fortuna, o primeiro pensamento
que vem à cabeça é: será uma versão
brasileira do clássico Mitologias (1957) do francês
Roland Barthes, morto há 20 anos? Aliás, não é
de se estranhar quando, ainda na introdução, encontramos
uma referência ao livro do francês, cujo nome aparece em vários
textos. E mais: se Mitologias serviu por muito tempo como livro
de referência nos cursos de comunicação, Visibilidade
também pode ser indicado para a bibliografia do estudante de
hoje.
Os livros aproximam-se ao proporem ensaios sobre
assuntos cotidianos. Roland Barthes tratou de refletir sobre alguns mitos
da vida francesa, a partir de fontes diversas como artigos de jornal, fotografias,
filmes, espetáculos e exposições, mas sempre afastado
da literatura. Felipe Fortuna também define seus objetos como não-literários,
com a principal intenção de "identificar o mito que se ocultava
na notícia, na foto ou na exposição de um acontecimento
que se tornou importante porque a imprensa assim o quis", mas centraliza
a busca naquilo que se reflete no título do livro: o discurso da
imagem.
A partir de algumas imagens, neste mundo por elas inflacionado,
Felipe Fortuna foi buscar os significados nas diversas camadas do discurso
como um "palimpsesto monumental" comparado à internet com sua nova
forma de leitura do mundo a partir de hipertextos. Na verdade, uma proliferação
de textos e significados, de leituras e interpretações durante
as quais precisou "muitas vezes conter a furiosa sucessão de significados
que uma simples matéria jornalística poderia evocar", diz
o autor na introdução do livro. E para colaborar com o excesso
de sentidos, ainda surgiam o que ele chama de interferência, uma
mensagem dentro de outra, um detalhe significativo que buscava criar outra
mensagem ou desviar o caminho.
Porém, Felipe não se desvia. São
23 ensaios - nove da década de 80, seis da década de 90,
um deste ano e sete sem data - a maioria já publicados em jornais.
Os assuntos demonstram fortíssima atualidade, ancorados nas leituras
que o autor faz deles. Uma sensação que remete a um dos textos
- "O dito e o não-dito na publicidade" - no qual Felipe compara
anúncios de televisão da década de 60 e 80 e revela
que a propaganda utiliza as mesmas estratégias, mesmo com a evolução
tecnológica do veículo. Se as técnicas de vender pouco
mudaram, chega a ser melancólico ver que muitos dos assuntos tratados
no livro também guardam triste atemporalidade. Mesmo que tentem
nos convencer de que o telejornal traz novidades a cada dia.
O artigo que aparece no livro sob o título
"Disparando o gatilho" foi publicado originalmente no JORNAL DO BRASIL
como "O espetáculo da morte" e tratou de uma imagem conhecida
através da imprensa que chocou a todos no ano de 1987: o suicídio
diante das câmeras do secretário da Fazenda da Pensilvânia,
R. Budd Dwyer. A partir desse acontecimento, Felipe faz uma viagem no tempo
em direção ao suicídio do presidente Getúlio
Vargas, 37 anos antes, para revelar que "quase toda notícia, hoje
em dia, é uma imagem violenta", mas que nos idos dos 50, a violência
da "imagem" da morte de Getúlio limitou-se às palavras da
carta-testamento. Hoje, os dois meios se conjugam pois além das
imagens é também nas palavras que Felipe encontra uma semântica
da violência do universo econômico que levou a autoridade americana
ao suicídio e que permeou a carta de Vargas. Felipe chama atenção
para expressões como "gatilho salarial", "choque heterodoxo" e "pacto
social".
Sob o título "Intervalos" sobre a TV no Brasil
são reunidos três breves artigos, de 1993, que falam de tipos
mais sutis de violência. Um deles trata das crianças nos programas
infantis: elemento de cenário e objeto de propaganda com a fala
que se reduz a dizer próprio nome, mandar um beijo para mamãe
e cantar o slogan do patrocinador. A primeira parte do livro remete diretamente
a imagens geradas pela cinqüentenária televisão. Pois
se imagens violentas e vendas sem fim serviram como ponto de partida para
a análise dos tempos que vivemos, também não ficaram
de fora clássicos dos últimos 15 anos como os seios da italiana
Cicciolina enfrentando a política italiana em "A mamata política",
a poesia da mímica de Marcel Marceau de passagem pelo Brasil em
"Algumas palavras para mímica" e a contundência do já
exaustivamente citado "espetáculo de imagens" dos mísseis
da Guerra do Golfo mostrado pela TV em "Nação falsificação
televisão", o mais crítico em relação à
aniversariante do ano.
A linha divisória para o que poderia ser
a segunda parte do livro é sobre "A filosofia da besteira" que cita
Roland Barthes, pelo menos por duas vezes e em uma delas, para criticar...
quem? A televisão. Segundo o francês, a TV não resistiria
a uma análise científica já que a "besteira é
um nódulo duro e indivisível, incapaz de ser decomposto cientificamente".
A grande presença da televisão é grande em um livro
que trata de visibilidade. Nada mais compreensível, já que
é a maior geradora de imagens do século, mesmo tendo chegado
bem depois do cinema. Porém, já começa a surgir um
rival: o computador, estranha máquina que facilita nossa vida, amplia
a distribuição de imagens e confere às palavras uma
nova visibilidade.
A máquina dos tempos modernos é o
personagem dos artigos seguintes e virtual vilão do futuro com as
ameaças dos hackers e de bugs. Aliás, dois ensaios - um escrito
sob as previsões catastróficas do bug do milênio e
outro escrito logo no início do ano 2.000 - nos fazem ver como somos,
muitas vezes, ridículos diante das novidades tecnológicas.
E é, no mínimo, com um sorriso nos
lábios que se termina de ler o livro, num ensaio sobre a tradição
britânica do obituário no qual pelo menos dois brasileiros
já figuraram. Mais engraçado do que isso, só a frase
do secretário do Partido Marxista-Leninista italiano, Aldo Brandiralli,
citada em nota de rodapé, no ensaio "A filosofia da besteira": "Sem
a consciência de classe, o ato sexual não pode trazer satisfação,
mesmo se é repetido ao infinito."
Angélica Coutinho é jornalista, mestre
em Literatura Brasileira pela PUC-RJ e diretora da Escola de Comunicação
do Centro Universitário da Cidade.
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